Cidade do México e, mais ao norte, Querétaro e San Miguel de Allende. Há poucos dias deixei o Brasil, mas o reencontro nas páginas do mais recente livro de Silviano Santiago. México, país de pluralidade, confluências e resistências, em termos artísticos e literários também é muito rico, basta lembrar nomes como os de Octavio Paz, Juan Rulfo e Frida Kahlo. Uma terra que fascina e encanta, como as páginas multicoloridas e multifocais do volume Aos sábados, pela manhã.
Mas será apenas coincidência? Na década de 1990, o professor, ensaísta, crítico e romancista já havia publicado Viagem ao México, no qual reconstruía a passagem do francês Antonin Artaud pelo país, em 1936. Neste livro há uma suspensão da cronologia, e diferentes temporalidades se mesclam: Paris e o cotidiano de Artaud, Rio de Janeiro e o espaço de quem escreve, década de 1990. Se a suspensão cronológica ajudava a tecer os fios dessa narrativa, em Aos sábados, pela manhã ela é um elemento necessário, já que o volume reúne setenta e um textos publicados no extinto caderno “Sabático”, do Estado de S. Paulo, agora organizados por Frederico Coelho.
A assinatura de Silviano Santiago nesta coletânea convida o leitor a adentrar não só na literatura, mas também no campo das artes. Nos textos, Santiago vai tecendo uma imbricada rede, na qual suas “máscaras” — de romancista e crítico — se fundem e se confundem. Temos um escritor que fala sobre e pensa a literatura, escolhendo seus percursos e trilhas sempre a partir de complexos jogos, já caracterizados no início da apresentação de Coelho — Jornal do mundo (título não menos significativo) — através da repetição do termo “risco”: este é elemento necessário para uma crítica criativa, e Silviano Santiago é plenamente consciente disso. A folha de papel em branco a ser manchada pela tinta que delineia traços, letras e palavras é sempre uma aventura.
Sobre o fazer crítico
São três as partes que formam Aos sábados, pela manhã, cujo subtítulo é “Sobre autores & livros”: “Elogio da literatura”, “Além do campo visual”, “Uma revoada de vaga-lumes”. Uma organização que se apresenta por afinidades — e não por uma ordem linear indicada pela cronologia —, como a biblioteca do alemão Aby Warburg, na qual a disposição dos livros também assume um risco, aquele de pensar articuladamente o tempo histórico.
Não por acaso, o historiador da arte é um dos nomes citados por Santiago. Na verdade, há algo de comum entre eles e com certeza o crítico brasileiro vê nos painéis de Warburg uma forma de operar o conhecimento e lidar com o elemento artístico-cultural: “O crítico investe no deslocamento da fronteira cada vez mais fluida entre texto e imagem, fazendo com que a disputa histórica entre esses dois pólos ganhe uma dimensão provocativa”. Assim que há dois textos dedicados a Warburg, e o interesse demonstrado por Silviano se confirma pela “ficção teórica”: ele retoma a viagem do alemão pelo sudoeste norte-americano — Novo México e Arizona — e, ao refletir sobre essa experiência, reflete também sobre o fazer crítico e o fazer literário (o seu):
São equivocados os julgamentos críticos que consideram O ritual da serpente como um documento antropológico frustrado. Escrevendo-o, Warburg não quer compreender a dança da chuva como objeto singular e específico, nem visa a estabelecer a serpente como invariante ou arquétipo. Desenvolve uma interrogação reflexiva, em aberto, sobre os mecanismos do conhecimento e do pensamento em imagens. Elabora método e estilo novos de escrever a história da arte. A ficção teórica “transforma o saber em rito de orientação”. Produz efeitos.
A produção desses efeitos é que está em jogo.
Vasto repertório
Aos sábados, pela manhã é muito mais do que uma simples coletânea de resenhas publicadas em uma coluna de jornal. O livro confirma a potencialidade do pensamento crítico em suas mais de trezentas páginas, por meio da atualidade das leituras de Silviano Santiago, pelas redes de conhecimento que o autor vai construindo e, sobretudo, pelos desafios e deslocamentos que apresenta ao leitor. Sua coluna é uma espécie de laboratório no qual Santiago experimenta variadas combinações e oferece um repertório de leituras e erudição sem pedantismo — um exercício quem vem se afinando desde o final da década de 1970, com Uma literatura nos trópicos, que fala “no Brasil”, e não necessariamente “do Brasil”, como sublinha Frederico Coelho, e segue legitimando um pensamento da diferença.
Perpassam por essas tramas silvianas muitos e diferentes autores: Marcel Proust, Machado de Assis, Jorge Amado, Camilo Pessanha, Jean Genet, Hegel, D. H. Lawrence, Joaquim Nabuco, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros. Há sem dúvida um espírito de aventura pelo conhecimento e de desbravador das artes que se destaca nas escolhas de autores e temas, dos clássicos revisitados aos contemporâneos. Aqui, uma coisa é clara: crítica é pensamento. Textos narrativos, poemas, cinema, artes plásticas se imbricam com reflexões teóricas, que possibilitam o “lance do crítico”, o seu risco. Do Modernismo às conferências de Lévi-Strauss; da autobiografia da iraniana Azar Nafisi ao Drummond do poema Infância, que ainda menino lê as aventuras de Robinson Crusoé; de Roberto Bolaño a Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Norberto Bobbio, Georges Didi-Huberman. Enfim, “literatura não tem mar territorial”.