Carnaval, desengano

Resenha do livro "Tangolomango", de Raimundo Carrero
Raimundo Carrero, autor de “Tangolomango”
01/07/2013

Num determinado momento de sua carreira, o escritor Raimundo Carrero estabeleceu a disposição de construir uma obra uníssona, coesa, refletindo sobre o novo caráter do homem nordestino. Numa visão retrógrada e mesquinha, a primeira impressão seria de um neo regionalismo, um salto além do maniqueísmo social do Romance de 30. Nada mais universal que o conceito literário de Carrero. Ele apanha a cor local e lhe dá uma dimensão humana e global. É, enfim, o homem contemporâneo e todos os seus dramas que inquietam o escritor.

Em seu novo romance, Tangolomango — Ritual das paixões deste mundo, Carrero, como ele próprio explica no final do volume, segue contando os tormentos da família de Ernesto e Dolores, “uma família ficcional corroída pelo incesto e pela devassidão”. Toda saga inicia com o romance Maçã agreste, publicado em 1989, e segue por seis outros volumes, um ainda a sair. Todo este painel dá uma ampla dimensão das angústias do homem, preso sempre à carga cultural incrustada na alma e a todos os desejos de rompê-la.

Sol e sombras
Diante dessa reflexão intensa e consciente sobre o homem e sua circunstância, Carrero conta de tia Guilhermina, uma mulher de meia idade, ainda bela, sensual, solteira e maculada pela paixão que nutre pelo sobrinho, Matheus, preso por ter supostamente matado e estuprado a mãe e a irmã. “A verdade é que o piano de tia Guilhermina tinha alguma coisa de erótico, de sensual, capaz de provocar arrepios, queimor na carne e até desmaios. E ganhara outro apelido, tia Malagueta.”

Num dia de carnaval essa Guilhermina resolve expor toda sua sedução, e cai no frevo que infesta o Recife. Entre glórias e fracassos, ela vai aumentando sua carga de angústia, vai alimentando a pergunta que intimamente a corrói — Onde estão os requisitos da felicidade e da paz?

Toda metáfora carnavalesca está na dicotomia entre felicidade e prazer, dor e falência. Guilhermina desperta paixões, mas há todo um jogo carnal que a macula e deprime. Quando irão prevalecer suas outras qualidades, além da beleza e da sensualidade? Mesmo no meio de uma festa consagrada aos devaneios da carne, ela procura consistências nos homens, e pouca coisa encontra além de uma solidariedade fortuita e vazia, e muita agressividade. O carnaval, enfim, só deixa espaço para outras desilusões.

Aliás, toda prosa de Carrero se pauta pela dualidade, por aquilo que ele mesmo define como o encanto pelo sol e as sombras. Esse conflito o leva a trabalhar com personagens dúbios, meio fantasmagóricos que passam por sua ficção carregando maldições e sonhos. Neste aspecto, nada se pauta pelo rés do chão, pelo vazio: são profundezas abissais em que o escritor mergulha. E isso desde sempre, desde personagens fortes, marcantes e contraditórios como Bernarda Soledade, de 1975, e o comissário Félix Gurgel, em 1984.

Rodopio psicológico
Vindo da estética construída a partir do Movimento Armorial, liderado por Ariano Suassuna no início dos anos de 1970, Raimundo Carrero aprendeu que os conflitos nordestinos estão muito além dos conceitos sociais. O homem ali formado carece de pão, sim, mas está mais premido ainda por desacertos seculares, como a religião e todas as impossibilidades impostas pelo meio. E este homem, aparentemente bronco, na verdade é parte de um universo mais intenso e traz em si um espelho onde se refletem os dramas da humanidade toda. Por isso o criador não carece deixar seus limites para falar com o universo.

Em outras palavras, interessa ao escritor mergulhar no inconsciente de seus personagens. Os vários momentos em que tia Guilhermina pára e olha para si mesma, para sua trajetória, nasce nela a certeza de que, no espelho, se confronta com uma mulher que, além do corpo, tem beleza na alma, mesmo atormentada. Daí se encaminha para o chamado romance psicológico, onde os sentimentos são mais caros e precisos que as ações. Ao rodopiar seus desencantos e frustrações pelo carnaval, Guilhermina nos ensina que o mundo e o homem nunca mudam e são, em si, previsíveis.

Os rasgos psicológicos e duais entram linguagem a dentro. Entre lírico e cru, Carrero é um escritor seguro do que faz. Tenciona o tom de seu dizer para levar o leitor o mais próximo possível dos sentimentos gerados pelos personagens. E aí encontra o ponto exato daquilo que chamamos de literatura de qualidade. Desta maneira se revela ainda o narrador de duas faces: ao mesmo tempo que distante e onisciente, se faz presente ao dar sentimento próprio às frases.

Romance escrito em ritmo musical, com trechos curtos mas intensos, Tangolomango é uma seqüência de encantamentos oníricos. Tia Guilhermina vive de sonhos. E leva com ela os leitores, envolvidos por todos os seus encantamentos.

Tangolomango
Raimundo Carrero
Record
128 págs.
Raimundo Carrero
Pernambucano de Salgueiro, começou a escrever no final da década de 1960. Autor de mais de uma dezena de romances, ganhou os principais prêmios literários do país, como o Machado de Assis (1995), Jabuti (2000) e o São Paulo de Literatura (2010). É membro da Academia Pernambucana de Letras e se dedica também a ministrar oficinas de criação literária.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho