“Tudo o que é sagrado é profanado. Tudo o que é sólido desmancha no ar.” Assim o aforismo dos então jovens Karl Marx e Friedrich Engels, no Manifesto comunista, procurou acompanhar o movimento contraditório da modernidade — a ascensão bombástica do capitalismo que traz de roldão a ruptura dos valores consuetudinários e ossificados. Pelo prisma dos barbudos alemães em questão, a modernidade traz à tona um niilismo revolucionário que põe em xeque todo e qualquer valor antes referendado pela tradição. Não à toa, o historiador Eric Hobsbawm chegou a afirmar que os duzentos anos posteriores à Revolução Industrial e à Revolução Francesa transformaram mais a história humana do que todo o período anterior desde o surgimento do homo sapiens.
Outro barbudo também (per)seguiu de modo rente as contradições que passaram a submeter tudo o que era sagrado — e, até então, inquestionável — à mais contínua profanação. Suas personagens levaram às últimas conseqüências o moderno princípio da negação. O escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) procurou refletir, narrativamente, sobre o novo momento histórico que, ao postular teses revolucionárias, pressupõe um obscuro subsolo de antíteses que corrói a fundamentação ética das ações e relações humanas.
Lógica subterrânea
“Eu sou aquele que tudo nega.” A máxima de Mefistófeles, o espírito malévolo que assola o Fausto, de Goethe, bem poderia ser atribuída — e incorporada — pelo jovem estudante de Direito Ródion Romanovitch Raskólnikov, protagonista de Crime e castigo(1866). Raskólnikov é um pobretão que mal consegue custear os estudos — motivo que, ao fim e cabo, faz com que tenha que abandonar a faculdade. O teto abaulado de seu quarto, um sótão, verga suas muitas idéias. Mas, para pensar, é preciso pagar o aluguel há muito em atraso. Ainda assim, Raskólnikov caminha em meio à febre de suas reflexões. Sim, porque Napoleão sequer hesitava diante da carnificina de seus soldados nos campos de batalha. Como se a história precisasse de cadáveres como força motriz. Os gritos lancinantes de dor lubrificam as engrenagens. Os mesmos gritos que o generalíssimo francês não ouve. Afinal, um soldado deve lutar. Assim pensam os homens extraordinários — prossegue Raskólnikov —, aqueles que vieram ao mundo para legislar, aqueles diante de quem a massa ordinária deve se curvar. Se Deus já não existe, o deus terreno, Augusto César Napoleão, não deve se importar com o “não matarás”. Quem tem algo a dizer para a humanidade não pode estacar diante de escrúpulos comezinhos. (Se Raskólnikov tivesse vivido para conhecer Ióssif Vissariónovitch Djugashvili, também conhecido como Stálin, o líder soviético lhe ensinaria que uma única morte, de fato, é uma tragédia; um milhão de vítimas tornam-se material estatístico.)
Raskólnikov pretende se autoproclamar imperador como o fez Napoleão. Não falta muito, todo o plano já foi esboçado, o jovem está a um passo da realização. Um único detalhe — bem pequeno, na verdade — o distancia do trono: ocorre que Raskólnikov, sem ter onde cair vivo, precisa vender o almoço para poder jantar. (O café da manhã também é negociável.) Logo, o ex-estudante de Direito precisa empenhar seus derradeiros objetos de valor para Aliona Ivanovna, a velha usurária que o explora, o piolho cuja existência, sempre segundo Raskólnikov, só faz emperrar seus planos para proceder à imitação de Alexandre, o Grande, isto é, para fazer com que a humanidade efetivamente evolua. Mas e se o piolho usurário se transformar no primeiro grande teste para saber se Raskólnikov está além do populacho? Uma vil exploradora não pode fazê-lo tremer. Em face dos soldados que morriam em pé congelados pelo general inverno russo, Napoleão fazia um trocadilho espirituoso, dava de ombros e, quando de sua volta a Paris, era ovacionado pela multidão pronta a fornecer mais buchas de canhão para as guerras do imperador. Eis que o dostoievskiano não hesita e prepara sua machada. Golpes secos rompem a têmpora de Aliona Ivanovna. Como imprevistos não apenas acontecem, mas, sobretudo, despencam, a irmã da velha usurária aparece no apartamento de Aliona Ivanovna bem no momento em que o carrasco Raskólnikov está diante do cadáver endinheirado. Uma única morte é uma tragédia; duas, uma decorrência. De um momento para o outro, Ródion Romanovitch Bonaparte transforma-se em um duplo homicida.
