Em 29 de janeiro de 1845, o poeta norte-americano Edgar Allan Poe pôs a público, após dois anos de labor meditado, um dos textos mais populares da literatura ocidental, o poema narrativo O corvo (The raven). No ano seguinte, lançou A filosofia da composição, ponderação metódica sobre a gênese da obra e síntese da poética moderna. Todavia, apenas em 1853, com as divulgações entusiasmadas e permanentes de Charles Baudelaire, os versos ganharam a devida audiência, mesmo nos países de língua inglesa. Comentários críticos de valoração diversa, assim como inúmeros traslados de múltipla feição e qualidade variada, passaram a se realizar.
Como sabemos, o poema se descortina numa situação de luto: o eu-lírico relata uma noite em que relembrava Lenora, sua gentil amada que “nome aqui já não tem mais”. Num dezembro gélido e chuvoso, ele se perdia em muita lauda antiga, ao pé das trêmulas chamas da lareira. Em tal atmosfera, batidas à porta o fazem abri-la e vislumbrar, repetidamente, brisas e ausências. Até que, de chofre, um corvo hierático adentra pela câmara (chamber e não bedroom, no original inglês) e se fixa num busto de Minerva. A partir daí, o ambiente sombrio e suspensivo da cena favorece um crescendo de autoflagelação psicológica: a toda inquisição que a voz enunciativa submete o pássaro, este lhe responde um Nunca mais soturno e litânico. A peça se realiza em dezoito sextilhas de métrica regular (versos de quatro, cinco, sete e oito pés troqueus), pontilhadas de aliterações e assonâncias, rimas tríplices internas, e de um seleto vocabulário com elevada capacidade de evocação.
De cariz profundamente dramático, a composição, que tanto atiçou a imaginação de pintores, literatos, músicos e cineastas, estabelece diálogo prévio com textos longínquos, como o Jeremias bíblico — onde flagramos similitudes espantosas — e com certo espírito romântico de seu tempo, o Sturm und Drang alemão, verificado na presença enfática do sobrenatural ou, ainda, no vínculo indissolúvel entre o amor e a morte. Podemos imaginar, portanto, como a riqueza temática e a complexidade formal do poema despertaram nos tradutores o desejo de transportá-lo para outros idiomas.
Foi na escuta atenta dessas vozes que o poeta e tradutor Ivo Barroso desenvolveu o estudo crítico O corvo e suas traduções, ilustrando-ocom as versões por ele analisadas. O material resultou em livro homônimo ao ensaio — núcleo gerador da coletânea —, que ganha agora uma edição ampliada, sob o selo da LeYa, na qual figuram uma pequena biografia de Poe e seu texto a respeito do processo criativo do poema (na verdade, a idéia de realizar uma publicação dessa natureza partiu de uma larga e surpreendente demanda popular, como nos informa Carlos Heitor Cony, na apresentação do livro).
A filosofia da composição, aliás, devido ao seu perfil revolucionário, vê-se rodeado de controvérsias. Não poderia ser diferente, já que, matematizando todos os passos da elaboração literária, ele desilude e contraria muitos adeptos da inspiração poética. O próprio Ivo Barroso chega a dizer, numa entrevista, que o escrito mais semelha uma fraudulenta explicação da construção d’O Corvo, porque é pouquíssimo provável a existência do “cronômetro poético” que Poe supostamente utilizou. Efetivamente, as minúcias antevistas têm uma verossimilhança vacilante e ativam, em nós, um olhar de suspeição. Dois fatores, entretanto, devem aqui ser ressaltados.
Primeiro, o eventual exagero blasé na previsão dos efeitos pretendidos não exclui a possibilidade de várias etapas terem sido de fato premeditadas. Depois, parece-nos que a veracidade dessa trilha criativa importa menos do que os frutos que sua descrição gerou. O ensaio guarda méritos indiscutíveis e de grande urgência na atualidade. Ali, o autor nada mais fez do que levar ao ápice o que o século 20 rogaria com fervor: a desmistificação da literatura (e da arte em geral), devolvendo-a à esfera das produções humanas e racionais. Muitas idéias presentes n’A filosofia da composição repõem na agenda reflexiva da crítica literária o debate micrológico, em que se recupera a percepção da escritura como artefato.
As traduções: sucessos e impasses
Lastreadas em teorias descritivas da tradução — segundo as quais deve haver a máxima aproximação possível entre o poema original e o texto de chegada, tanto do ponto de vista formal quanto pelo viés semântico —, as análises de Barroso são de uma argúcia admirável. Ele bem observa que Charles Baudelaire, tendo o mérito do pioneirismo na tradução d’O corvo, conferiu-lhe, além de publicidade, credibilidade. Mas, fora daí, pode-se elencar uma seqüência de fracassos, que põem a perder a multiplicidade da obra do escritor americano. A começar pela diluição da densidade estrutural do texto-matriz numa prosa pedestre, que ainda ganhou o reforço negativo da diferença expressiva entre os idiomas, como, por exemplo, a incongruência do pálido “jamais plus” francês com o lutuoso “nevermore” da língua inglesa. Claro: não faltou ao poeta de Les fleurs du mal algum esforço de compensação das muitas perdas referidas, mas se trata de um ânimo maladroit, que peca pelo excesso:
[…] pendant que je donnais la tête, presque assoupi, soudain il se fit un tapotement, comme de quelqu’un frappant doucement, frappant à la porte de ma chambre.
