No dia 26 de novembro, o projeto Paiol Literário — promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná — recebeu a escritora ELVIRA VIGNA. Nascida no Rio de Janeiro (RJ), em 1947, Elvira publicou os romances Coisas que os homens não entendem (2002), Deixei ele lá e vim (2006) e O que deu pra fazer em matéria de história de amor (2012), entre outros, além de obras infantis, ilustrações, textos sobre arte contemporânea e a recém-lançada novela gráfica Vitória Valentina. Elvira também foi jornalista em veículos como O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, e editou a revista marginal-literária A pomba, junto a Eduardo Prado. Seu Nada a dizer (Companhia das Letras, 2010) recebeu o prêmio de melhor romance da Academia Brasileira de Letras. Na conversa com o escritor Rogério Pereira, realizada no Sesc Paço da Liberdade, em Curitiba (PR), Elvira Vigna fala sobre seu intenso processo de escrita, discute a marca reacionária e patriarcal que observa na literatura brasileira contemporânea, e ressalta o valor da arte enquanto anúncio das transformações na sociedade, mais do que ator de mudança.
• Anúncio
A nível pessoal, [a literatura] tem uma importância bastante grande, pelo menos para quem a entende e vê como eu: uma troca de experiências. A pessoa que lê — e que escreve — tem uma possibilidade de entender o outro e de se entender maior do que se não o fizesse. No nível coletivo, a resposta é mais complicada, porque tem toda uma corrente que diz que a literatura modifica o mundo. Eu não concordo. Não vejo de fato a arte mudando algo socialmente. Vejo um anúncio de mudança, e não a mudança. A literatura, como qualquer arte, anuncia, mas não modifica. A arte tem a capacidade de mostrar algo que ainda está se formando e vai eclodir daqui a algum tempo, ou que já está mais ou menos presente mas ninguém ainda notou. Aí, se ela for eficiente na sua recepção — se as pessoas perceberem esse anúncio de algo mais ou menos futuro —, é claro que a arte modifica. Porque vai, como qualquer anúncio, até mesmo publicitário, reforçar a tendência ou característica que ela está enfocando. Mas isso nem sempre acontece — não por culpa da arte, mas às vezes porque aquilo que ela está querendo dizer é uma modificação muito grande, cultural, e as pessoas levam muito tempo para recebê-la. Não é culpa do produto simbólico; nem de quem recebe. Não é culpa de ninguém — são circunstâncias de mudança, de rupturas paradigmáticas muito violentas. Ter uma atividade humana que anuncia, que consegue ter uma antecedência da mudança, eu já acho fantástico. Pessoalmente, [a literatura] tem uma importância muito grande. Mas socialmente, depende; e em princípio, não.
• Influências
É um entendimento muito pessoal meu: o que pretendo, tanto ao escrever quanto ao ler, é o compartilhamento de uma experiência de vida. Inclusive tem uma pergunta que me fazem com muita freqüência, “qual escritor teria me influenciado”, e eu sempre fico um pouco hesitante, porque na verdade a influência não é formal. Não acredito que hoje, no contemporâneo, tenha algo que possa ser dito um “estilo”, uma maneira de escrever ou pintar ou fazer qualquer coisa que seja una para qualquer produto que você faça. Isso não se sustenta hoje. Da mesma maneira que não me vejo apresentando um estilo único para todos os livros ou todos os desenhos, não me vejo sendo influenciada por uma pessoa que então me daria um arcabouço formal que eu poderia aprender e repetir. As pessoas que me influenciaram são pessoas; são histórias de vida, pessoas que conheci ou de quem eu soube. Tive uma aproximação obsessiva com Velásquez, o pintor espanhol. Não exatamente a pintura dele — embora é claro que seja a pintura —, mas sua história de vida. Inquisição comendo solto na Espanha, fogueira para todo mundo — e ele era uma pessoa maravilhosa: bom pai, bom marido, não fazia nada de errado, amigo pessoal do rei… e pintava a decadência do império espanhol. Então, ele não mentia na pintura, ele mentia na vida. Velásquez conseguia morar dentro do palácio e conviver com uma Espanha violentíssima por causa da Inquisição; conseguia se manter fora da fogueira, vamos dizer. Inclusive, ele morreu e uma semana depois sua mulher morreu de desgosto de ter perdido aquele amor de pessoa. Mas na hora de pintar, ele não mentia. Na sua pintura ele anuncia o fim de uma ordem social, apresenta a classe operária, que nunca tinha sido pintada, em algumas telas; no primeiro plano pinta a babá da princesinha, ao invés da princesinha; o cachorro no quadro é um vira-lata, e não um cachorro de caça. Ele tem essa honestidade absoluta no seu fazer, e na vida pessoal, não. Não dava para ter. Esse é um cara que eu admiro profundamente e que posso dizer que me influenciou. Agora, me deu algum estilo? Não, de jeito nenhum. Não é por aí que eu vou. Meus livros, inclusive, são muito diferentes uns dos outros.
