Diz o adágio latino que é rindo que se corrigem os costumes. Os brasileiros gostamos, aparentemente, de rir. Na literatura, no cinema, na televisão e até mesmo na internet não faltam aspirantes a humoristas que provocam sorrisos desabridos e gargalhadas que deformam o rosto sem inquietar o espírito. O resultado é que somos desesperadamente felizes, ao que parece. Ainda assim, não é de tudo que rimos. Preferimos rir do outro — de preferência, se ele estiver em desvantagem; jamais rimos de nós mesmos, ou, por outra, desejamos ter a preferência pela sátira de nossa condição. Por isso mesmo parece notável que deixemos de lado outras referências quando o assunto é humor. Talvez elas pudessem ser mais efetivas em explicar nossa predileção por este ou aquele estilo, ou simplesmente essas referências pudessem nos mostrar outras formas do cômico.
Por tudo isso, e em virtude de seu estilo, do tratamento concedido aos temas de seus livros e, sim, pela quantidade de obras publicadas, seria absolutamente natural que o escritor britânico Pelham Grenville Wodehouse (1881-1975) fosse um autor não apenas conhecido, mas essencialmente celebrado no Brasil. No entanto, não é o que acontece. Wodehouse é, a um só tempo, desconhecido pelos leitores brasileiros reais (aqueles que ultrapassam a ínfima marca de dois livros por ano) e pelo leitor médio (aquele teimoso que freqüenta a lista de 1,8 livro por ano, de acordo com os dados oficiais, sem maquiagem).
Há que se lançar hipóteses para tanto, mas para que a resposta não venha no vácuo convém discorrer um pouco sobre esse escritor inglês, nascido em Guildford, cidade do condado de Surrey, na Inglaterra. Durante sua infância e juventude, ficou afastado dos pais, algo que seria, em certa medida, denunciado em sua obra, haja vista que os personagens que ganham fôlego em alguns de seus livros atendem pelo círculo familiar intermediário na vida de muitos, mas bastante presente na trajetória de Wodehouse: tias, babás e outros apaniguados, como se diria na estrutura social brasileira. A formação do escritor não seria completa até seus anos no Dulwich College, instituição fundada em 1619, onde teve uma passagem importante como estudante e atleta. Entre outras atividades paralelas, seu curriculum vitae informa que ele colaborou com ninguém menos do que Cole Porter na confecção de um musical.
Essa trajetória acadêmica, no entanto, não é parte integrante do cenário ao qual pertence Wodehouse no universo literário. Isso porque, como escritor, Plum (como também era conhecido) esteve longe de ser um intelectual. Seus livros, mesmo para seus defensores, estiveram à margem dessa leitura sofisticada, mesmo em se tratando de humor — e o que não falta, hoje em dia, são autores afirmando que o humor precisa ser intelectualizado. Não para Wodehouse. Para ele, o importante era fazer rir. E ele sabia como. De forma elegante, direta, mas sem cair na esparrela do lugar-comum, do humor a qualquer custo, da banalização do riso. Com alguma boa vontade, é mesmo possível estabelecer coerência ao longo de seus livros e personagens, uma vez que, como poucos, ele é capaz de extrair o máximo do mínimo, a saber: o máximo riso com o mínimo gesto. Não é pouca coisa.
Como se conquista isso? Eis uma pergunta mais fácil de elaborar do que responder. Nem mesmo os manuais de escrita criativa mais severos — daqueles que se levam mais a sério — garantem estrutura definitiva para a escrita cômica. Outros gênios do humor do século 20, como Woody Allen ou Steve Martin, não necessariamente formaram seguidores, muito embora haja quem tente imitá-los aqui e ali com suas gags e frases de efeito. E aqui talvez esteja o denominador comum de certo humor de ontem e de hoje: o bordão, a frase de efeito, esses elementos que provocam o riso sem esforço porque fazem funcionar o gatilho que remete ao riso. Todavia, ao se pensar em Henri Bergson, no clássico O riso, tal denominador comum inexiste exatamente porque a garantia do cômico em geral e do riso em particular, está no gesto inesperado, no passo em falso, no elemento ausente que deveria completar determinada sentença ou diálogo. Trata-se, com efeito, de algo mais sutil. E Wodehouse, como poucos, sabe ser sutil.
Primeira hipótese
P. G. Wodehouse está no limbo hoje em dia — falamos do Brasil — não necessariamente porque seu humor é sofisticado, mas sim porque não apela ao denominador comum das estruturas fáceis. Explico: mesmo nas histórias de Bertie Wooster e Jeeves, seu indefectível mordomo, não há espaço para o chiste apelativo, para o lugar-comum, o que é terrível no país da piada pronta. Em vez disso, Wodehouse investe num humor rápido, que se assemelha a um jogo de ping-pong de alto nível: grandes gestos não têm vez e a resposta deve ser, sempre que possível, curta e seca. Em contrapartida, ao descrever as personalidades das personagens, o autor é mesmo capaz de ambientar o leitor acerca do universo ao qual pertence aquele grupo social. Indistintamente, quando se trata de Wodehouse, o tema é de uma classe média formada entre o final do século 19 e o início do século 20. Isso implica em adotar um estilo de texto, assim como ter determinadas preocupações que não seriam as mesmas anos depois.
