Talvez seja pertinente iniciar a leitura da obra do chileno José Donoso pelo instigante ensaio Historia personal del “boom”, cuja primeira edição é de 1972. Mais do que uma proveitosa e esclarecedora lição sobre o que, de fato, significou o chamado boom da literatura hispano-americana, na década de 1960, trata-se de uma compilação de indícios extremamente reveladores da própria trajetória ficcional do autor, desde a publicação de seu primeiro romance Coronación (1957), passando por El lugar sin limites (1965) e pelo mais famoso e premiado El obsceno pájaro de la noche (1970), até o último, Lagartija sin cola(2007).
Vale a pena, nesse sentido, atentar ao que ali se propõe, ainda que o próprio escritor — de saída — explicite que seu intento não é o de definir, com rigor, o que teria sido aquele momento de guinada dos autores de língua espanhola (sobretudo da América Latina), mas sim o de deixar, por meio de sua experiência pessoal, um autêntico testemunho das fundamentais mudanças ocorridas naquele período.
Assim, segundo o que ele relata, antes de 1960 era muito raro ouvir falar em “romance hispano-americano contemporâneo”. Havia romances uruguaios e equatorianos, mexicanos e venezuelanos. Os romances de cada país permaneciam fechados dentro de suas fronteiras, enaltecendo os “assuntos locais”, voltados às próprias “paróquias”.
Hoje, passados tantos anos, seria praticamente impossível imaginar a agudíssima sensação de isolamento, asfixia e falta de estímulo em que se encontravam aqueles novos romancistas. A propósito, Ángel Rama afirmara que: “as grandes figuras prolongam seu poder por períodos tão extensos, que deixam a impressão de que em seus países cortaram raso a grama, de modo a impedir que tudo que é novo brote”.
Com efeito, Donoso conta que isso ocorria de tal forma que as obras consagradas eram elogiadas e estudadas nas escolas, universidades e em todas as instituições; e que a um escritor iniciante cabia apenas seguir-lhes os moldes, a fim de que seu futuros romances se parecessem com, por exemplo, Dona Bárbara, Don Segundo Sombra, El hermano asno, Los de abajo e La vorágine, pois esse procedimento não implicava nenhum risco, já que se tratavam de leituras obrigatórias, o que também era muito oportuno às empreitadas editoriais que a eles se dedicassem. Por outro lado:
Essa onipresença monumental dos grandes avós engendrou, como costuma acontecer nesses casos, uma geração de pais debilitados — devido ao ensimesmamento em sua curta tradição — e assim acabamos ficando sem os pais com quem gostaríamos de nos identificar; sem pais, é verdade, mas devido a esse vínculo que se perdeu, liberamo-nos, de certa forma, de uma tradição que nos escravizava, porque nossos pais nos interessavam muito menos do que os pais estranhos.
Oportuna orfandade
Daí porque, diante do vazio resultante dessa oportuna orfandade, muitos dos novos escritores daquela época, não suportando o evidente distanciamento de uma dicção literária auto-referente, arcaica e opressora, que nada mais lhes dizia, gradualmente, tornar-se-iam leitores vorazes dos que — muito além do claustro de suas fronteiras — lhes deslumbravam e formavam, tais como:
Sartre e Camus, Günter Grass, Moravia, Lampedusa; Durrell (para o bem e para o mal); Robbe-Grillet com todos os seus seguidores; Sallinger, Kerouac, Miller, Frisch, Golding, Capote; os italianos liderados por Pavese, os ingleses capitaneados pelos “Angry Young Men”, que tinham a nossa idade e com os quais nos identificávamos; tudo isso depois de ter devorado devotamente e digerido “clássicos” como Joyce, Proust, Kafka, Thomas Mann e Faulkner.
