O crânio de Castelao (10)

Leia o capítulo 10 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/06/2013

Capítulo 10

P. sentou-se na cadeira. Levantou com a mão direita a chávena que o marinheiro havia colocado na mesa e, de seguida, levou-a de encontro aos lábios. Soube-lhe bem o sabor amargo do café. Respirou fundo. O aroma trouxe-lhe a paz interior de uma terra distante cheia de especiarias. Sempre sonhou com férias numa ilha dos mares do sul. Quem sabe no Taiti, onde se dedicaria ao prazer de pintar. Mas antes tinha uma missão a cumprir: recuperar o crânio de Castelao.

— Onde está ela?

Era uma pergunta tão urgente como o café que engolira. Sentia-se muito só com sua ausência. Precisava saber do seu paradeiro. Talvez ela soubesse de uma saída para o beco escuro em que se encontrava. Um túnel de luz com acesso ao brilhante crânio do nacionalista galego. Pediu mais uma chávena de café. O jovem tenente abanou a cabeça e informou-o que acabara de ingerir a última remessa da poção mágica trazida pelas mãos do coronel Pedro Santiago, um velho compadre de seu pai e militar de carreira que prestara serviços na mais distante colónia portuguesa no Oriente.

— Talvez ela esteja em Goa! — disse o tenente da marinha.

P. teve a oportunidade de ir até Goa, mas um contratempo na viagem fez o avião aterrar de emergência em Cabo Verde. Provavelmente mais por causa de uma intervenção divina à solicitação de Germano de Almeida do que pelo engano do piloto das linhas aéreas portuguesas. Já vai o tempo em que para se ir ao Oriente tinha de se navegar pelo oceano Atlântico. P. nunca sentiu uma atracção especial pela Índia. Mesmo nos tempos em que alinhou a uma seita de Hare Krishna preferiu ficar pelas estreitas ruelas de Compostela. Catmandu fica no lado obscuro do desejo. No longínquo estreito dos sonhos.

A Índia foi o grande amor dos portugueses. Na altura, mal sabiam que abriram o caminho mais tarde percorrido por viajantes e penitentes em busca de um sentido para as suas vidas. Os poetas portugueses cantaram versos louvando os feitos dos seus marinheiros. Sobretudo pela pena do seu poeta maior, cego de um olho em luta com súditos do rei mouro, motivado por um patriotismo que lhe cegava a razão, o que não o impediu de ver melhor que todos os outros. Os valentes que foram ao mar e os cobardes que ficaram em terra. Os que se realizaram como nação porque conseguiram materializar o sonho de chegar à Índia e os que a inveja remoía as entranhas por nunca lá terem estado. E a inveja sempre arranjou maus hábitos. Assim como a gula e todos os pecados capitais. Apareceram os piratas. Depois os corsários. Mais tarde as armadas. Esperavam pelas naus lusitanas em pleno mar para se abastecerem de mercadorias quando aquelas faziam o caminho de regresso ao lar. Poupavam em tempo e esforço. Não valia a pena ir à Índia se outros o faziam por eles. Os portugueses pareciam não se importar. Só queriam ficar com os louros e também com as morenas de Goa. Os piratas que ficassem com o ouro. Todos satisfeitos e cada um ia à sua vida. Após tantos anos a entregar o ouro ao bandido, estavam enjoados e decidiram assentar nas terras conquistadas. Então apareceram os coronéis.

P. não via as coisas dessa forma. O mundo não se resumia aos feitos heróicos dos marinheiros portugueses. Muito menos desses irascíveis coronéis. Também os americanos estiveram na Lua e voltaram de lá com uma mão cheia de pedras. Nenhum pirata se intrometeu no caminho. Para mal da humanidade só encontraram calhaus. Mas disso está cheio o deserto de Arizona. Se tivessem encontrado petróleo, talvez fizessem menos guerras em Terra. Ainda que isto custasse aos românticos a inestética visão de um oleoduto vindo da Lua com ligação directa ao rancho de Bush no Texas.

P. sentia-se reconfortado ao lembrar-se que um dos seus antepassados fora numa das naus de Vasco da Gama até a Índia e de lá regressara feliz e perfumado.

Insistiu em pedir mais um café.

— Acabou-se! — disse o tenente. — Assim como o império.

