Fabulador da realidade

Entrevista com Jorge Miguel Marinho
Jorge Miguel Marinho. Foto: Davilym Dourado
01/07/2013

Ao contar uma história, Jorge Miguel Marinho parece estar chamando o leitor para uma conversa ao pé da lareira, se num dia frio, ou à sombra de uma árvore, se o dia estiver abafado. Marinho já havia publicado dois livros para adultos nos anos 1980 antes de ser convidado a escrever um para crianças: A menina que sonhava e sonhou foi sua estréia na ficção infantil, em 1987. Hoje, ele não gosta dessa segmentação. Segundo o autor, seus livros transcendem o universo dos jovens e não se preocupam com um destinatário específico: “A literatura sempre diz mais, e a relação entre livro e leitor é sempre imprevisível”. Este carioca nascido em 1947 e logo adotado por São Paulo cursou Letras e fez mestrado na Universidade de São Paulo, ensinando Língua Portuguesa e Literatura Brasileira por mais de trinta anos em escolas públicas e particulares, para o ensino fundamental e médio. A convivência com crianças e jovens certamente contribuiu para a segurança com que Marinho retrata o universo de descobertas, ebulições e incertezas que um dia foi o de todos nós, seja com nove anos, seja com dezesseis. É o que sua premiada obra atesta, recebendo diversas vezes o selo “Altamente recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Na curva das emoções foi agraciado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte com o prêmio de Melhor Livro Juvenil em 1990. Lis no peito venceu o Jabuti na categoria juvenil em 2006 e foi premiado também na Alemanha. Mais recentemente, Na teia do morcego, publicado pela editora Gaivota, esteve no catálogo da Feira de Bolonha 2013 e foi lembrado no HOW Your Best Work Design Awards 2012 por seu apurado projeto gráfico. A obra mescla a Gotham City de Batman à vida paulistana e abusa de contrastes coloridos, recortes de jornais e elementos visuais característicos de São Paulo. Nesta entrevista, Jorge Miguel Marinho relembra os prazeres das primeiras leituras e esmiúça o significado do ato de escrever.

Os três jovens protagonistas de Lis no peito são fiéis leitores de Clarice Lispector. Que autores você lia na infância e adolescência? Como foi o início da sua trajetória de leitor?
Descobri os livros e a alegria única e imperdível da leitura tardiamente, apenas antes de completar quinze anos. Acontece que venho de uma família com pais muito simples que pensavam nos livros com respeito e admiração, mas, por questões econômicas, eles não tiveram lugar na minha casa. Conta ainda que a minha escola era igualmente simples, apenas duas salas de madeira em condições muito precárias e sem biblioteca. O meu primeiro livro, emprestado por uma amiga, foi Os padres também amam, de Adelaide Carraro. Para muitos, leitura apelativa, sem qualidade literária e até mesmo condenável para os jovens. Na minha curiosidade de adolescente, fui motivado por uma narrativa erótica com lances marcadamente sexuais, mas o que de fato me atraiu foi o objeto livro, que trazia dentro de si uma história a que eu podia voltar quantas vezes quisesse. Foi então que vivi um sentimento de falta dos livros que nunca havia lido e dos que eu poderia vir a ler. Esta descoberta fez de mim um leitor obstinado e, lendo sempre, acolhi e abracei a literatura como um modo de ser feliz. Num breve trajeto, alguns escritores que estiveram presentes na minha adolescência e convivem comigo até hoje foram e são Saint-Exupèry, Hermann Hesse, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Murilo Rubião e especialmente Clarice Lispector, que é a escritora que eu pedi à vida e a vida generosamente me deu.

Em Lis no peito, a razão de escrever é uma pergunta constantemente repetida. Qual a razão que você encontra para a escrita?
Escrevo por necessidade de fabulação, por um sentimento de urgência no sentido de recriar e reinventar a vida no exercício do imaginário. Escrevo para casar realidade e fantasia, apostando nessa feliz aproximação como promessa de um mundo humanamente melhor. Escrevo para fazer existir o que não existe, acreditando na literatura como expressão reveladora sempre voltada para o “sentido da existência” e capaz de sugerir ou revelar a vida com olhos de primeira vez. Escrevo sobretudo por um forte apelo interior de partilhar e comungar com o mundo a minha história pessoal, que busca acolher a condição humana como matéria literariamente viva de todos nós.

