Sutileza e angústia

Resenha de “O último minuto”, de Marcelo Backes
Marcelo Backes, autor de “O último minuto”
01/07/2013

 

“A forma esférica da bola é exatamente o símbolo da imprevisível casualidade”, afirma Peter Handke. Calma, apressado leitor, não confundo Backes com Handke. Voltarei ao austríaco daqui a pouco.

O motivo: Handke, assim como Backes, também escreveu um livro que traz o futebol, melhor dizendo, os bastidores do futebol nos bastidores de suas narrativas. O autor chega à beira do túnel, e por enquanto O último minuto é o nosso “grande livro sobre futebol”. Backes, porém, é mais antropológico em sua análise, mais cientista social — mais arquibancada, menos gramado. E por esse viés, O último minuto é obra-prima.

Mas eu disse bastidores. Isso mesmo, porque em ambos, sob a luz dos holofotes, o leitor encontrará a angústia.

Vida esmiuçada
O último minuto apresenta a desgraça de Yannick Nasyniack, apelido: João, o Vermelho, descendente de alemães e russos. João vive seus dias iguais em um presídio no Rio de Janeiro. Cometeu um crime que será revelado ao final do livro. Crime cuja autoria ele chega a questionar em determinados momentos. A narrativa, aparentemente simples, se sustenta na conversa entre Yannick e um jovem missionário.

A vida, do início ao fim, do condenado é esmiuçada detalhe por detalhe. Backes marca o passar do tempo com a ampulheta do futebol. Cita vários jogadores, fatos do mundo futebolístico sem esquecer seu patético folclore. Tamanha a preocupação em situar o leitor, Backes por vezes chega a ser didático, esmiuçando espaço e tempo. Sobretudo a vida de Yannick contrasta com a rara “documentação” acerca do missionário que ouve e a seguir contará a história.

A apropriação talvez aleivosa continua, mas sinto que preciso dar, pelo menos oficialmente, um crédito maior a meu Yannick, e juro que tudo aquilo que faço, tudo aquilo que fiz desde o princípio, inclusive a maior ingerência de caráter erudito em seu discurso, foi e é apenas para sua maior honra e glória. 

Ao leitor caberá aguardar o apito final, quando será informado sobre a também angustiante vida do narrador.

O dito acima não empana em nada o excelente trabalho de Marcelo Backes. Vale ressaltar — e seus livros anteriores testemunham: O último minuto é a comprovação de um autor na contramão da sonolenta e acomodadíssima literatura brasileira contemporânea. Backes não engrossa as fileiras do politicamente correto, felizmente, e é de nossos raros autores a equilibrar com excelência a abordagem espaço/tempo.

Violência e angústia
O livro vai muito além das “eruditas teses” que o colocarão no rol dos romances narrados por presidiários. Poupem-me.

Não tenho dúvidas de que textos e textos com tal argumento ocuparão páginas e páginas, mas infelizmente é assim, vício de professor que pode ser comprovado na imensidão de publicações sobre a obra de Machado de Assis: noventa e nove por cento dizem a mesma coisa.

Deixo claro que também sou professor e nesse rol me incluo, embora busque distância cada dia maior desse imenso bando de perroquets fatigués.

O autor situa o leitor, apresenta os cenários: inicialmente, a origem de Yannick, a comunidade de Linha Anharetã, no interior missioneiro, localidade bastante familiar aos leitores dos livros de Backes. Ela é referida sempre envolta em tules de saudade, sofrimento, rusticidade, violência e angústia.

Violência e angústia. Vem de Anharetã a eficácia da violência para resolver problemas supostamente sem solução:

Tu já matô os gatinho?

Ouve-se e o ouvido dói. Mal se conhece o estranho que conta, que fala, que narra uma arenga sem fim, jurando que foi assim que tudo começou. Pois é, o pai voltava da lavoura, a família já estava à mesa, as panelas fumegavam, que travessas não havia. E ele, o estranho, o que conta e jura, é obrigado a se levantar, ir ao galpão, pegar os recém-nascidos, olhos fechados, nada do mundo ainda, a não ser um punhado do precário de deduções às cegas, seis num saco, levá-los pra roça, miados mínimos, lamentos minguados de quem não sabe o que se passa e apenas sofre pela mãe só teta tão longe de repente, e bater todos contra moirão da cerca antes de jogá-los nas macegas, já mudos, calados pra sempre.