Assim, o Bertie Wooster elaborado por Wodehouse não poderia ser mais naïf, mais simplório na sua concepção de mundo. Ainda que pertencente a uma sociedade complexa, não há no jovem Wooster o cuidado e a preocupação com os tempos que correm no presente. Existe, sim, certo espanto e choque com a realidade que se mostrava irrefreavelmente traiçoeira aos seus desígnios, e foi exatamente por esse motivo que a figura de Jeeves, o mordomo, era tão necessária. Aqui, não se trata meramente de uma escada para um comediante plantar suas piadas sobre determinado grupo. O autor, antes, utiliza a voz de Jeeves para colocar o mundo de Wooster em ordem, confrontando-o com sua própria inaptidão para com a vida prática. Wooster quer o céu, as alturas; no entanto, é trazido à terra e ao mundano graças às frases objetivas e cortantes de Jeeves, que não hesita em contradizê-lo, numa relação que poderia ser percebida como a de um tutor em relação a um menor incapaz, ainda que a condição entre os dois esteja longe de ser assim. Wooster é o senhor, e Jeeves jamais se esquece de seu lugar, numa relação de subserviência que talvez não fosse mais tolerada por aqui — escrevo a respeito da forma de tratamento entre ambos.
Sob o ponto de vista cultural, fica evidente que o texto de Wodehouse dá conta de outro tempo, de costumes que já se foram. Ainda assim, é no limite das poucas palavras que essa relação entre o patrão e o mordomo não é das mais óbvias.
— Boa noite, Jeeves.
— Bom dia, meu senhor.
Isto me surpreendeu.
— Estamos pela manhã?
— Sim, meu senhor.
— Você tem certeza? Me parece bem escuro lá fora.
— Há uma bruma lá fora. Se o senhor se recordar, estamos no outono, estação de neblinas doce e fecunda[1]
— Oh? Ah, sim, sim.
É evidente que Jeeves atende ao chamado de Wooster; é evidente, ainda, que o senhor reafirma sua posição ao bater o pé que o tempo indica que é noite em vez de dia; todavia, é o mordomo quem aponta, de forma bastante original, que se trata de outra estação. O humor aqui está na exata inversão de papéis. Espera-se do homem nobre, do cavalheiro, que reconheça as mudanças de estação e, mais do que isso, que não esteja desatento à erudição da poesia. Wodehouse seria perfeito, caso se levasse a sério, para mostrar a decadência de um estamento ou de uma classe social que já pertenceu à elite. Em vez disso, nos faz rir, muitas e muitas vezes, dos passos em falso de Wooster, que insiste em agir conforme seus impulsos, tendo de ser controlado pela razão. Como em Dom Quixote, obra magistral de Miguel de Cervantes, temos um cavaleiro em busca de suas aventuras e seu fiel escudeiro, só que a missão de Wooster é não cair em enrascadas. Mas, tendo em vista o quão desastrado ele é, sua única salvação é o mordomo, que foge ao estereótipo e se afasta de ser o culpado.
Hora da segunda hipótese
Wodehouse não seria lido entre nós porque seus livros, com esse humor de estirpe inglês, com pedigree, ainda faz questão de mencionar os clássicos da literatura.
Em depoimento concedido ao World Book Club, da BBC Radio, o escritor Javier Cercas assinalou que a grande literatura sempre fala de… literatura. E o interessante é que esse entendimento se fundamentava no já citado Dom Quixote, mas poderia efetivamente ser estendido a outros autores, de ontem e de hoje: afinal, Madame Bovary, de Flaubert; e, mais recentemente, Desonra, de Coetzee; ou ainda Sábado, de Ian McEwan, também enfrentam a literatura como idéia narrativa em seus domínios romanescos. Isto é, para além das meras citações, algo que poderia ser feito por alguém com cultura de almanaque (ou de Wikipedia), existe, de fato, o diálogo com essas obras no que elas possuem de mais denso e elaborado. Wodehouse, já foi dito anteriormente, não se notabiliza pela densidade de suas obras, mas é evidente que a literatura faz parte das suas narrativas. Isso não aparece apenas como citação, mas ele mesmo elabora, junto aos leitores, o problema de contar uma história, como se nota no trecho a seguir, extraído do livro Right ho, Jeeves:
(…) Eu não sei se vocês já tiveram a mesma experiência, mas o obstáculo que eu sempre enfrento quando estou contando uma história é essa dificuldade de onde começá-la. É uma coisa que você não quer jamais que dê errado, porque basta um passo em falso e você está derrubado. Digo, se você se enganar demais no momento de iniciar, tentando estabelecer uma atmosfera, como eles chamam, e todo esse tipo de bobagem, você fracassará em agarrar seu leitor, e ele fatalmente te abandonará. Começar rapidamente, por outro lado, como um gato escaldado, fará seu público ficar perdido. A audiência simplesmente levantará suas sobrancelhas e não terá idéia de sobre o que você está falando.