Diante desse cenário, é bastante plausível a hipótese do autor chileno de asseverar que o romance hispano-americano contemporâneo teria se afirmado, desde o início, como fruto de uma “mestiçagem”, de um desconhecimento da tradição, partindo — quase totalmente — de outras fontes literárias, uma vez que a “sensibilidade órfã” daqueles novos escritores (inclusive a dele) se deixara contagiar, sem titubeios, por norte-americanos, franceses, ingleses e italianos, que lhes pareciam mais íntimos e mais “próprios” do que seus legítimos ancestrais.
Entraves regionalistas
Donoso ainda denuncia, como um dos principais entraves à expansão e desenvolvimento da produção literária da época, a fixação pelos parâmetros ditados pelos chamados “costumbristas, regionalistas y criollistas”. Estes teriam contagiado, com seus cânones literários extremamente provincianos, outros escritores e críticos, conduzindo a um “empobrecedor critério mimético” na avaliação das obras que se produziam. Além disso e ao lado dos “criollistas”, a forte inclinação ao chamado “realismo social” acabou por erguer barreiras que, mais do que tudo, isolavam, uma vez que os apelos excessivos a que se tratassem dos importantes “problemas sociais” impediam quaisquer indagações formais. Assim ele descreve a limitadora situação:
Tanto a estrutura do romance como o enredo deviam ser simples, planos, descoloridos, sóbrios e pobres. Nosso rico idioma hispano-americano, naturalmente barroco, proteico, exuberante — assim elaborado pela poesia, talvez, porque já se aceitava que este era um gênero destinado à uma elite — viu-se como que amputado diante dos requisitos impostos pelo romance utilitário, destinado às massas que deviam tomar consciência. Desse modo, eram evitados o fantástico, o pessoal, os escritores raros, marginais, os que “abusavam” do idioma e da forma: com esses critérios, que primaram durante muitos anos, a dimensão e a potencialidade do romance ficaram, lamentavelmente, empobrecidas. Não é de admirar, então, que quando eu propus que se reeditassem Thomas Mann (José no Egito) e Virginia Woolf (As ondas) — dos quais a editora Zig-Zag possuía os direitos e excelentes traduções — a resposta foi a mesma: eram escritores para “especialistas” e não valia a pena reeditá-los…
Concluindo seu instigante raciocínio, o famoso autor nota que justamente como reação ao ensimesmamento desse “Olimpo defensivo e arrogante”, em busca de algum alimento vital, que lhes pudesse nutrir os ânimos, é que a maioria daqueles novos escritores partiu em busca do que havia além do claustro e das fronteiras, numa evidente fome de internacionalização. Daí porque o boom — em seu entendimento — tenha sido muito mais conseqüência desse processo de abertura ao novo do que sua causa.
A importância de Carlos Fuentes
Também coerente com essa sua convicção, ele elege, de forma exaltada — entre os diversos nomes que cita — o mexicano Carlos Fuentes (a quem inclusive dedica o romance O lugar sem limites) como o principal representante dessa ânsia por ruptura de barreiras:
Analisando o fenômeno, como sempre, a partir de meu ponto de vista pessoal, considero Carlos Fuentes como o primeiro agente ativo e consciente da internacionalização do romance hispano-americano da década dos anos sessenta. Ele me ofereceu uma nova visão e a necessidade de assumi-la, também como minha, tanto no que tangenciava o estritamente literário, quanto em assuntos mais profanos. […]
Quem sabe o maior deslumbramento que provocou em mim a leitura de La región más transparente tenha sido a sua não aceitação de uma realidade mexicana unívoca; foi a sua recusa às aparências. Sua atitude não era a de documentação, como a que os romancistas em meu ambiente costumavam fazer, mas sim a de indagação: perguntas, não respostas. E a excelência daquele romance residia no fato de que essa indagação não tinha nada de discursivo, mas ao contrário, estava profundamente enraizada na própria carne do romance. […]
Carlos Fuentes foi, assim, a figura literária mais impactante e influente no percurso de formação literária de José Donoso. Nosso autor afirma que La región más transparenterepresentou um verdadeiro divisor de águas em sua própria trajetória ficcional, uma vez que ele também — a partir de então — procuraria criar uma literatura que não esclarecesse nada, que fosse, ela mesma, “pergunta e resposta, indagação e resultado, verdugo e vítima; uma aventura existencial do autor em busca de si mesmo, um olhar que se voltasse ao indivíduo enquanto escreve, refletindo criticamente sobre sua própria escritura”:
Minha leitura de La región más transparente representou um impulso vital, um incentivo feroz para minha vida de escritor, a necessidade de emular — num misto de assombro e admiração — tudo o que daquela experiência estética me vinha e principalmente me inundar daquela luz que passava a invadir minha casa fechada.