Que lógica subterrânea alicerçou as ações de Raskólnikov? Quais os princípios de seu cálculo? Tudo o que é sagrado é profanado: ao invés de apreender que é um indivíduo que vive e convive em sociedade, que estabelece relações com os demais, que os outros fazem parte de sua formação, Raskólnikov só faz observar a alteridade como massa de manobra, isto é, como instrumento para seus próprios fins utilitários. Seu cálculo maximiza os próprios interesses e transforma o outro em alavanca. Se, no limite, for preciso prescindir do outro, que assim seja. A usurária Aliona Ivanovna de fato pôde atestar que tudo o que é sólido desmancha no ar. Ora, não estamos diante dos primórdios da lógica concorrencial que estrutura o capitalismo? Raskólnikov se quer um legislador, um revolucionário. Assassina uma das agentes da burguesia. Mas, curiosa e contraditoriamente, a lógica que estrutura sua ação só pode ser considerada revolucionária diante da completa vacuidade ética que estabelece em relação à tradição do “não matarás” oriunda do decálogo de Moisés. No mais, Raskólnikov lança mão de um princípio relativista que transforma o eu, o ego, em princípio único de todas as coisas. Se o indivíduo vivesse em uma bolha auto-gerida, não haveria grandes dilemas. Ocorre que o homem, a despeito do hedonismo de Raskólnikov, é um animal social. Supostamente emancipatório, o cálculo utilitário do protagonista de Crime e castigo traz à tona o princípio regressivo que passará a estruturar a modernidade. A guerra de todos contra todos.
Cálculo abstrato
O transcurso posterior do romance, cuja primeira parte termina com o duplo homicídio cometido por Raskólnikov, narrará uma dolorosa dialética entre o crime e o castigo. Raskólnikov precisará caminhar com o fardo de ter aspergido sangue alheio. O jovem terá que se submeter ao exame da própria consciência — e de sua inescapável vaidade. Se sofre por conta de suas vítimas, será mesmo Raskólnikov um Napoleão? A despeito de sua megalomania, não fará o ex-estudante de Direito parte da massa ordinária que tanto despreza? Nesse momento, se levarmos as questões de Raskólnikov às últimas conseqüências, isto é, se lançarmos mão do mesmo princípio de escatologia criativa estruturado por Dostoiévski, poderemos perguntar se tais angústias e agruras ainda permanecem atuais em meio à nossa sociedade.
Ainda que Raskólnikov estivesse caminhando entre as ruínas do cristianismo como cosmovisão socialmente estabelecida, o decálogo de Moisés, nos primórdios da modernidade, continuava a calar fundo em meio imaginário coletivo. A profunda dor moral que o jovem homicida sente pode ser relacionada ao peso da tradição que o socializou. O cálculo utilitário ainda era embrionário. Vale frisar que Raskólnikov foi o mentor e o executor da idéia. A sociedade contemporânea, cada vez mais distante do ethos religioso, tornou mais complexo e introjetado o cálculo utilitário de que Raskólnikov lançou mão. Senão, vejamos.