• Forma e circunstância
Nada a dizer tem uma quantidade enorme de palavrão. A narradora é uma mulher traída e está puta, então de fato cada página tem uns duzentos palavrões. Em O que deu para fazer em matéria de história de amor é outra narradora, outra circunstância. Aí você vai dizer: “A literatura da Elvira usa uma linguagem muito coloquial, solta, com palavrões”. Não. “As frases são curtas” — quando é para ser, quando tem um ritmo duro; senão, não. Então muda porque muda. Como é que vai ser igual? Estilo é uma coisa muito complicada de a pessoa tentar manter hoje. Indo para a arte visual, onde a coisa fica muito mais clara: dizer que a arte contemporânea de fulano tem um estilo não faz o menor sentido. E você pode dizer a mesma coisa para os outros instrumentos — palavra, música, o que for. O livro que eu estou refazendo tem frases longas. O que deu… tem frases curtas. Não é assim: “O último teve frases curtas, então vou fazer um de frases longas”. De jeito nenhum. O que está sendo dito está sendo dito da melhor maneira, espero.
• Molho
O que deu para fazer em matéria de história de amor foi feito em 2006 e apresentado para a Companhia das Letras em 2007. Na primeira vez o original foi perdido; na segunda, foi recusado. Quando resolvi reapresentar e peguei o texto para ler, algumas frases eram tão secas que eu botei lá um “molhinho”. Porque a coisa me pareceu muito seca. Então, não [é só cortar]: você corta e pode ter o movimento contrário também.
• Baú de histórias
Escrevo sobre coisas traumáticas, vividas, sabidas, vistas ou ouvidas por mim. A escrita é um processo meu de busca de sentido. Algum sentido. Porque a minha vida — acho que a de muito mais gente, se não de todo mundo — tem coisas completamente sem sentido. E aquele troço você não esquece, você guarda durante trinta anos e um dia escreve para ver se consegue entender. Eu tenho como se fosse um lugar onde guardo cenas, pessoas, às vezes até uma risada. Em geral não são nem histórias completas. Tenho algumas, agora são menos porque eu já editei vários livros, já usei essas histórias. E elas ficam lá, podem ficar por décadas mesmo. Aí um dia acontece alguma coisa na minha vida, fico sabendo ou vejo algo que me remete àquilo. E isso vem à tona de uma maneira muito forte —não consigo esquecer, não consigo fazer quase mais nada, me toma, fico pensando naquilo dia e noite. Aí eu paro tudo e escrevo.
• Obsessão
No dia 17 de junho passado eu me tranquei num hotelzinho — porque eu saio da minha vida, abandono homem, filho, cachorro, todo mundo — e fiquei lá até 17 de julho escrevendo. Agora, em outubro, peguei o texto novamente e não achei bom — sou muito chata, não só com os outros, mas comigo também. Aí eu recomeço. Mas não é aquele negócio de pegar o arquivo e corrigir. Já falei isso várias vezes e as pessoas ficam me olhando meio esquisito: recomeço do zero. É um arquivo novo, vou usar aquela estrutura de capítulos e reescrever o texto inteiro. Faço isso com freqüência, meus livros demoram muito tempo para serem escritos. Sou completamente obsessiva. Não conheço [a palavra “perfeição”] direito, não sei muito bem o que é isso. Busco uma satisfação minha. Aquilo tem que servir a seu propósito. Na hora em que eu vejo, sinto lá dentro aquilo que quis escrever, aí está bom. E também não leio mais. O editor me manda aquelas provas para eu dar o OK, e tenho a maior dificuldade de ler. Algumas vezes eu dou o OK, finjo que li, e não li. Tenho muita dificuldade de ler o texto depois que ele está pronto na minha cabeça. Depois que é publicado, então, nem pensar. Não leio de jeito nenhum. Porque aquilo é uma… Cara, eu não quero mais. Saiu completamente da minha cabeça — não quero, não quero.