Toda essa carta de princípios antes de iniciar mais uma história sobre Wooster e Jeeves, mas tão importante quanto começá-la, serve exatamente para criar essa atmosfera para o leitor, ainda que ele esteja sendo avisado dos perigos e das oportunidades dessa estratégia. Sem descuidar de seu estilo, é um autor, Wodehouse, que não hesita por pagar homenagem aos clássicos da literatura sem que isso seja um fardo para os seus leitores, de modo que as notas de rodapé ou eventuais explicações sobre seus textos sejam praticamente desnecessárias, haja vista que o seu objetivo primeiro é fazer-se compreender. Para chegar a essa conclusão, basta afirmar que textos de apoio ou mesmo comentários interpretativos não sejam absolutamente necessários para compreender sua obra. Antes, o que o leitor efetivamente necessita é disposição e paciência para que o modo como a história vai se desenvolver tome forma e alcance algum fôlego.
Essa preocupação com o leitor (expressa ora de forma direta, ora de maneira indireta) está visível, ainda, na extensão dos seus livros, assim como na caracterização de seus personagens. No primeiro caso, são histórias que se apresentam não apenas de forma linear, mas, principalmente, com um timing estrategicamente definido. Para ser o mestre da gargalhada discreta, Wodehouse joga também com o leitor, no sentido de não escrever de forma desnecessária. Talvez por isso sua vasta obra (com mais de noventa romances e outros duzentos contos) seja marcada por um tipo diferente de repetição. O escritor inglês se debruçava o tempo todo sobre os mesmos temas (a relação comportamental e a mudança de costumes numa sociedade de classes), mas conseguia estabelecer situações distintas para eles. Em outras palavras, Wodehouse conseguia tratar de forma exclusiva um tema que para muitos soaria como assunto encerrado.
Em relação aos personagens, a estratégia parece ser a mesma. Assim, quanto mais conhecemos as obsessões e as confusões de seus protagonistas, mais queremos descobrir quais serão suas reações perante as cenas propostas pelo escritor. Do ponto de vista autoral, a grandeza de Wodehouse reside exatamente na maneira como ele é capaz de se reinventar sem quebrar com os modelos já estabelecidos e, paradoxalmente, manter-se fiel às suas histórias sem chatear seus leitores, que curiosamente prosseguiam querendo mais do mesmo.
Terceira hipótese: a alienação política
Se, por um lado, Wodehouse gozava de prestígio internacional a ponto de ser acompanhado tanto pela elite intelectual de seu tempo (George Orwell afirmou ter lido boa parte da obra do escritor) quanto pelos nobres (recentemente, um prefácio sobre o autor revelou que a Rainha Mãe encomendou dezoito livros para a então princesa Elizabeth, nos idos de 1941), é certo que P. G. Wodehouse jamais foi um autor político, tampouco se interessava pelo tema. Ainda assim, como os tempos eram para lá de conflituosos, o escritor se viu metido numa controvérsia que até hoje é motivo de confusão e desinformação a seu respeito. E a história, não fosse trágica, poderia constar de uma das desventuras de seus livros.
Nas décadas de 1920 e de 1930, Wodehouse já obtinha resultado considerável de sua atuação como escritor. À época, no entanto, ele foi um dos primeiros a ter de pagar ao fisco imposto pelo quanto recebia tanto ao governo norte-americano quanto ao inglês. Para se ver livre dessa pesada bitributação, ele foi aconselhado a estabelecer residência na França (mais especificamente em Le Touquet, na região administrativa de Nord-Pas-de-Calais) e, com isso, pagar apenas uma fração do que vinha sendo cobrado até então. Com a iminência da invasão alemã, Wodehouse e sua família esperavam ser avisados pelos ingleses que viviam na ilha para a necessidade de fugir. Como esse aviso jamais veio, Wodehouse foi levado para um cativeiro — num acampamento próximo a Auschwitz — e, mesmo lá, manteve sua atividade criativa, embora seu humor, depois da Segunda Guerra Mundial, viesse a ser percebido como excessivamente naïf. Problema mesmo foi quando o identificaram como eventual colaboracionista do nazismo, posto que suas emissões radiofônicas aos ouvintes dos Estados Unidos e da Inglaterra foram produzidas como peças de propaganda pelos estrategistas do nazismo no contexto daquele conflito. Embora tenha se defendido, Wodehouse ficaria marcado depois da Segunda Guerra Mundial e jamais voltaria a viver na Inglaterra — morreu, em 1975, nos Estados Unidos.
