Literatura sem deus

Entrevista com Wesley Peres
Wesley Peres, autor de “As pequenas mortes”. Fotos: Dennis Melo
01/06/2013

Para o personagem-narrador de As pequenas mortes (Rocco), a escrita é o ato físico que o impede de morrer — ou que ao menos o mantém vivo. Neste novo romance de Wesley Peres, acompanhamos as confissões e obsessões de Felipe Werle, músico frustrado, paranóico, que resolve exorcizar seus demônios através da palavra. Apesar da carga deprimente de sua história e da personalidade “controversa” do personagem, a narrativa tem bem seus traços de humor, ironia e intertextualidade — e semelhanças com seu autor. Wesley Peres, assim como Werle, é assombrado pela morte, sobretudo pelo acidente com o Césio 137, ocorrido em 1987, em Goiânia (GO). Assim, o grande tema do personagem é o ponto de partida para o autor de As pequenas mortes explorar as relações entre corpo e linguagem.

Nascido em 1975, o escritor e psicanalista goiano Wesley Peres é também autor do romance Casa entre vértebras (2007), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, e dos livros de poesia Palimpsestos, Água anônima e Rio revoando. Na entrevista abaixo, concedida via e-mail, Peres fala sobre seu desejo de frustrar o sistema de expectativas do leitor, a literatura como “possibilidade de converter em potência o fracasso constitutivo da linguagem” e, claro, morte. 

• O personagem-narrador de As pequenas mortes parece não ter pudores ao analisar e criticar os outros e a si mesmo. Assim, tem-se a sensação de honestidade e de acesso a seus pensamentos mais obscuros. No entanto, ele se contradiz o tempo todo e o surgimento de um novo narrador (supostamente o verdadeiro narrador) a certa altura do livro deixa o leitor desconfiado. O jogo que você elabora reflete algum tipo de descrença no ato de narrar?
A descrença não é quanto a narrar, e talvez nem seja descrença, mas desconfiança radical no que se refere à verossimilhança, no sentido de criar um universo orientado por um “espírito de sistema” (Beckett). Isto é, desconfiança de narrar como criação de um universo ficcional em que todos os pontos estejam amarrados e onde todos os acontecimentos pareçam plausíveis. Com isso, quero dizer que se literatura e vida são uma coisa só (Rosa), a estrutura ficcional tem de se articular supra-assumindo zonas injustificadas, contingenciais; algo que funcione como alteridade radical ao espírito de sistema (do qual Beckett dizia que era preciso se livrar). Tais zonas comparecem como acontecimentos impossíveis, mas que mesmo assim aconteceram num universo ficcional que se põe de pé numa lógica, mas numa lógica que manca. Então que o “princípio organizador” (o autor) deve calcular a construção de bordas que margeiem essas zonas de imprevisibilidade. Não suporto textos em que, estando na metade da frase, posso antecipar a outra metade. Instituir essa contingência na estrutura implica não só pensar no conjunto, mas, também, na construção frase a frase, com o rigor do poema; e também ficcionalizar utilizando-se o movimento do poema, capaz de produzir experiência estética a partir da frustração do sistema de expectativas do leitor, não só no que diz respeito à coisa narrada, mas também à forma que dá existência à coisa narrada e, mais do que isso, ao mundo ficcional posto de pé — não é porque tal mundo esteja de pé que ele não manque. Aliás, ele está de pé porque manca.