• Diálogo maluco
A realidade sempre vai ser, evidentemente, muito maior do que qualquer enorme texto. Não tenho, de jeito nenhum, essa ilusão de que [a literatura] dê conta da realidade. Quanto à transformação [da realidade], tem um processo. É meio louco, mas é como se tivesse um diálogo entre mim e aquilo que está sendo escrito, enquanto escrevo: tenho que ouvir, atender e responder àquilo que me está sendo dito por aquilo que está sendo escrito.
• Perto do leitor
Se eu tiver feito meu trabalho bem, acho que o leitor vai se identificar com o meu texto. É uma característica que aprendi a respeito de mim mesma, não que eu soubesse ou concorde com isso, mas me dizem, então deve ser: falo muito de perto, tenho uma proximidade emocional muito grande com o leitor. Então, um prazer muito grande é achar que estou falando com aquele cara que eu não conheço. Eu escrevo chorando. Não é o motivo principal de escrever sozinha, isolada, mas é um dos motivos. É vergonha, porque de fato escrevo chorando pitangas. Aí, quando a pessoa chega perto de mim e chora também, eu acredito que ela tenha me entendido, e eu entendido ela. A gente está muito próximo. Então, aquele negócio que eu falei sobre estilo e a influência não ser formal de escritor A ou B, mas sim da pessoa, na verdade é isto: uma proximidade com pessoas. Para mim, literatura, arte, é você chegar muito perto, de uma maneira não lógica. A proximidade emocional é outra. A arte, o produto simbólico, te permite uma empatia que às vezes não é sequer possível de ser expressa.
• Exclusão
Não acho que haja nada nem parecido com literatura feminina, isso é uma grosseria. Você teria que dizer que é uma literatura feminina de classe média ou baixa; de uma mulher negra ou branca; rural ou urbana; velha ou moça — e aí você vai afunilando até chegar nessa ou naquela escritora, e uma não vai ter nada a ver com a outra a não ser o fato de serem mulheres. Eu sou uma mulher, não acho que minha literatura seja feminina nesse sentido. É uma literatura feita por mim, uma das minhas características é ser mulher. Ressaltar esse fato é um alijamento e uma exclusão, e a única coisa que eu posso dizer para concluir é a lembrança dos narradores masculinos que abundam na literatura universal desde que ela existe no mundo.
• Reacionário
A gente tem que pensar em termos de poder. A minha “bronca”, vamos dizer, é que existe na literatura do mundo inteiro hoje, e no Brasil especificamente, três fatores — que eu consiga ver com clareza — que emperram, impedem uma renovação possível. Uma é que o campo literário é dominado por homens, quando a cultura ataca isso. Existem razões econômicas, principalmente culturais, em que o poderio patriarcal é atacado. O homem, então, está numa situação em que tem que defender um poder que está sob ataque. A publicidade brasileira até alguns poucos anos atrás era muito criativa, muito boa, premiada pacas e com razão. Com a crise do comércio tradicional por causa da internet, os publicitários migraram de forma mais ou menos em massa para outros setores criativos — tem muito escritor publicitário. Então, esse homem que já estava numa posição de defesa — sob ataque cultural pelo simples fato de ser homem, heterossexual, branco, de classe média —, se ele for publicitário está então numa situação de defesa dupla. Porque o publicitário é o contrário do escritor, apesar de ambos trabalharem com a criação: a intenção de um publicitário é atender a demanda, solucionar o problema do cliente, atender seus anseios. E o escritor desestabiliza seu cliente, que é o leitor; procura fazer com que ele não tenha seus anseios atendidos — pelo contrário, faz com que tenha as suas certezas abaladas. É isso que qualquer arte digna do nome faz: destrói certezas, abre outras possibilidades. Aí, veja bem: estamos falando de um homem — suposto — que está numa indústria também sob ataque, porque a internet está fazendo com que a indústria livreira mude de venda de produto para prestação de serviço — uma mudança radical. Então esse cara — homem, ex-publicitário, numa indústria que está também sob ataque — está sob triplo ataque. Quando a pessoa está sob ataque, tem dois grandes ramos de atitude que ela pode tomar: ou defende seu poder minguante, e ela será reacionária, conservadora, inclusive fechada o máximo possível, porque qualquer novidade é uma ameaça; ou ela assume que sua situação é de crise, ruína, queda, mudança e tudo bem. Se esse escritor for homem, de classe média, heterossexual, branco, ex-publicitário, estiver dentro de uma indústria vendendo livrinho de papel e considere que a internet seja uma ameaça, ele vai ter que escolher entre mostrar no seu livro que é um cara fragilizado ao extremo ou mostrar que ele é um fodão. São essas as duas atitudes possíveis. E eu vejo no campo literário — essa é a minha pinimba — uma presença muito grande da atitude de defesa conservadora, reacionária, profundamente retrógrada desse personagem que eu montei aqui — que, claro, é um personagem fictício. Em termos; existe.