E a violência se faz presente ao longo da narrativa, Yannick a utiliza de todas as formas e aos poucos o leitor perceberá que o jovem missionário também será contaminado.

Arrisco dizer que é uma narrativa seca, violenta, por vezes tosca, adequada aos cenários, Anharetã e Rio de Janeiro. Ou você, inocente leitor, pensa que a cidade maravilhosa é um mar, um mar de rosas?

O fato de ser uma narrativa áspera não diminui em nada os méritos de O último minuto, já que acrescenta mais curiosidade, além de deixar bem exposta a coragem/qualidade de Backes.

Mundos traídos
Mas afinal de contas, o que tem nesse livro que insisto em enaltecer, você deve estar se perguntando, exigente leitor.

Tem sobretudo o talento do autor para equilibrar a rusticidade verbal de Yannick e do seminarista com a sutileza utilizada para trafegar entre os contrastantes mundos vividos pelo presidiário, Anharetã, Suíça, Rio de Janeiro.

Mundos que de uma maneira ou outra foram traídos por Yannick: Anharetã, abandonada; Suíça, onde deixou o cheiro da mangueira do gado pelo vestiário do estádio de futebol; e o Rio onde cometeu seu deslize fatal. Ou seriam… deslizes?

A trama? Sim, a trama, quase esqueço.

Yannick deixa Anharetã e vai viver na Suíça. Peão, trabalhador braçal, sem conflito abandona mulher e filho. Brasileiro e ex-jogador de várzea, não encontra obstáculo capaz de impedir que se torne técnico de futebol. Ao retornar ao Brasil, Rio de Janeiro, continuará no ramo.

Nunca esquecendo que Yannick narra sua história de uma cela de presídio. A vida desse presidiário é a parte banal do livro, cuja riqueza reside nas digressões. O futebol aparece como a grande metáfora. Depois da metade do romance é que a subjetividade de Yannick, bem como a do missionário, saltam ao primeiro plano, expondo as semelhanças angustiantes de ambos. Tão semelhantes que as vozes por vezes chegaram a confundir este tosco leitor.

Entranhas à mostra
E por falar em angústia, não, eu não esqueci do que anunciei ao início deste texto.

O medo do goleiro diante do pênalti é o título brasileiro de um livro de Peter Handke sobre Joseph Bloch, goleiro que perde seu lugar num time de Viena após discussão com o árbitro e suspensão aplicada pela diretoria. Nada a fazer, anda pela cidade, vai ao cinema e acaba dormindo na casa da bilheteira. Na manhã seguinte, sem motivo, a estrangula. Por um tempo leva uma vida normal, até mudar-se para a pensão de uma amiga onde aguardará, angustiado, o fim da sua liberdade.

O último minuto vai além do ganhar e perder, chega ao sobreviver. Superar perdas e a incapacidade de preencher vazios. Tudo em precisas 224 páginas.

Os dois livros vão aos poucos deixando à mostra as entranhas de Joseph e Yannick. Ambos aguardam o julgamento, ambos admitem suas culpas. Angústia e culpa, pesadelos inseparáveis.

Handke e Backes, Backes e Handke. Superiores… extremamente superiores.

Seria responsabilidade da forma esférica da bola essa louvável casualidade?

O último minuto
Marcelo Backes
Companhia das Letras
224 págs.
Marcelo Backes
Nasceu em Campina das Missões (RS), em 1973. Em sua obra, destacam-se Estilhaços (2006), maisquememória (2007) e Três traidores e uns outros (2010). Doutor em germanística e romanística pela Universidade de Friburgo, verteu para o português obras de Arthur Schnitzler, Franz Kafka, Hermann Broch e outros. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho