A viagem maior

Resenha do livro "O viajante imóvel", de Júlio Ricardo da Rosa
Júlio Ricardo da Rosa, autor de “O viajante imóvel”
01/01/2014

A existência do duplo esteve presente em toda a história da literatura. Na poesia, por exemplo, através da tensão entre linguagem figurada e linguagem referencial; na narrativa, sobretudo através da dialética entre autor e narrador. Tais artifícios não só expandem a possibilidade de leitura de cada texto, como também ampliam suas perspectivas de representação e criação de realidades.

Sabe-se que autor e narrador são entidades que ocupam instâncias diferentes. Portanto, ao criar um narrador marginal, não se supõe que o autor também viva à margem da sociedade. Quando o escritor expande esse duplo ao estabelecer um narrador-autor que cria ainda outro narrador, podemos dizer que foi instituída a narração em abismo. Trata-se, então, de três histórias: a do autor em relação a todo o romance; a história que o narrador nos conta; e a do autor “fictício”, criação do narrador, que também está a nos propor mais uma história. É o que acontece em O viajante imóvel, de Júlio Ricardo da Rosa.

Não é difícil perceber o ardil, na verdade já a partir do segundo capítulo. No primeiro, o romance começa com uma aventura no deserto: Félix Kölderlin presencia uma batalha entre os tuaregues, povo nômade de etnia árabe que transita pelo norte da África. Já no capítulo seguinte, apresenta-se outro narrador, cujo nome é Vitor Assis. Este, sim, o viajante imóvel. Daí em diante, quase em capítulos alternados, acompanharemos a trajetória desses dois personagens. O primeiro é escritor de livros sobre viagens radicais, mas ele nem sequer conhece o seu editor, envia-lhe os textos por correio eletrônico, em meio às suas aventuras pelo mundo. O segundo, Vitor de Assis, é uma pessoa infeliz, alguém que permanece trancado num apartamento fazendo traduções do alemão para um homem chamado Turco, um tradutor juramentado. Assis é vigiado e até certo ponto aprisionado pela ex-mulher, como se percebe desde o início do livro. Tal fato o incentiva a tramar um plano espetacular de vingança e de libertação. Ele cria então o escritor-viajante, que lhe permite faturar com o sucesso de suas aventuras transformadas em livros. Se essa situação vai perdurar ou se a ficção será desmascarada, compete ao leitor descobrir.

Paralelos fantásticos
Uma vez que no mundo das idéias tudo pode ser viável, analisemos a obra partindo do seu criador, Júlio Ricardo da Rosa. O autor soube aproveitar muito bem o recurso imprescindível da atualidade, a internet. A rede possibilita, mais do que em qualquer outra época, que em poucos minutos se possa tomar conhecimento sobre qualquer assunto (ainda que de modo superficial). Permite também a qualquer mortal chamar alguma atenção sobre si. Outra possibilidade da internet é incentivar certo namoro com a fraude, principalmente em casos de criação de pessoas fictícias. Até que ponto pode-se forjar uma nova identidade e conseguir documentos “oficiais” através de sites pertencentes ao submundo da rede? Quanto é preciso pagar por isso? Qual o risco que se corre? Rosa nos mostra um caminho divertido e perigoso, que pode ser até mesmo verdadeiro. Ao mesmo tempo em que consegue dar a Vitor Assis bastante verossimilhança, o autor cria um Félix Kölderlin titubeante, uma espécie de falsário amador, que acaba bem sucedido devido à ganância do mercado editorial.

No universo de Kölderlin, o autor das histórias radicais, quase tudo é possível. Perigo e risco de morte sempre rondam os personagens — mesmo em Assis, cuja vida aparenta imobilidade, no final há um exagero surpreendente, maior do que o do autor das aventuras à beira de vulcões, batalhas, escarpas e ondas gigantes. Como a literatura, no entanto, é feita muitas vezes de situações que extrapolam a realidade — em que o exagero é necessário —, entra-se na fantasia e é possível acreditar no desfecho, que beira o inverossímil.

Há dois momentos no livro que creditam ao autor a qualidade de saber aproveitar narrativas paralelas. Apesar de não fazerem parte da história principal, acabam por apresentar boas questões. A primeira é narrada por Vitor Assis, em meio ao seu trabalho de tradutor. Trata-se do episódio da vida de um ex-agente do serviço secreto da Alemanha no período em que o país estava dividido. O homem, após ter vivido no lado oriental, foge para o Ocidente, e no final vem dar no Brasil. Não devido à profissão que exercera, mas sim por estar fugindo de duas mulheres. Morara e dormira com ambas simultaneamente, numa espécie de casamento a três. Um dia descobre que elas tentaram envenená-lo. O motivo: herança. O trabalho de Assis é traduzir a peça jurídica que deverá ser assinada pelo tal homem. Uma das mulheres, a verdadeira esposa, reclama uma pensão, pois alega ter sido abandonada pelo marido, que, a seguir, teria fugido para o Brasil. Outro episódio interessante é relatado pelo narrador-aventureiro. Chama-se “Na rota da Guerrilha”. Aqui, Júlio Ricardo da Rosa discute a resistência aos regimes autoritários na América Latina, incluindo um ex-agente do exército nazista que teria fugido no final da guerra para a América do Sul e passa a ajudar os guerrilheiros que combatem as ditaduras locais. Talvez tantas narrativas tenham o efeito negativo de dar ao livro um ar de romance total, mas revelam a habilidade do autor em inserir histórias paralelas e demandas diversas a uma narrativa maior.

O título do livro permite especulações e diálogos com uma longa fila de autores, começando por Xavier de Maistre em Viagem à roda do meu quarto, passando por Machado de Assis, que cita Maistre várias vezes, até desembocar em Joyce, que, com o seu Ulysses, cria o duplo Leopold Bloom/Stephen Dedalus.

Além da alternância entre os dois narradores, com trechos quase sempre intercalados, há um longo flashback — necessário para conhecermos a vida pregressa de Vitor —, onde a história se desenvolve por um narrador em terceira pessoa. No capítulo 8, denominado “Identidade Kölderlin”, voltamos ao narrador Vitor Assis, permanecendo assim até o final, o que também acontece nos capítulos intercalados onde há a narração empreendida pelo escritor aventureiro.

Como epígrafe do romance, Rosa cita Ernesto Sabato: “A arte é quase sempre um ato antagônico, e um homem parado pode ter muito mais imaginação do que outro que percorre o planeta”. A citação antecipa o desenrolar da história, que aponta a literatura como a viagem maior, tanto mais quando lembramos que muitos dos escritores viajantes não lograram fisicamente ir muito longe, mas suas obras, além de atingirem estâncias inauditas, nos perseguem e nos mantêm presos a essa eterna peregrinação.

O viajante imóvel
Júlio Ricardo da Rosa
Dublinense
253 págs.
Júlio Ricardo da Rosa
Nasceu em Porto Alegre (RS). Durante os anos 1980, escreveu sobre cinema para os jornais Zero Hora, Correio do Povo e Jornal do Comércio. Publicou os livros Beijos no escuro e Veludo, ambos pela Tchê!
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

Rascunho