Ambientes claustrofóbicos
Em boa medida, o melhor romance de José Donoso, traduzido entre nós por Heloisa Jahn como O obsceno pássaro da noite, pode ser lido como uma transfiguração da vivência — relatada, como vimos, pelo autor, em Historia personal del “boom” — daquele período de transição e de busca de afirmação de uma identidade literária.
Com efeito, o enredo está tão bem costurado à estrutura que é possível perceber nitidamente dois eixos de força básicos ao redor dos quais a narrativa oscila: a opressão asfixiante de ambientes claustrofóbicos — em que velhas decrépitas, antigas empregadas das oligarquias locais arrastam-se como sombras, com suas histórias, tiques e manias — e a insistente, mas vã, tentativa do escritor Humberto Penaloza de criar, por meio de sua obra, uma janela que se abra para fora daquele ambiente soturno — traduzindo, assim, a ânsia por ultrapassar as fronteiras da dicção regionalista, tão imperativa antes da década de 1960. Importa notar que esse romance foi publicado em 1970.
A clausura fantasmagórica é muito bem construída na Casa de Exercícios Espirituais de Chimba, em que vivem as velhas, algumas freiras, poucas jovens órfãs e Mudinho (o carcereiro, detentor de todas as chaves da casa) e remete ao aprisionamento ditado pelos parâmetros daqueles critérios literários redutores, adotados antes do boom, que cerceavam qualquer inventividade formal:
[…] que importância tem esse frio que se escoa pelas frestas das tábuas mal-ajustadas desde que estejamos juntas apesar da inveja e da cobiça, apesar do medo que vai travando nossas bocas desdentadas e franzindo nossos olhos remelentos, juntas para ir à capela ao entardecer em bandos porque dá medo de ir sozinha, penduradas umas nos farrapos das outras, pelos claustros, pelas passagens que parecem túneis que não acabam mais, pelas galerias sem luz onde talvez uma traça roce meu rosto e me faça soltar um grito agudo porque sinto medo quando me tocam no escuro se não sei quem está me tocando, juntas para expulsar as sombras que se desprendem das vigas e avançam espreguiçando-se diante de nossos olhos quando começa a penumbra.
Recuperando algumas lendas locais, superstições, feitiços e bruxarias e investindo nos relatos das velhas e de suas narrativas a fim de recuperar uma certa poética folclórica da oralidade, o narrador — que se multiplica e se escamoteia, transfigurado em mil disfarces, fruto também da feitiçaria criativa —, a uma certa altura, explica o que vem a ser o imbunche, que na tradição popular chilena é um monstro maléfico de rosto voltado para as costas que anda só com uma perna por ter a outra colada à nuca. A função desses seres horrendos era montar guarda aos tesouros escondidos das bruxas:
Porque é para isso, para transformar os coitadinhos dos inocentes em imbunches, que as bruxas os roubam e guardam em seus covis debaixo da terra, de olhos costurados, sexo costurado, cu costurado, boca, narinas, ouvidos, tudo costurado, deixando-lhes crescer os cabelos e as unhas dos pés e das mãos, idiotizando-os, pior que bichos, os infelizes, sujos, piolhentos, só conseguindo mover-se aos pulinhos quando o tinhoso ou as bruxas embriagadas lhes ordenam que dancem.