O galego não se contentou com a resposta. Quis saber mais sobre a origem e a proveniência desse café, quiçá sobre esse misterioso coronel Pedro Santiago.

— Não, ele não era descendente de espanhóis — disse o garboso tenente da marinha portuguesa para separar as águas. — Talvez uma coisa parecida com um desses coronéis do romance do escritor brasileiro Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela. Também nós portugueses levamos para as nossas colónias, nessa memorável epopéia a que demos o nome de Descobrimentos, os nossos coronéis. Hoje recebemos em troca pacotes de telenovelas com vidas de coronéis. Colunáveis. Reciclados. Também jagunços. Milícias. Mas, como ia dizendo, esse coronel é maubere…

— Mau quê?

— Maubere! Um coronel de segunda linha de Bidau. Um reino de Timor-Leste. O meu pai, que é da primeira linha, conheceu-o quando lá fez a comissão de serviços. Foi o padrinho de todos os seus filhos. Quarenta filhos, de várias mulheres. Uma ninhada de coronéis em miniatura. O seu exército particular à prova de toda a traição.

— Não falemos de traições, tenente, porque esse Afonso Henriques também não foi lá muito meigo com a sua Nai! — disse o galego com um ar muito sério.

— Esse coronel tinha uma devoção particular pelo vosso Santiago de Compostela. Sendo católico praticante, tomou o santo como protector da sua família. Quando o meu pai lá esteve o coronel confidenciou-lhe da sua intenção de realizar uma expedição até Compostela, com todo o seu pequeno exército familiar, para roubar os restos mortais do santo. Há quem se interesse por corpus sancti. Mas era só rumor, muita fantasia e uma tremenda loucura. Depois da ocupação do território pelas forças militares da Indonésia, nunca abandonou sua fé. Fez disso a sua bandeira. Dizia que a ocupação de Timor pelos mouros era uma forma de obrigar o santo a levantar-se do túmulo para o ir ajudar. Mas o seu objectivo era fazer do cruzado um refém. O apóstolo tinha de lá deixar os seus restos mortais. Santiago permaneceu imóvel. E quem teve de se deslocar foi o coronel que aterrou em Lisboa depois do referendo que ditou a independência de Timor.

— Que veio ele fazer a Portugal? — perguntou P., cheio de curiosidade.

— Queria levar de volta o crânio do seu avô, que porventura teria vindo na mesma leva dos tais trinta e cinco que foram enviados de Timor no ano de 1882, destinados aos museus de Lisboa e de Coimbra. Cito Forbes em A naturalist’s wanderings in the Eastern Archipelago, Londres, 1885: “O restabelecimento da paz entre dois reinos beligerantes exige a restituição recíproca das cabeças capturadas”.

P. olhou o tenente com admiração. Tinha na sua presença um digno interlocutor. Sempre cultivou uma admiração especial pelos sábios marinheiros.

— O mais engraçado é que ninguém sabe do paradeiro dos crânios…

— Deduzo das tuas palavras que o coronel voltou com as mãos a abanar — disse o galego, coçando a cabeça com a mão.

— Enganas-te. Quando regressou, foi recebido em apoteose por uma multidão em delírio. E todos viram o coronel exibir um crânio.

— Um crânio?! — levantou-se da cadeira o galego. — Em que mais sítios esteve esse coronel? — perguntou com uma curiosidade mórbida que fez o tenente corar.

— Também andou por aqui, nos Açores. Veio visitar o meu pai e também um amigo de longa data que fora bispo em Timor. Um prelado que há muito tempo fora chamado para junto de Deus. O coronel ainda tentou convencer a família a doar-lhe os restos mortais do santo homem, mas meu pai não foi pelos ajustes e disse-lhe, mesmo de caras, que cada um deve ser enterrado no sítio onde nasceu. Olha, o homem esteve sentado nessa mesma cadeira. Esvaziou algumas garrafas de aguardente. Estava eufórico. Vitorioso. Tinha na mão um saco azul de veludo. Contou-me que foi ao Entroncamento…

— En-tron-ca-men-to?!

— Um lugar mítico!

— Que eu saiba, En-tron-ca-men-to não consta dos registos dos locais sacros.

— Mas para o coronel era como se fosse. Só depois decidiu ir a todos os outros lugares: Fátima, Braga, Compostela…

— Também esteve em Compostela?! — P. abriu os olhos de espanto.