Muito já se escreveu acerca da controversa e polêmica participação de Wodehouse na Segunda Guerra Mundial. Para muitos, foi uma espécie de inocente útil, demasiadamente ingênuo ao não saber distinguir de forma racional o que estava em jogo naquele momento. Não se tratava mais de literatura, e a inteligência de um autor capaz de elaborar personagens e diálogos a partir de situações esdrúxulas, além de extrair o cômico de uma cena ordinária, não se mostrou tão aguçada assim. Sua escolha, na perspectiva de hoje, com aquele conflito encerrado, parece-nos pouco digna de sua capacidade intelectual. A propósito disso, George Orwell escreveu um ensaio famoso, In defence of Wodehouse, que merece menção não somente pela compreensão dos eventos daquele período, mas pela argumentação sempre precisa de Orwell. O autor de 1984 destacou que o entendimento de que Wodehouse havia sido um colaboracionista não se sustentava, isso porque a leitura de parte da obra do escritor não indicava qualquer atividade política, seja nos temas, seja nos personagens (Orwell chega a chamá-lo de “inocente político”), além do fato de Wodehouse ter pertencido a outra época no que se refere à elaboração de seus textos. Nesse quase-manifesto há ainda um fragmento interessante, da mais arguta percepção crítica literária:
Uma coisa que as pessoas costumam se esquecer dos romances de P. G. Wodehouse é há quanto tempo os mais conhecidos deles foram escritos. Pensamos nele como em certo sentido, tipificando a ingenuidade dos anos 1920 e dos anos 1930, mas na verdade as cenas e personagens pelos quais ele é mais lembrado fizeram sua aparição antes de 1925. […] Quando se olha através da lista de livros de Wodehouse a partir de 1902, pode-se observar três períodos bastante demarcados. O primeiro é o período dos anos escolares […] O próximo é o período americano. Wodehouse parece ter vivido nos Estados Unidos aproximadamente entre 1913 e 1920, e por um tempo mostrou sinais de se tornar americanizado tanto no idioma como nas perspectivas. […] O terceiro período pode apropriadamente ser chamado o período da casa de campo. Até o início dos anos 1920 Wodehouse deve ter feito uma renda muito grande, e, em conformidade, o status social de seus personagens foram movidos para cima […]. O cenário típico passou a ser uma mansão, um apartamento de solteiro de luxo ou um clube de golfe caro. O atletismo escolar dos livros anteriores desaparece, cricket e futebol dando lugar ao golfe, e o elemento de farsa burlesca torna-se mais acentuada. [Nesse sentido,] o quanto da fórmula de escrita de seus livros mais tarde tornou-se apenas uma pode ser vista a partir do fato de que ele continuou a escrever histórias de vida dos ingleses, embora ao longo dos dezesseis anos antes de seu confinamento pelos nazistas ele já estava vivendo em Hollywood (EUA) e Le Touquet (França)
Para Orwell, portanto, a repetição esquemática de sua estrutura narrativa era uma das evidências elementares da inocência de Wodehouse no tocante à sua acusação de traidor.
É bem provável, no entanto, que outro diagnóstico (sub-reptício) de Orwell esteja correto — e nesse caso Wodehouse seja efetivamente culpado. Porque, com vasta obra publicada, não é absurdo imaginar que ele tenha sido, sim, refém de suas histórias e cativo por tempo indeterminado de suas criações artísticas. Desse modo, foi incapaz de perceber que o espaço para esse humor ingênuo e, por conseguinte, pouco malicioso seria ao mesmo tempo sua principal virtude e seu pecado capital, na leitura de um mundo brutalizado pelos eventos de uma guerra de proporções mundiais. No limite, o ideal seria dizer que sua literatura permanece, com livros e séries (uma delas foi protagonizada na Inglaterra por Hugh Laurie e Stephen Fry), mas é correto assinalar que seja o canto do cisne desse tipo de literatura: entretenimento de alta qualidade, com produção em larga escala, sem apelar para o riso fácil ou para as estratégias corriqueiras dos grupos que preferem politizar o humor para conquistar a mídia chique com uma suposta inteligência. Wodehouse conquistou leitores diversos — do filósofo Ludwig Wittgenstein ao poeta T. S. Eliot, passando, mais recentemente, pelo ensaísta e crítico Christopher Hitchens, que o chamava de “mestre” — sem lançar mão desses recursos. Daí a sua grandeza. E por isso mereceria ser lido todos os dias, para rir sem perder a classe.
Notas
[1] Fragmento do poema Ode ao outono, de John Keats (1795-1821)