Quantos judeus as mãos de Adolf Hitler mataram durante os doze anos de seu III Reich? Stálin viajou de trem Rússia oriental adentro com os milhões de condenados aos campos de concentração da Sibéria? Harry Truman, o presidente estadunidense que trouxe o crepúsculo fosforescente a Hiroshima e Nagasaki, viu milhares de japoneses suportarem uma elevação de temperatura da ordem de 5,5 milhões de graus centígrados? A cadeia de comando mediada pelas instâncias burocráticas cria uma legião de cúmplices. A burocracia dilui a culpa. Deus escreve torto por linhas certas: dentro de gabinetes amplos e bem guarnecidos, as assinaturas de Truman, Stálin e Hitler decidiram, abstrata e concretamente, o destino da história. A abstração se deve ao fato de que os líderes em questão jamais tiveram que se deparar com a dor moral de um Raskólnikov. Ou será que abrir as vísceras de um ser humano com uma baioneta — ouvi-lo gritar, ver o moribundo estrebuchar — é o mesmo que dar um telefonema ou apertar um botão? O capitalismo tardio refinou sobremaneira os princípios do cálculo utilitário. Hoje, tomar o outro como instrumento já se transformou em uma segunda natureza. Um empresário precisa aquiescer prontamente com a eventual demissão de cinco mil funcionários — e suas famílias. A lei é impessoal. Se o princípio da concorrência não for respeitado e reproduzido, a caridade deverá cortar a própria carne para (tentar) sobreviver. A falência será a recompensa da solidariedade. Guerra de todos contra todos.
Uma personagem dostoievskiana que não foi concebida pelo escritor russo nos pode fornecer outra pista sobre o arrefecimento social da culpa: Rudolf Hoess, comandante de Auschwitz. Em sua autobiografia, escrita pouco antes de Hoess ser enforcado pelos poloneses em frente ao forno crematório que destinava às vítimas do Reich, o nazista descreveu alguns experimentos para otimizar a eficiência industrial do campo de concentração que administrava. Narra Hoess que, nos primórdios de Auschwitz, as execuções eram feitas por um pelotão de fuzilamento. Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: os corpos e seus pertences forneciam os insumos para a economia do campo. Dentes de ouro para a Suíça, cabelos para fardas, pele para forrar os abajures dos oficiais de altas patentes, carne e ossos para adubo. O único problema era o escoamento industrial dos corpos. Soldados perfilados acabavam fuzilando milhares de pessoas em um só dia. Sangue jorrava aos borbotões. Gritos e mais gritos. Lamúrias, súplicas ajoelhadas, “pelo amor de Deus, por piedade!”. Segundo Hoess, o ser humano ainda não se tornou uma máquina imune ao superaquecimento. Após uma estressante jornada de trabalho, os carrascos iam beber nas tavernas ao redor de Auschwitz e, subitamente, começavam a delatar o que faziam. Muitos continuavam a fuzilar fora da jornada de trabalho, o que, sempre segundo Hoess, exorbitava indignamente as funções homicidas. Outros passaram a apontar as armas para a própria têmpora. Suicídios em massa. Que fazer?! — pergunta o comandante angustiado. Que fazer?! Hoess caminhava de um lado para o outro como a areia da ampulheta, até que um método bastante racional — vale dizer, profundamente utilitário — lhe veio à mente: e se empregarmos o gás Zyklon B, que vinha sendo utilizado em Berlim para asfixiar débeis mentais na carroceria de caminhões, para substituir os pelotões de fuzilamento em Auschwitz? Eureka! As câmeras de gás diminuem os custos de produção letal. O Zyklon B é mais barato do que as armas e sua munição. Uma câmera de gás comporta mais de quinhentos corpos, ao passo que um paredão de fuzilamento dificilmente perfila mais de vinte condenados. E aqui está o ganho mais evidente: o sofrimento é silenciado por portas hermeticamente vedadas. O carrasco desaparece com o gás. Quem matou as vítimas? Uma impossibilidade físico-química, uma limitação dos pulmões. Os antigos carrascos só precisam dizer aos prisioneiros: vocês tomarão banhos de desinfecção. Os algozes, a bem dizer, tornam-se meros supervisores com o implemento das câmaras de gás. O sangue deixa de jorrar. Quando entrávamos nas câmaras de gás após as contínuas sessões, encontrávamos corpos ilesos. Nenhum arranhão, nenhuma escara. Cadáveres como todos nós um dia seremos. E, afinal de contas, o Zyklon B lhes trouxe uma solução mais racional. Em Auschwitz, a morte deixa de ser uma temeridade. Em Auschwitz, a morte passa a ser uma redenção.