Crítica às oligarquias
A recorrência a essa figura, retomada da tradição autóctone, remete-nos, de imediato, à crítica aguçada ao poder das oligarquias locais e dos regimes tirânicos que submetem os mais fracos, alienando-os e fazendo com que permaneçam subservientes e resignados. Daí porque, também, uma possível chave de análise de alguns dos principais romances de Donoso (além deste, também, por exemplo, O lugar sem limites) gire ao redor da denúncia da violência sistemática praticada pelos chamados “caciques” das pequenas cidades chilenas — equivalentes, em parte, aos “coronéis” nordestinos de muitos de nossos romances —, detentores de imensas propriedades, que empregavam, submetiam e manipulavam um grande número de trabalhadores.
Mas se esse índice interpretativo acusa uma das mais sérias mazelas sociais (numa forte denúncia do processo de “idiotização” que certas ditaduras empreenderam por meio de toda espécie de violência e censura, como a de Pinochet no Chile), nosso autor não pára aqui e abre o leque polissêmico das infinitas releituras da cultura popular chilena, às quais se dedica o tempo todo no romance.
De certo modo, ao trazer à tona as crenças e os traços grotescos daquelas velhas feiticeiras com suas bruxarias e investindo no fantástico, ele transmuta para o plano ficcional uma vingança possível por parte dos mais fracos — análoga à resposta que os novos escritores da geração do boom deram à crítica obsoleta que vigia até então —, como se no plano da ficção, pelo menos, isso se viabilizasse:
O poder das velhas é imenso. Não é verdade que as mandam para esta casa para que passem seus últimos dias em paz, como eles dizem. Isto é uma prisão, cheia de celas, com grades nas janelas, com um carcereiro implacável tomando conta das chaves. Os patrões mandam trancá-las aqui quando se dão conta de que devem muito a essas velhas e se apavoram porque um belo dia essas miseráveis podem revelar seu poder e destruí-los. Os lacaios acumulam os privilégios da miséria. As comiserações, os engodos, as esmolas, as ajudinhas, as humilhações que eles suportam os tornam poderosos. Elas mantêm os instrumentos da vingança porque vão acumulando em suas mãos ásperas e verrugosas essa outra metade de seus patrões, a metade inútil, descartada, o que eles têm de sujo e feio e que, confiantes e sentimentais, lhes foram entregando juntamente como insulto de cada anágua gasta que lhes oferecem, cada camisa chamuscada pelo ferro de que as autorizam a apropriar-se. Como elas não teriam poder sobre seus patrões se lavaram a roupa deles e se encarregaram de todas as desordens e impurezas que eles quiseram eliminar de suas vidas?
Relativização do Belo
Além dessa interessante aposta na cultura empírica e no poder dos lacaios, associado ao que, clandestinamente, fica guardado no cesto de roupas sujas dos patrões, talvez a guinada formal mais interessante do romance seja a da criação de uma outra grande propriedade — a da Rinconada(projeção especular fantástica da primeira Casa dos Exercícios Espirituais de Chimba), em que só residem monstros, todos frutos da pena ficcional “enfeitiçada” de Humberto Penaloza — o personagem escritor do romance, que trabalha para Jerônimo Azcoitía, um poderoso oligarca de Chimba.