De imediato pegou o telefone e discou um número.

— Marque-me uma passagem para En-tron-ca-men-to!

— Não há vôos da TAP para essa terra — alguém respondeu do outro lado. — Se quiser, pode apanhar um dos muitos comboios que partem de Santa Apolónia para os sítios mais recônditos, para as terras do fim do mundo, para os lugares de sonho e para o exílio. Há cem anos que param todos no Entroncamento. Alguns foram lá morrer como as baleias numa praia deserta. Estão lá enterrados. Um cemitério de ferro velho.

— Desculpe o equívoco. Queria dizer Timor-Leste. Pretendo ir para aquela terra e ajudar a sua gente a livrar-se dos mouros. Os meus antepassados cruzados também estiveram em Jerusalém. Está no meu sangue esse fervor de ajudar os católicos.

No avião da TAP que levantou vôo do aeroporto de Lisboa, surpreendeu-se quando alguém se sentou ao seu lado. Reconheceu o cheiro do perfume usado pela sua namorada americana. Só depois se deu conta de que era a filha do professor F., o mui digno orientador da sua tese de doutoramento. P. parecia desorientado com sua presença. Não a conhecia pelo nome. Ela nunca lhe disse qual era a sua graça. Mas isso era o que menos importava. Era tão parecida com Sandra Bullock, a do filme da net, uma coisa de espiões, que de imediato fez recair sobre ela a atenção de todos os viajantes, provavelmente mais interessados no vistoso traseiro do que no enredo em que andava metida. P. ficou mais sossegado quando ela lhe mostrou uma credencial em como era funcionária do Banco Mundial. Ela fez um sorriso malicioso quando o informou ter sido indicada em Nova Iorque como conselheira para os assuntos económicos do diplomata Nobel e, para acabar de uma vez para sempre com as eternas queixas do grande servidor da pátria por uma igualdade de requisitos e de mordomias, fora também incumbida de dar uma ajuda ao ministro dos incidentes públicos, leia-se Obras Públicas.

No aeroporto de Comoro um jipe esperava por eles. Instalaram-se num pequeno hotel da cidade. P. pediu um quarto de casal. Ela não se importou. Mas para seu desespero viu-a deitar-se imediatamente na cama, com roupa e tudo. Não teve outro remédio senão fazer o mesmo. Não conseguiu pregar olho. Tinha o diabo à solta.

No primeiro dia, ela apresentou-se no seu posto de trabalho. Após as diligências e apresentações e, na medida em que os ministros estavam ausentes no estrangeiro por deveres do ofício, ficou com tempo disponível para fazer o que bem entendesse. P. dedicou-se de corpo e alma a fazer retratos de tartarugas. Uma espécie vinda da aurora dos tempos e que doravante constava da lista das espécies em vias de extinção, tamanha é a procura da sua carapaça pelos autóctones para fazerem artefactos e dos ovos tão apreciados nos restaurantes de comidas exóticas — entenda-se eróticas — pelos homens com o fogo da paixão também em vias de extinção.

Nas horas vagas tinham como passatempo ir às lutas de galos, onde esperavam ver o coronel. Ele não sabia nada da combinação das penas, onde se lia a sina do vencedor, e perdeu em todas as apostas, inclusive a única fotografia de Castelao que trazia na carteira, como se fosse a de um papa galego por quem nutria uma devoção filial. Ela não sabia que os galegos também tiveram um papa. Mas sorriu com o descaramento dele e com a inocência de quem acreditou que aquilo valia um lugar no céu, ganho numa aposta da luta de galos.

Do coronel, nem sombra. Foram informados por fontes fidedignas que ele há muito que estava retirado das lides guerreiras. Civilizou-se. P. lembrou-se da religiosidade de Pedro Santiago. Desde então passaram a freqüentar a igreja de Motael para assistir à missa, o que a princípio causou alguma estranheza da parte dos autóctones mas, depois de tanta assiduidade, convenceram até o desconfiado sacristão Zacarias como sendo bons católicos. Missas em latim, terços e purgas, confissões e penitências, jejuns e abstinências. O objectivo era infiltrarem-se no meio missionário. Apresentaram-se à zeladora tia Maria como sendo cidadãos espanhóis e membros de uma importante congregação que tinha como objectivo restaurar a ordem dos monges negros de Cluny. Os espanhóis tinham uma boa reputação naquele território, embora tivessem sido maus vizinhos para os portugueses, conforme relatavam os manuais escolares. Mas foi de Espanha que saíram os jesuítas para Timor. Também tiveram figuras honradas como D. Quixote, Inácio de Loiola e os reis católicos, isto para falar apenas dos mais carismáticos. Também os recém-consagrados, como Raul, Julio Iglesias e Jesus Gil. E foi pela boca da guardiã do sacrário que foram informados do interesse do coronel pela primitiva fórmula das cruzadas. Aquele par de estrangeiros misturado com os autóctones não passou despercebido aos olheiros do militar, habituados a ler nas expressões dos rostos as intenções mais íntimas dos estranhos. Procuravam por algo mais do que a salvação de suas almas.