Se acompanharmos a lógica de criação dostoievskiana — o princípio criativo que persegue os sentidos e os ressentimentos da história em devir, isto é, levando-os às suas derradeiras conseqüências lógico-práticas, fazendo-os desembocar em ações e reações limítrofes —, diremos que Ródion Romanovitch Raskólnikov prenunciou Rudolf Hoess. Daí o caráter profético que muitos estudiosos atribuem a Dostoiévski. De qualquer forma, o comandante nazista cindiu Raskólnikov em uma série de instâncias burocrático-diretivas: o gás etéreo desemprega o antigo carrasco; os algozes supervisionam; Hoess comanda sob a bênção de Hitler que, em Auschwitz, não passa de uma foto emoldurada no gabinete do burocrata letal. Apenas as vítimas permanecem no corredor polonês. Vale frisar que o sobrenome Raskólnikov funda-se sobre a cisão — em russo, raskol. Aquele que antes tinha que executar o crime para posteriormente sofrer com o peso do castigo socialmente vinculado à consciência agora só precisa ser bem-sucedido, isto é, apenas tem que subir os degraus hierárquicos para se distanciar cada vez mais do assassínio.
Impasses do novo tempo
Mas os leitores deste ensaio dostoievskiano poderiam me perguntar: e quanto à redenção em Dostoiévski? Haveria alguma possibilidade de síntese emancipatória em meio ao entrechoque encarniçado de teses e antíteses contraditórias?
Eis que desponta o Príncipe Míchkin, protagonista de O idiota(1869). Míchkin vive segundo a máxima de que “a beleza salvará o mundo”. Dostoiévski o concebeu como uma fusão entre Jesus Cristo e Dom Quixote. Cristo, o Sermão da Montanha e o oferecimento da outra face a partir do amor mútuo. Quixote, o cavaleiro de La Mancha e o sonho de que os valores nobres não se arrefecessem; assim, para driblar a realidade, para tornar o sonho menos perecível, Quixote concebe um segundo sonho ainda mais onírico, uma fantasia ainda mais distante da realidade — o Príncipe Míchkin poderia chamá-la de utopia, seu norte de fraternidade. Mas a missão cristã de Míchkin não será fácil. De um lado, temos Rogójin, profundo niilista, de quem Míchkin se aproxima desde a primeira cena do romance, quando ambos voltam a São Petersburgo na mesma cabine do trem. Míchkin sentirá por Rogójin compaixão e amizade. Rogójin, por sua vez, anuncia desde os primórdios de suas conversas com Míchkin que seria capaz de matar a belíssima Nastácia Filíppovna, por quem se sente profundamente apaixonado. E eis que o imbróglio dostoievskiano acaba transformando Nastácia primeiramente em esposa de Míchkin e, depois, em amante de Rogójin. Míchkin se apieda pelo passado tétrico de Nastácia, que fora explorada desde cedo por Totski, aristocrata lascivo que, entrevendo a beleza vindoura da então adolescente, passou a mantê-la como concubina no “chalé das delícias”, a casa de campo de suas orgias. A paixão doentia de Rogójin de fato leva Nastácia ao patíbulo. Rogójin assassina aquela que também havia sido a bem amada de Míchkin, aquela que o Cristo quixotesco de Dostoiévski tanto queria redimir. E agora, Príncipe, que fazer? Se Míchkin julgar Rogójin sem mais — “assassino impiedoso!” —, o que acontecerá com a lógica piedosa do Sermão da Montanha? Mas, ora, quem fere os dez mandamentos não deve ser apedrejado? Que diz Jesus Míchkin a esse respeito? Assim narrou o Príncipe Quixote: os fariseus levam a Cristo uma adúltera. Segundo a lei consuetudinária, a mulher deve ser apedrejada fora dos muros da cidade. Se Jesus corroborasse tal lei, obedeceria à tradição, mas renegaria o Sermão da Montanha e a lógica da compaixão. Se, por outro lado, Cristo abraçasse a adúltera, a lei de Moisés seria enxovalhada. Que fazer? Eis uma dicotomia inelutável entre a justiça e o amor, a clava e o perdão. Que fazer? “Jesus se inclinou para frente e escrevia com o dedo na terra. Como todos insistissem, ergueu-se e disse-lhes: ‘Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra’. Inclinando-se novamente, escrevia na terra. A essas palavras, sentindo-se acusados pela sua própria consciência, eles se foram retirando um por um, até o último, a começar pelos mais idosos”. (João, 8, 6-9)