“Hoje a vida é mais difícil — e para todo mundo, não tem mais essa de lugar especial masculino. No entanto, na literatura brasileira, você encontra.”
• Momento ruim
O pessoal bem novinho — não em idade, mas que está começando a escrever — tende a ser menos reacionário do que os jovens escritores badalados, que, sim, são muito reacionários. Esse pessoal menos conhecido consegue se mostrar frágil, consegue se suportar não maravilhoso, não fantástico. E para a literatura é tudo de bom. [A literatura brasileira atual não vive um bom momento] Justamente por esses três aspectos que eu falei, sendo que um deles é especificamente brasileiro, que é uma invasão do publicitário — não só no texto, mas na parte da imagem do livro, especificamente infantil e juvenil; são pessoas que entendem o livro como um produto a ser vendido. Tenho brigas homéricas com designers… É uma visão publicitária do livro que é muito ruim.
• Satisfação
Fui um fracasso como adolescente. Não tinha a menor idéia de moda, qual era o cantor que eu devia estar cantarolando, que roupa devia estar usando. Era muito quieta, muito fechada — e aí eu lia. Ter sido uma adolescente malsucedida me fez ter força para ser uma adulta — não digo bem sucedida, porque isso não existe no campo em que a gente milita — pelo menos com força para buscar uma satisfação — que eu, sim, obtenho. Eu faço o que quero.
• Meta intelectual
Minha família era de origem muito simples, humilde, e conseguiu ter uma ascensão social. Então, no espaço de uma geração, meus pais saíram de uma situação de quase pobreza para uma classe média bastante boa, razoável. Uma vez isso conseguido, tinha outra fronteira a ser vencida: a intelectual. Na minha casa, embora não houvesse cultura, havia essa meta intelectual a se atingir. Em geral tem a pessoa que fala: “Ah, a biblioteca do meu avô, com aquela poltrona de couro!” — isso é um tipo de infância. Outro tipo de infância é a que migra de um lugar muito traumático para outro. Então, esse segundo tipo são os que chegaram no intelectual, no livro, como uma meta muito desejada — depois de parar de passar fome, a próxima coisa a ser conseguida é o entendimento, o sentido do mundo. Na verdade essas duas respostas disfarçam duas situações econômicas muito claras, pelo menos para mim: “a biblioteca do meu avô com a poltrona de couro” é uma classe média já estabelecida há muito tempo; e o pequeno leitor que migra e busca essa meta da intelectualidade é quem mudou de classe social, que é o meu caso.
• Experiências
É uma luta quase cotidiana ficar bem apesar da literatura, e não graças a ela. Leio [ficção diariamente], basicamente escritores brasileiros novos — é o que mais procuro ler. Leio o cara novo, novo, novo, que tem vinte, vinte e poucos anos e está lutando para encontrar uma voz. Não que o livro seja bom — em geral, não é. Tem uma diferença entre gostar do livro e gostar de ler, e eu gosto de ler esse cara. Muitíssimo. Através do Facebook me chegou um cara já bem mais velho, do interior do Rio Grande do Sul. Ele fez um diário meio deslumbrado de um jovem do interior do estado que estava indo para um grande centro, pela primeira vez longe da família, com possibilidade de sair com amigos, meninas, etc. E quando foi servir o exército, calhou de ele ser guarda da prisão do pessoal do Pasquim — do Ziraldo, do Millôr, que foram pessoas que eu conheci bastante bem. Então, não só através deles como de outras pessoas do meu círculo social que foram presas durante a ditadura, eu conhecia com bastante intimidade a experiência da prisão do ponto de vista dos presos. O livro desse cara, que era muito ruim e que eu adorei ter lido, me deu a experiência do ponto de vista do guardinha que estava do lado de lá da porta de ferro. Essa experiência tem um valor enorme pra mim. Até mesmo porque o livro é ruim, porque ele não se preocupou do ponto de vista formal, em enfeitar aqui ou fazer uma frase mais legal ali, até mesmo devido a essa ingenuidade literária ele me passou uma experiência que eu adorei ter.