Foi o sacristão Zacarias quem os conduziu até ao bairro de Bidau. O local onde o coronel sempre viveu com a sua família, desde os tempos em que os seus avós ali se instalaram vindos da ilha de Flores e falavam um dialecto local a que deram o nome de português de Bidau, uma espécie de latim das antípodas, assim diziam alguns de forma reverente, referindo-se ao português truculento de que o coronel se servia quando falava com as autoridades ou quando queria insultar os inimigos. Segundo o próprio, um palavrão dito em língua portuguesa tem outra consistência e, normalmente, acerta sempre no alvo.

Pedro Santiago mandou que entrassem. Era uma casa sem porta e sem tecto. As paredes estavam cobertas com pequenas lagartixas que emitiam em coro um som estridente e agudo. No chão, um amontoado de cinzas. Sua casa também não foi poupada à fúria das milícias. O coronel estava sentado numa cadeira de lona. Vestia um fato de linho branco. Numa mão segurava uma espada e na outra havia vestígios de tabaco de rapé.

— Vocês são castelhanos? — perguntou de rajada, brandindo ao mesmo tempo a espada perante o olhar estupefacto dos visitantes.

— Galegos, coronel, galegos! — responderam em coro para dissipar confusões.

— Ah, Santiago, meu Santiago! Só me faltava aparecerem por aqui uns galegos, como se não bastassem todos os morcões vindos de todos os cantos do mundo para nos libertar dos mouros — sorriu com o seu dito. — Que querem de mim?

— Queremos corrigir um erro histórico — disse P. sem ligar patavinas ao regionalismo utilizado pelo coronel, como se isso fosse o exemplo perfeito do seu muito proclamado cosmopolitismo que o fazia interessar-se por coisas do outro lado do mar, por santos de outra gente, por línguas estranhas, por expressões absurdas, por terras que ninguém sabia se de facto existiam, pelos caminhos de ferro que o levavam à mítica estação de Entroncamento, por caminhos de pedras que findavam no mar, Finisterra ou lá que era. — O coronel trouxe por engano o crânio de um branco. Um caucasiano. Temos um relatório de peritos da Academia de Ciências de Lisboa sobre a possível troca de ossos. O crânio que está na posse desses doutos homens é de um índio. Sabe como são esses europeus. Exceptuando o branco, todo o resto é índio. Vícios de linguagem do tempo dos Descobrimentos. Provavelmente é o crânio do seu avô. Dizem que tem pinta de coronel. Até é parecido com o senhor.

— Se não me falha a memória, entre índio e coronel, nunca houve combinação. Um tem que matar o outro — sentenciou Pedro Santiago. — Espero não ser obrigado a matar um salesiano na minha própria casa.

— Caucasiano, coronel, caucasiano! — corrigiram em coro os familiares. Não fosse alguém ir soprar nos ouvidos do bispo, distinto membro da congregação dos salesianos, sobre as intenções de Pedro Santiago em querer suprimi-lo ao reino dos vivos.

— É tudo a mesma coisa! — encolheu os ombros.

— Não é a mesma coisa coronel — disse o sacristão Zacarias — Está a confundir alhos com bugalhos. O bispo é salesiano e este senhor é caucasiano.

Ela não acrescentou nada ao discurso do seu parceiro. Nem tomou atenção às palavras do coronel. Permaneceu calada e recolhida como uma devota diante do altar. Parecia extasiada com essa figura romântica como que saída do livro Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. O coronel Aureliano Buendia. O autêntico.