Se a compaixão de Cristo abre os braços para afagar o assassino, que dizer do corpo inerte e esfaqueado de Nastácia a clamar por justiça? Rogójin deve voltar a conviver em meio à sociedade que ultrajou? Que fazer se houver uma nova falta, um novo assassínio? Será mesmo possível abrir mão da retaliação, do evangelho segundo Talião, para oferecer a outra face? “Então Pedro se aproximou dele e disse: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?’ Respondeu Jesus: ‘Não digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’” (Mateus, 18, 21-22) Para a humanidade que está acostumada à lógica do bode expiatório, à necessidade de encontrar alguém a quem culpar, o perdão caridoso que só faz oferecer a outra face pode se confundir com sucessivas notas promissórias para voltar a infringir. Ademais, o Sermão da Montanha de Jesus Míchkin não tem enraizamento histórico. Se o protagonista de O idiotaquiser conciliar o perdão ao assassino Rogójin às condolências por sua amada Nastácia, terá que passar por uma cisão não menos destrutiva que a ruptura enfrentada por Raskólnikov. Parece impossível haver uma síntese. Rogójin e Nastácia se repelem com tanta força quanto dois pólos que possuem a mesma carga eletromagnética. Para permanecer cristão, isto é, para abraçar a ambos, que poderá Míchkin fazer?
A solução que Dostoiévski oferece para o impasse de Míchkin torna a resolução ainda mais irresoluta.
Como Míchkin não pode conciliar o perdão a Rogójin com a piedade por Nastácia neste mundo, o Quixote de Dostoiévski acaba realizando a imitação de Cristo: o Príncipe Míchkin se oferece em holocausto, sua razão se cinde, O idiotade fato fica louco. Com o estilhaçamento de si mesmo, com a crucificação de sua sanidade, Míchkin permanece tão cristão quanto Dom Quixote continua a ser um cavaleiro medieval em meio à modernidade. Somente o sonho pôde resguardá-lo. Ainda assim, não se pode dizer que Míchkin optou por Rogójin ou Nastácia. Diante da impossibilidade de viver em comunidade com ambos, Dostoiévski narra uma resolução que permanece historicamente irresoluta para que seu novo Cristo prolongue o dilema que vitimou o Messias original. Se, a partir de Raskólnikov, Dostoiévski pôde refletir sobre as origens e os desdobramentos do cálculo utilitário, o Príncipe Míchkin e sua idiotia necessária nos fazem pensar sobre os obstáculos que se contrapõem à reestruturação da humanidade sobre novas bases.
Dialética dostoievskiana
— A beleza salvará o mundo, Míchkin? — pergunta Ivan Karamázov, um dos protagonistas de Os irmãos Karamázov (1879), o grande intelectual niilista concebido por Dostoiévski (“minha maior criação literária”, teria dito o escritor russo). — A beleza salvará o mundo, caro Míchkin? Mas e o mundo, Príncipe, o mundo salvará a beleza?
A Ivan Karamázov é atribuído o aforismo que norteara as ações de seu ancestral Raskólnikov: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Deus seria a salvaguarda dos valores morais, o pilar transcendental da ética. Sem a instância divina, tudo se tornaria relativo, tudo seria permitido. O pai de Ivan, Fiódor Pávlovitch Karamázov, há muito põe em prática o relativismo ético que lhe permite exercer a lascívia e se afogar na embriaguez por onde quer que vá. Até que um dia o bufão Karamázov faz uma aposta com os amigos de orgia:
— Vocês duvidam que eu mande ver naquela retardada da Smierdiakova? É só me pagar, meus caros, e eu farei caridade àquela alma que talvez nunca tenha visto um homem ereto. Vamos, vamos, duvidam?