• Valor
A gente vive numa época maravilhosa, acho a internet maravilhosa. Não vejo essa percepção muito clara, mas acho que é uma questão de minutos: a possibilidade de você fazer literatura. Antes você tinha que se sujeitar a uma hierarquia de poderes — inclusive econômicos —, e hoje você tem a possibilidade de fazer sozinho um exercício literário perfeitamente válido. Então mudou tudo. Espero que o capitalismo um dia caia de podre, mas enquanto isso não acontecer, o valor da pessoa está ligado ao quanto ela recebe. Tem um sistema de valorização muito óbvio que é o quanto você ganha. Faço com muita freqüência palestras no interior, em cidades muito pequenas. E uma das perguntas que fazem é quanto eu ganho. Entendo perfeitamente: estou indo como um pedacinho de São Paulo, maior cidade do país; fui convidada, então me pagaram para ir até lá, pagaram passagem, se a cidade tiver hotel, estou no hotel da cidade. Então, faço algo que tem um valor, e a maneira de entender que valor é esse é perguntar quanto ganho. A internet não dá dinheiro para absolutamente ninguém, então o livro de papel ainda é uma maneira de você estabelecer o seu valor. Em dinheiro, em números. Então não acho que ele [livro impresso] acabe.
• Novo patamar
Sou uma pessoa absolutamente comum [na internet]. Estou lá junto com quem faz bolo em casa para vender pelo correio. Estou em igual situação. A internet estabelece um novo patamar: quem ganhava seu dinheiro a partir da venda de uma informação está frito, porque o Google é melhor. O que a pessoa pode oferecer é um sentido. Para isso, ela tem que pensar. Só aí você já está mudando seu chão para muito mais alto. Hoje, seja você professor, ou mesmo escritor, se você acha que fazer uma frasezinha bonita é o suficiente, vai perceber rapidinho que não é. O que você tem para vender — entre aspas, porque a internet justamente não vende nada para ninguém — é um entendimento, uma experiência de vida que pode ser bonita, pode servir para outra pessoa se entender. A frasezinha bonita já era. Qualquer um faz.
“O escritor desestabiliza o leitor, procura fazer com que ele não tenha seus anseios atendidos — pelo contrário, faz com que tenha as suas certezas abaladas. É isso que qualquer arte digna do nome faz: destrói certezas, abre outras possibilidades.”
• Mito falido
Vejo muito nos jovens autores homens livros cuja ação principal ou fio narrador vem de avô, pai, filho — tudo homem. Como se houvesse uma essência masculina — digo “essência” de uma maneira muito pejorativa; não tenho nem vestígios de religião, então não acredito em nenhuma essência, não só a masculina — a ser transmitida de pai para filho, que é a definição do patriarcal. Você vê isso em jovens escritores de vinte anos. Para mim é muito chocante. Sou uma pessoa que teve a juventude na década de 1960, 1970, e descobrir isso acontecendo e sendo aplaudido hoje, para mim é um escândalo. Então tem essa linha, que é muito comum, e tem a dos ritos de passagem masculinos: você vê com muita freqüência a descrição enternecida, nostálgica, quase, do menino que vai virar homem. E, claro, o fodão. Ele tem aventuras incríveis, se dá bem nelas, sejam viagens ao exterior ou luta contra sei lá quem. E tem o antônimo, que é igual a isto: o anti-herói, o cara que vomita na avenida São João, e aí puta que o pariu, e aí está no bar, a puta e mais não sei o quê. É o anti-herói mas é igualzinho ao herói, com o sinal trocado — em vez de mais é menos, mas é igual. São mitos masculinos que se mantêm, e a função disso é a manutenção de um poder que o cara hesita em compartilhar. Hoje a vida é muito mais difícil do que a de um Hemingway: você saía, matava um elefante e estavam resolvidos seus problemas de ego por pelo menos um ano. Hoje, não: você tem uma vida banal, cotidiana, difícil. É muito mais difícil levantar da cama, dizer bom-dia para o porteiro e ir para um trabalho que não te satisfaz do que matar um elefante. Então hoje a vida é mais difícil — e para todo mundo, não tem mais essa de lugar especial masculino. No entanto, na literatura brasileira, você encontra. É muito raro encontrar um cara que assuma a sua fragilidade.