— E quem me diz que os peritos não se enganaram como fizeram com a história que exaustivamente nos contaram durante os quatrocentos anos para acreditarmos no futuro que nos prometiam? — perguntou, com um tom sarcástico, Pedro Santiago.

— O coronel esteve em Compostela! — disse P., ao mesmo tempo que olhava em redor, como se buscasse uma saída de emergência.

— O Almanzor também lá esteve! — replicou o coronel com voz firme. Depois deu uma gargalhada sonora, surpreendendo tudo e todos.

— Isso foi há muitos anos — disse P. — Falo do tempo presente.

— Quem é esse castelhano? — perguntou o coronel.

— Castelao, coronel, Castelao. Um nacionalista como o Xanana! — disse ela.

— Então, que falem com o Xanana!

Pedro Santiago levantou-se da cadeira. Tencionava ir-se embora, mas ela o segurou pelo braço. O coronel ficou suspenso com esse gesto. Nenhuma mulher teve a ousadia de lhe fazer isso. Normalmente reagia de uma forma violenta, mas agora parecia um garoto. Olhava para ela com olhos de enamorado.

— Xanana nunca esteve em Compostela! — disse a moça quebrando o enguiço.

— Se pensa que fui eu quem roubou o crânio desse castelhano…

— Castelao, coronel, Castelao! — corrigiu.

— Se tiver de roubar a cabeça de alguém… — fez uma pausa e passou os dedos da mão direita pelos cabelos dela, por toda a caixa craniana e, de repente, como se tivesse arrependido do seu gesto, mostrou um rosto sereno — seria a do Santiago. Mas a que vi no túmulo do santo foi a de uma outra pessoa. Provavelmente desse castelhano…

— Castelao, coronel, Castelao! — gritaram ambos.

Estavam muito irritados com as sucessivas confusões do anfitrião.

— Meus senhores não me corrijam! — fez uma pausa ao mesmo tempo que fixava seus olhos nos dos seus interlocutores e levantou o dedo indicador em jeito de ameaça — Não quero gritarias em minha casa! A história pregou-vos uma grande partida. Já deviam saber disso. Alguém colocou no lugar da cabeça de Santiago a de um castelhano. É essa a vossa grande confusão. Agora encontrem o crânio de Castelãa. Tenho a certeza de que está alojado num sítio seguro. Depois, ponham-no em seu devido lugar. Na cabeça do santo. Porque, senão, ofereço a minha…

— Não, coronel, não! — disseram em uníssono — Mais cabeças não!

Despediram-se rapidamente do anfitrião. Queriam ficar livres da presença daquele megalómano. Estavam mais confusos do que quando lá entraram. Só mesmo um louco teria paciência para encher um livro com as peripécias de um destravado.

Quando puseram os pés novamente na rua, P. sentiu uma estranha sensação. Tinha a cabeça mais pesada. Parecia carregar o espólio de um morto. Lembrou-se então das palavras do coronel e chegou à terrível conclusão de que o crânio de Castelao estava alojado na sua cabeça. Olhou em redor. Sentiu medo. Medo dos caçadores de memorabilia corporea. Regressar agora à Galiza seria uma total imprudência. Desistiu da tese de doutoramento e foi para Taiti pintar os indígenas. Ela ofereceu-se para ir com ele. Por nada neste mundo o largaria. O professor F. lá tinha suas suspeitas quando resolveu incumbi-la de vigiar qualquer movimentação de P. Isso de ser parecida com Sandra Bullock foi pura fantasia do malandro que escreveu o primeiro capítulo desta trama e inventou o Latim em pó, com que nos quer mascarar a cara para ficarmos parecidos com as múmias romanas.

NOTA
Estes foram os capítulos finais do folhetim O crânio de Castelao, idealizado pelo escritor Carlos Quiroga por ocasião do encontro Galego no mundo — latim em pó, em Santiago de Compostela, na Galícia, em 2000. Escritores de países lusófonos se revezaram em sua escrita, cada qual ficando responsável por um dos onze capítulos.

Leia o capítulo 11 por Xurxo Souto

Luís Cardoso de Noronha

Nasceu em Cailaco, Timor, em 1959. É autor dos romances Crónica de uma travessia — A época do ai-dik-funam (1997), Olhos de coruja, Olhos de gato bravo (2001), A última morte do Coronel Santiago (2003) e Requiem para o navegador solitário (2007).

Rascunho