Observamos aí uma seqüência de rimas que se dispersam e extrapolam a simetria, a regularidade da disposição poesca. Resultados muito similares foram obtidos por Mallarmé, em sua versão igualmente prosaica (mas sem os erros de inglês, que Baudelaire cometera). Somente com Didier Lamaison, atesta Ivo Barroso, o idioma de Racine ganharia um traslado que reverberasse a musicalidade, o tom e o estilo de Poe. Isso chama a atenção porque, assim como ocorre em língua portuguesa, dois dos maiores autores do idioma francês são suplantados por um tradutor seguramente talentoso, mas sem a mesma habilidade criativa que literariamente os canonizou.
No que se refere às versões vernáculas, Ivo Barroso faz um balanço um pouco mais demorado. A primeira que ele põe em revista é a de Machado de Assis, que retesou sua tradução ao transformar “a compacta estrofe poesca de seis versos numa estança de dez”. Por tal razão, os versos ficaram mais curtos (variando entre oito, dez e doze sílabas métricas), quebrando o andamento majestoso do texto de partida. Além disso, ao estender consideravelmente o número de estrofes, o criador de Capitu fugiu à concisão que Poe advogava, na Filosofia, e que o poema apresenta. A performance, porém, não chega a surpreender, tendo em vista que a fatura poética representou, na obra machadiana, uma produção de segunda linha.
Em compensação, não se pode dizer o mesmo de Pessoa, que “teria tudo para conseguir a tradução ideal; poeta de gênio, com domínio absoluto sobre a técnica do verso, perfeitamente bilíngue”. Mas seguimos pensando com Barroso: perdas significativas da densidade vocabular e certa desatenção à adaptação métrica comprometeram o pleno êxito da versão em registro lusitano. Por outro lado, entramos em dissonância com o organizador quando ele afirma que o autor de Mensagem cria colocações “perfeitas para os ouvidos e a dicção portugueses, mas que não soam espontâneas aos nossos”. A nosso ver, isso não constitui, absolutamente, uma lacuna: é razoável esperar que Pessoa transporte o poema para a sua língua, com sua variedade específica de sintaxe e prosódia.
Às traduções emblemáticas, Ivo Barroso agrega as tentativas de Gondin da Fonseca — o qual, apesar de estar atento à solenidade tonal que a obra pede, ignora completamente seu modelo rímico — e as tíbias faturas de Emílio de Menezes e Benedicto Lopes, que dissolvem a originalidade formal d’O corvo em sonetos prolixos, repletos de versos sem organicidade e, o que é pior, adicionando ao texto elementos narrativos que não encontramos na origem. Isso sem falarmos na quebra da seqüência narrativa, que amortece o impacto psicológico do texto.
Por fim, a publicação reúne mais três experiências, de qualidade notoriamente superior. São as traduções de Jorge Wanderley, Alexei Bueno e Milton Amado. Os dois primeiros prezam pela manutenção das rimas tríplices internas e conservam o tom majestoso do poema, com a preservação, inclusive, das aliterações essenciais de Edgar Poe. Tudo isso, sem dúvida, já é de grande valia e demanda um labor hercúleo. No caso de Alexei Bueno, daríamos maior destaque, ainda, à apurada seleção lexical, homóloga à singularidade de The raven. Uma restrição a ambos, contudo, recai sobre desarticulações sonoras em certos trechos, decorrentes de ritmos partidos em cesuras irregulares.
Finalizamos em pleno acordo com Ivo Barroso, ao eleger o trabalho de Milton Amado como a melhor tradução d’O corvo em língua portuguesa. De fato, ele conseguiu conservar larga amplitude dos elementos formais justapostos por Allan Poe — aliterações, assonâncias, ecos, cromatismos, tom sublime e hierático — e “soube introduzir outros apoios sonoros, inexistentes no original, que atuam como uma espécie de compensação pelas perdas anteriores”. Ivo Barroso, notável homem de letras, concede aos leitores uma resposta excelente às suas solicitações, com o bônus qualificado de seu requinte analítico. Em caráter quase noticioso, enumera em seu ensaio as versões que, menos expressivas, não se incorporaram ao volume. E promete adicionar, numa edição posterior, importantes traduções em italiano, russo e alemão. Resta-nos daí a seguinte conclusão: o corvo de Edgar Poe só proferia uma palavra, mas com suficiente energia para guardar em si o legado de Babel.