• Acesso restrito
Li recentemente a Adriana Lisboa [Hanói] e gostei. Luci Collin. Gosto da Carol Bensimon. São algumas [escritoras], mas não são muitas, porque a defesa do poderio masculino falso, que realmente está declinante, é muito bem sucedida no sentido de impedir um acesso. Há alguns anos, no Recife, o Cristhiano Aguiar me presenteou com uma coletânea de contos de autores locais, acho que eram trinta. Inclusive era uma edição bem feita, patrocinada. Não tinha nenhuma mulher entre esses trinta. Ou nenhuma recifense sabe escrever bem, ou é tão cruel a coisa que… Há o argumento pré-fabricado de que eu defendo mulher mas não consigo citar muitas [escritoras]. Mas isso é um argumento que se autoproduz, porque na medida em que você impede a presença feminina nessa antologia, não abre espaço ou não consegue ter uma presença — o editor é homem, o jornalista é homem… —, você impede até mesmo a maturação de uma escritora, impede que fique bom. Esse congelamento que tentei descrever nesse personagem fictício de cara ex-publicitário numa indústria falida é uma questão de tempo. Não vejo como isso se manter.
• Ilustração
O artista visual lida com questões que eu não lido, porque faço ilustração. Tenho uma leitura de um texto e a coloco em forma de desenhos, pinturas, o que for. Então há uma diferença de nível de complexidade, uma diferença de intenção muito grande. Eu não me vejo como artista porque não lido na minha atividade imagética com as questões de um artista visual. Sou ilustradora. Além disso, a arte contemporânea tem — muito mais claramente do que a literatura e provavelmente a música — uma pretensão de autoria compartilhada com quem está vendo ou participando. A literatura também. Hoje, um texto — os meus e os dos autores de que gosto — não se fecha, ele necessita da contribuição do leitor para existir. Na arte contemporânea isso é muito claro. É uma participação, não é uma agressão. É um convite, até amável, suave, vamos dizer. Essa suavidade de propósito que eu vejo na arte com mais nitidez do que na literatura, somado ao fato de que não me ponho no papel de artista contemporânea mas como ilustradora, faz com que a minha atividade na imagem seja lúdica. Então, para mim o desenho é um momento de relaxamento muito grande. Quase uma brincadeira, sem querer botar algo de pejorativo nessa palavra. A história em quadrinhos não é uma ilustração, é outra coisa, que eu acredito que seja pouco entendida aqui. As possibilidades criativas dessa intersecção de duas linguagens na forma da HQ me fascinaram. Então, fiz 120 páginas desenhadas com um lápis 6B. Detalhadíssimo, coisa de maluco mesmo. Então você me pergunta se eu vou fazer mais? Tomara que não.
• Mudança
Só escrevo quando chego ao limite. E escrevo em situações de desconforto total. Meu ex-marido — ele é jornalista e roteirista de cinema — teve uma crise pessoal, e minha filha disse: escreva um livro que esse troço vai te fazer bem. Ele nunca tinha escrito ficção e imaginou que fosse escrever e ficar bem. Eu sabia que não, porque quando escreve você não fica igual ao que era antes. Você se modifica. Tem que pagar esse preço, de saber que você vai ficar diferente. Então o desconforto não é só o da escrita, e quando acaba você pega o seu copinho de uísque e está tudo bem — não, não está tudo bem. Você mudou. O seu relacionamento com as pessoas próximas muda, a maneira como você se vê muda. Nenhuma mudança é agradável, nunca, vamos parar com isso, a gente detesta mudança — uns mais do que outros, mas todo mundo acha uma coisa árdua. Não acho que tenha conforto nenhum. A literatura não te oferece conforto nenhum — a boa.