Assim, a narrativa de Penaloza (ficção dentro da ficção) nos conta que esse patriarca, vindo a gerar um filho monstruoso (verdadeira abjeção dentro do tronco genealógico da tradicional e perfeita família), ao qual dá o nome de Boy, decide construir um espaço à parte, totalmente isolado do resto do mundo e habitado apenas por outros seres deformados, a fim de que seu menino se habitue a achar “normais” os indivíduos que lhe estão ao redor. No fundo, o que aqui se propõe é uma total relativização dos conceitos dicotômicos de normalidade e anormalidade, um verdadeiro estremecimento das bases consagradas sobre o conceito de beleza:
Quando Jerônimo de Azcoitía finalmente entreabriu o cortinado do berço para contemplar o tão esperado rebento, teve vontade de matá-lo ali mesmo: aquele repugnante corpo nodoso retorcendo-se sobre sua corcova, aquele rosto aberto num vinco brutal onde lábios, palato e nariz desnudavam a obscenidade de ossos e tecidos numa incongruência de traços avermelhados… era a confusão, a desordem, uma forma diferente mas pior de morte. Até então a frondosa árvore genealógica dos Azcoitía, da qual ele era o último a ostentar o sobrenome, produzira apenas frutos seletos e sem jaça: políticos probos, bispos e arcebispos e uma beata de piedade espetacular, plenipotenciários no estrangeiro, mulheres de beleza deslumbrante, militares generosos com seu sangue e até um historiador de fama no continente inteiro[…]
Mas Jerônimo não matou seu filho… Isso teria sido ceder, integrar-se ao caos, ser vítima do caos… Agora, tanto as potências da luz como as da sombra eram igualmente suas inimigas. Ficara sozinho. Mas não tem necessidade delas. É forte e haverá de prová-lo, provará que existe outra dimensão, outros cânones, outras maneiras de apreciar o bem e o mal, o prazer e a dor, o feio e o belo.
Notamos nesse trecho, em interessante visada metaliterária, a importante reflexão desse narrador (fruto já da criação do personagem escritor Humberto) sobre os limites do conceito de beleza e, portanto, de Estética, vigentes na tradição literária obsoleta e auto-referente, que ditava os cânones da literatura hispano-americana, nos longos anos que antecederam o boom. Por meio da exaltação do monstruoso — aproveitando-se, ao máximo, dos recursos fantásticos de que se utiliza — Donoso, na verdade, escancara as janelas trancafiadas dos claustros em que só se conhece o que existe para dentro, iluminando e arejando, ficcionalmente, o próprio conceito de literatura de sua época. Mal comparando e utilizando a figura folclórica, recorrente no romance, do imbunche, monstrengo todo costurado pelas bruxas, que praticamente nem consegue respirar, seria como se apenas, por meio de uma total reviravolta nos critérios literários fechados de então, os novos escritores fossem gradualmente desalinhavando, descosturando aquelas pobres criaturas amordaçadas (similares aos próprios ficcionistas hispano-americanos, de cuja asfixia e isolamento, muito bem trata o autor em sua Historia personal del boom), a fim de reconduzi-las à vida.
Em boa medida, em O obsceno pássaro da noite, é possível perceber essa travessia do claustro obscuro à luz como metáfora sensível da derrubada das fronteiras de uma literatura que se voltava para si mesma, no momento em que passa a se abrir em direção ao mundo. Parece então que Donoso exorciza, no ato mesmo da escrita, os demônios, de cujos traumas não se consegue livrar com facilidade.
Elite de monstros
Ao criar para seu filho um universo à parte, o patriarca dom Jerônimo seleciona uma “elite de monstros”, de modo que “o mundo da normalidade ficasse relegado à distância e um dia desaparecesse”:
Porque a humanidade normal só se atreve a reagir diante das gradações habituais que vão do belo ao feio, que em última instância não passam de matizes da mesma coisa. O monstro, em compensação, afirmava dom Jerônimo apaixonadamente para contagiá-los com sua fé, pertence a uma espécie diferente, privilegiada, com direitos próprios e cânones particulares que excluem os conceitos de beleza e feiura como categorias insuficientes, já que na essência, a monstruosidade é a culminação das duas qualidades sintetizadas e exacerbadas até o sublime. Os seres normais, aterrorizados pelo excepcional, trancafiavam-nos em instituições ou em gaiolas de circo, acossando-os com o desprezo para despojá-los do seu poder. Mas ele, dom Jerônimo de Azcoitía, haveria de devolver-lhes suas prerrogativas duplicadas, centuplicadas.
Por meio do resgate da tradição popular, das lendas locais, com suas feitiçarias e crenças e pela investida no fantástico, trazendo no corpo mesmo de sua ficção os embates teóricos do autor/fingidor/criador; em busca de uma dicção que lhe seja própria, numa profícua discussão a respeito do estético, em que o que foge totalmente aos cânones (aqui representado pelo monstruoso) é elevado à altura do sublime, José Donoso faz com que O obsceno pássaro da noite seja, sem dúvida alguma, um dos romances mais representativos de toda uma linhagem de escritores latino-americanos, ávidos por transformar o panorama literário de seus próprios países.
Variações do Inferno
Outra obra importante do autor (embora menos pretensiosa que a primeira) é O lugar sem limites, publicado no Chile em 1965 e cuja edição recente no Brasil, empreendida pela Cosac Naify, é bastante refinada.
Chama a atenção, de saída, a epígrafe extraída de um diálogo entre Fausto e Mefistófeles da peça teatral Doutor Fausto, do inglês Christopher Marlowe (1598), que vale a pena transcrever:
Fausto: Primeiro irei interrogá-lo sobre o inferno.
Diga-me, onde é o lugar que os homens chamam de inferno?
Mefistófeles: Debaixo do firmamento.
Fausto: Está bem, mas onde?
Mefistófeles: Nas entranhas desses elementos, onde somos torturados e ficamos para sempre: o inferno não tem limites, não se localiza num só lugar; porque o inferno é onde estamos, e onde for o inferno, lá estaremos para sempre…
É dessa epígrafe que advém o título do romance, que trata, basicamente, da história de um travesti, Manuela — na verdade, Manuel González Astica —, e das dificuldades que enfrenta diante da hipocrisia de uma sociedade que não admite as diferenças e que por isso não deixa de remeter às situações infernais, em que muitos são aniquilados pela violência preconceituosa de todo tipo.
Comparado ao Obsceno pássaro da noite, que é, de fato, a obra mais ousada do autor em termos de inovação formal, este pequeno romance, menos inventivo, é narrado a partir de uma ótica de representação mais realista.
Manuela tem uma filha adolescente — Japonesita — com quem vive no prostíbulo que lhes pertence, uma vez que a mãe da menina, conhecida como Japonesa Grande, morrera. O lugar traduz, em parte, a miséria e as dificuldades enfrentadas pelas prostitutas do pequeno vilarejo de El Olivo, que espera há tempos algum tipo de melhoria, prometida pelo “cacique” oligarca que comanda tudo e todos na região, Don Alejo. Interessante observar o quanto os chefes do poder submetiam e manipulavam os mais fracos — a ponto, inclusive de fazê-los acreditar em suas “boas intenções”, que ao fim e ao cabo, apenas se traduziam na manutenção de suas próprias riquezas e no total esquecimento das promessas feitas com o intuito de obtenção de votos.
O modo como Manuela descreve o poderoso patriarca revela o quanto sua consciência alienada — em boa medida comparável à idiotização sofrida pelos imbunches do primeiro romance que analisamos — não lhe permite fazer a crítica necessária aos detentores arbitrários do poder nesses lugarejos abandonados do território chileno:
As varilhas das vinhas convergiam até as casas da granja El Olivo, rodeadas por um parque não muito grande, mas parque mesmo assim, e pela aglomeração de ferrarias, leiterias, tanoarias, galpões e depósitos de vinho de Don Alejo. Manuela suspirou. Tanto dinheiro. E tanto poder: ao herdar, mais de meio século antes, Don Alejo mandara construir a estação El Olivo para que o trem parasse ali mesmo e levasse seus produtos. Tão bom que era Don Alejo. O que seria dos moradores do lugar sem ele? Andavam dizendo que agora sim era verdade que o senhor ia conseguir que instalassem luz elétrica no povoado. Tão alegre e nem um pouco metido, e isso sendo senador e tudo. Nada a ver com certas pessoas que achavam que só por ter voz áspera e cabelo no peito podiam sair insultando os outros.
Violência machista
A visão idealizada de Manuela sobre o chefe do lugar encontra seu contraponto na figura de Pancho Vega — a vida inteira empregado do senador —, que decide se liberar das garras poderosas e onipotentes que o mantinham, desde sempre, dependente, já que:
Todo mundo conhecia Don Alejo. Todo mundo o respeitava. Tinha os cordéis de todo mundo presos nos dedos.
O mandonismo político, aqui metaforizado, assume a dimensão de um teatro de bonecos, em que os títeres (todos os que o bonequeiro comanda) acabam, literalmente, nas mãos do onipotente oligarca.
Mas além de exacerbar as mazelas sociais decorrentes desse tipo de estrutura de poder, muito comum em certas regiões de toda a América Latina — inclusive bem semelhantes a alguns lugares do nordeste brasileiro —, a questão crucial que é tematizada no romance é a da violência praticada contra Manuela, que vai envelhecendo no mísero povoado, sonhando com uma cidade diferente, em que houvesse espaço para indivíduos como ela:
Ia ajustar o vestido aqui na cintura e aqui na bunda. E se vivesse numa cidade grande, dessas onde dizem que tem carnaval e onde todas as loucas saem pela rua dançando, vestidas com suas melhores roupas, e se divertem muito e ninguém diz nada, ela sairia vestida de espanhola. Mas aqui os homens são idiotas, como Pancho e seus amigos. Ignorantes. Alguém lhe dissera que Pancho andava com uma faca. Mas não era verdade. No ano passado, quando Pancho quase batera nela, tivera presença de espírito de apalpar o estúpido por todos os lados: estava sem nada. Idiota. Tanta conversa contra as coitadas das loucas, e a gente não faz nada com eles… e quando ele me imobilizou com os outros homens, bem que me deu uns agarrões, não eram agarrões inocentes, então com a idade e a experiência a gente não ia perceber? E furioso porque a gente é bicha, nem sei direito o que ele falou que ia fazer comigo. Quero só ver, sem-vergonha, safado. Me dá uma vontade de vestir a roupa de espanhola na frente dele para ver o que ele faz.
Xenofobia e chauvinismo
Apesar de viver o inferno existencial de sua condição, num lugar extremamente limitado e limitador, Manuela representa, de modo complexo, a irreverência do poder dos que estão à margem dos sistemas. Com efeito, o romance se desenvolve de modo a provar que — tanto quanto as velhas bruxas empregadas trancafiadas na Casa dos Exercícios Espirituais de Chimba, que sabem tudo sobre as roupas sujas das vidas de seus patrões — esse travesti, tão aparentemente desamparado, detém a força dos que, por existirem de modo autêntico, desestabilizam as bases de sociedades machistas e hipócritas.
Ainda que O lugar sem limites não alcance a dimensão inovadora de O obsceno pássaro da noite, nele também ouvimos ecos da voz do autor, quando em sua História personal del boom atentava para o fato de que enquanto os romancistas hispano-americanos ficassem reféns de sua eficácia prática e não de sua eficácia literária, estariam preconizando “a xenofobia e o chauvinismo”.
Elegendo a margem, dando voz ao que é fantástico e monstruoso — numa reviravolta questionadora sobre o conceito de Estética — escolhendo problematizar temas que, à época, encontravam todo tipo de resistência, José Donoso merece ser lido e conhecido tanto quanto seus parceiros de trajetória, que constituem o melhor fruto resultante da transição que se operou a partir dos anos sessenta na literatura hispano-americana, tais como Gabriel Garcia Marquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, entre tantos outros.