Mais de uma vez em sua obra você confessa estar escrevendo uma história que não é sua. Você sente o personagem e a história sendo mais fortes do que o autor?
Quando eu escrevo, experiência imperdível, sinto que caminho com os personagens e eles fazem o mesmo trajeto narrativo comigo.Pela natureza da literatura e sua singularidade criativa, acontece uma feliz convivência expressiva entre realidade e ficção. Como os escritores não dominam inteiramente o que escrevem, pela própria natureza expressiva e sugestiva das palavras que sempre dizem mais, quando uma história ganha fôlego, os personagens, por vezes, decidem o seu destino e é possível escutar a sua voz. Há sempre um feliz encontro entre a subjetividade do escritor e a subjetividade do mundo criado. Nenhum é mais forte do que o outro — na criação literária há diálogo, cumplicidade e comunhão entre escritor e personagens. 

• Acredita que se escreve a fim de entender melhor o que se sente em relação a algo ou, pelo contrário, escreve-se quando tudo está claro e definido para o autor?
A literatura nunca é completamente norteada por um universo ou uma história definitiva, até porque o exercício literário nunca procura dar conta da realidade. A literatura mais sugere e pergunta do que afirma. No meu processo criativo, por mais que eu tenha um recorte temático pré-definido, o que é muito raro, a escrita literária é um exercício de busca e vai apontando caminhos e situações, por vezes, imprevisíveis — ela segue uma unidade de sentidos que se abre, acolhe ou recusa fatos e traços de personagens antes pressupostos. Estou no universo do imaginário, da criação e da fantasia e motivado esteticamente por ele. Nesse sentido, escrever é um ato de descoberta, e a literatura, desde o trajeto da criação, é palavra reveladora e um modo de entender no ato de escrever aquilo que ainda não se entende. Por vezes, nem tenho uma idéia e atiro palavras no papel para fisgar alguma coisa que quer se expressar e ainda não tem nome.

• Histórias de amor, algumas impossíveis, surgem com freqüência em sua obra. Por que o tema lhe atrai tanto?
Como a literatura só se preocupa e tem interesse em expressar a condição humana, os temas são eternos e sempre lançam as mesmas interrogações e inquietações: quem sou eu, de onde vim, para onde vou, o que faço aqui, quem são os outros, qual o sentido da vida? Nesse universo de indagações, o sonho, a busca de identidade, a solidão e a solidariedade, a morte e o desconhecido, o sentimento de ira ou compaixão, a injustiça social e a luta por um mundo novo, a incomunicação e o encontro, entre tantos outros, são temas muito presentes. E o amor possível ou impossível tem um lugar de destaque, até porque o amor é busca do outro e busca de si mesmo. Ele faz parte visceral da natureza humana e é uma sensível confissão de que ninguém se basta sem a convivência com o outro, ainda que este encontro seja não mais que uma promessa e permaneça no universo da imaginação.

Na teia do morcego mistura dois universos bastante inusitados, a cidade de São Paulo e o personagem Batman. Como você trabalhou essa relação?
Nas minhas histórias reais e imaginárias, tenho especial prazer em recriar heróis, mitos, figuras históricas e astros até sacralizados pela sua história social ou artística, buscando revelar uma porção mais humana que tem pouco lugar no seu universo mítico e mitificado pelos veículos de expressão e pela mídia. O Batman, para mim o herói das histórias em quadrinhos mais humanamente expressivo, paradoxal e inquietante, que extrai do medo e das contradições existenciais a sua motivação para ser e existir, me pareceu uma presença bastante significativa para fazer um trajeto fictício por São Paulo e conviver com um leque de personagens que revelam, nas suas histórias individuais ou de grupo, sentimentos e situações muito presentes nessa suposta Gotham City: a incomunicação, a solidão da metrópole, a insegurança social e afetiva, o amor e o desamor. Isto numa narrativa bastante movimentada que fotografasse, em clima de suspense e realismo fantástico, encontros e desencontros de personagens que vivem e sobrevivem numa cidade regida igualmente pelo medo, pelos absurdos do cotidiano, pela própria aventura de viver e fazer sobreviver a história individual de cada um e um possível sentimento mais solidário nesse mundo.

Guilherme Magalhães

É jornalista.

Rascunho