Se Deus não existe, tudo é permitido: aposta feita, estupro consumado. Nove meses depois, a demente Smierdiakova, uma pobre criatura que mal sabia estar viva, acaba parindo, ou pior, “cagando” Smierdiakov — smierd, triste sobrenome que manda o filho do estupro à merda. Smierdiakov, irmão bastardo de Ivan, torna-se um reles serviçal na casa do Pai Karamázov.
A mesma lógica que fez com que Raskólnikov considerasse inútil a existência da velha usurária Aliona Ivanovna desponta para Ivan sempre que o intelectual niilista descobre que o pai pândego — e proprietário de uma bela herança — ainda não deixou de respirar. Ora, talvez seja possível dar um empurrãozinho para que o velho role despenhadeiro abaixo. A obra de Dostoiévski, que já lidara com o homicídio e a (im)possibilidade de redenção cristã, agora se vê diante do parricídio, a grande decorrência simbólica da máxima de Ivan: se Deus não existe e tudo é permitido, é preciso aniquilar os últimos vestígios de Deus Pai.
Mas Ivan é um legítimo Karamázov. Conceber o parricídio em termos intelectuais é algo bem distinto de executá-lo. Ivan, o mentor, precisa de um lacaio. Alguém que não tenha sido socializado devidamente. Alguém que não sinta o peso atávico da tradição sobre as costas. Alguém que possa transformar o ressentimento em ação. Alguém que possa transformar o ressentimento em revolução. Ecce homo, eis o homem:Smierkiakov, o bastardo.
A admoestação de Dostoiévski em Os irmãos Karamázovse mostra profundamente premonitória quando pensamos na União Soviética ilhada pelo Arquipélago Gulag de Stálin. Não se trata de dizer que o escritor era um reacionário que pretendia se contrapor sem mais aos movimentos emancipatórios. Em sua juventude, Dostoiévski fizera parte de um grupo revolucionário que se contrapunha ao regime tsarista, o Círculo de Petrachévski. Por conta de sua participação, foi condenado a um degredo siberiano para trabalhos forçados durante seis anos, após os quais, em um curioso paradoxo russo que coage um antigo prisioneiro político a servir ao exército, Dostoiévski teve que permanecer junto às forças armadas por outros quatro anos. Na Sibéria, as Recordações da casa dos mortos(1862) puderam lhe mostrar que a intelligentsia russa estava efetivamente apartada do miseralato sintetizado por Smierdiakov. O parricídio intelectual concebido pelos revolucionários tomaria dimensões incontroláveis se fosse comandado pelo ethos ressentido de Smierdiakov.
Definir inequivocamente as tendências políticas de Dostoiévski — crítico ou apologista da modernidade — me parece algo que limita o espectro dialético de suas discussões. Se o considerarmos um escritor que acompanha o movimento irresoluto das contradições históricas, será possível dizer que sua obra permanece atualíssima não somente em relação à pujança das narrativas que tanto nos obsedam, mas também por conta de suas premissas escatológicas que nos permitem continuar a pensar de maneira limítrofe. Raskólnikov Smierdiakov, presidente de uma corporação multinacional; Smierdiakov Raskólnikov, chefe de uma quadrilha de entorpecentes. A lógica utilitária se insinua pelas classes sociais antagônicas, mas possui diferentes matizes niilistas de acordo com a inserção que a sociedade (não) propiciou às distintas máscaras das personagens dostoievskianas. Mesmo o ímpeto da redenção cristã, tão caro a Dostoiévski, é narrado a contrapelo de si mesmo, isto é, na esteira de suas contradições, no limite de suas impossibilidades. Ao invés de reconciliar teses e antíteses que ainda não encontraram sínteses em meio à história, as estórias urdidas pela escatologia criativa nos fazem pensar sobre novos contextos e premissas dostoievskianas. A dialética faz com que imaginemos Dostoiévski a partir de si mesmo e contra si mesmo. Enquanto a modernidade capitalista continuar a relativizar o substrato ético de nossas ações, os sentidos da história caminharão a reboque de seus ressentimentos. Tudo o que é sagrado é profanado, mas nem tudo o que é sólido desmancha no ar.