• Houve um momento na escrita em que “perdeu controle” sobre o livro, em que ele criou rumo e regras próprias? Como se deu o processo de planejamento, estruturação e edição do texto em relação à voz naturalmente “descontrolada” que criou?
Não compreendo essa história de o livro criar rumo e regras próprias. Sei que muitos autores dizem experimentar isso, apenas não compreendo. O planejamento, estruturação e edição ocorreram a partir de uma idéia motriz, justamente a de criar uma estrutura ficcional que comportasse a contingência e que, como estrutura mesmo, se estruturasse em torno de uma estética da imanência. Veja bem, a transcendência é homóloga à noção de teleologia. Assim, a narrativa cristã do mundo se orienta rumo à finalidade de atingir um outro mundo, uma outra topologia, um outro espaço; a narrativa marxista do mundo se orienta também pela finalidade de instituir um outro mundo, não utópico no sentido de outro espaço, mas um outro mundo no tempo, num tempo que está por vir, sempre por vir, sempre. Esse movimento narrativo me parece replicado na noção de uma história estruturada em torno de um clímax, um arco narrativo que se quebra sobre si mesmo, determinando obrigatoriamente o fim da história, o apocalipse narrativo — de modo que essa forma me parece um tipo de transcendência, da promessa de que tudo acontece com uma finalidade que ultrapassa completamente o acontecimento, amarrando-o num ponto que justifica cada um e a totalidade dos acontecimentos (esse ponto é o clímax), criando o espírito de sistema, de salvação, afinal tudo fará sentido, pode confiar. Também não me parece que haja uma voz naturalmente descontrolada, mas artificialmente tautológica, no sentido de ela não se estruturar amarrada a um objetivo final, um clímax, uma justificativa última. Volto à idéia de que desejava que a estrutura comportasse a contingência, como uma máquina narrativa que produzisse espécies de giros em falso, movimentos que apreendessem algo da vida na medida em que tudo o que fosse dito por essa voz, inclusive os acontecimentos narrados, valesse por si mesmo e não por um objetivo último, um clímax, um arco narrativo para enfeitar a paisagem e entreter o leitor. Nisso há uma estética e uma ética, uma po-ética (perdão pelo trocadilho) de fazer a forma falar “a vida é imanência”, “não espere salvação, “salvação é salvar-se da vida por meio de uma vida em promessa, que nada vale”, “não há garantias”, “faça o que tenha de fazer, por sua própria conta e risco”, “qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento”. Que isso seja dito formalmente e não fazendo um manifesto ou panfleto. Por outro lado, fazer uma narrativa justificada pelo clímax, contar uma história da forma mais tradicional é uma escolha ética e estética tão válida quanto a que fiz. Philip Roth (agora é moda dizer que é moda gostar de Roth), em livros como O teatro de Sabbath e Pastoral americana, faz justamente o oposto disso que me interessa e que penso que fiz. No entanto, Roth me interessa quase tanto quanto Beckett ou a Virginia Woolf de As ondas, que estão muito mais próximos dessa estrutura que escolhi para arranjar o universo ficcional: universo no qual coincidem força e falhas.

• Noventa por cento dos desejos do narrador, Felipe Werle, são censuráveis. Além disso, ele fuma, bebe, usa drogas e seria facilmente classificado como politicamente incorreto. Foi sua intenção se manifestar contra certas normas da sociedade, e a favor da liberdade na literatura? Aliás, até onde vai a liberdade na literatura?
Politicamente incorreto? Não, não mesmo. Fumar, beber e usar drogas é algo bastante integrado à sociedade, todos sabemos. Quanto aos desejos sexuais de Werle, ora, como disse Nelson Rodrigues, se soubéssemos da vida sexual uns dos outros (incluindo, obviamente e talvez sobretudo, fantasias e desejos), ninguém cumprimentaria ninguém; no entanto, todos sabem de suas próprias perversões da vida cotidiana (incluindo, de novo e obviamente e talvez sobretudo, fantasias e desejos), e só alguém muito ingênuo supõe a ausência dessas perversões da vida cotidiana no outro e no Outro social. É uma grande besteira isso de que a sociedade tem um só vetor, só o vetor de sua legalidade e de sua moralidade explícita; sobretudo numa sociedade como a do nosso tempo, em que o consumo tudo devora, em que só é imoral o que não pode ser consumido. Sobretudo numa sociedade assim, o vetor das coisas “imorais, ilegais e que engordam” é tão constitutivo da sociedade quanto aquele outro, assumido de modo mais explícito, pelo menos ao nível dos ideais. Quanto à liberdade da literatura (que não é total; a totalidade é só um sonho daquilo que há de pior em nós humanos), penso que ela consiste na possibilidade de dispor de tudo quanto na cultura haja. Assim há a possibilidade de se criar algo novo a partir do que já está inscrito como tradição (tradição é preguiça, desconhecer a tradição é duas vezes mais preguiça). De resto, a literatura existe para servir a deus nenhum.

• O leitor acaba desenvolvendo certa intimidade com Werle, ao passo que na vida real certamente evitaria esse tipo “desagradável”. Você procurou criar algum tipo de empatia entre ele e o leitor?
John Barth escreveu que todo autoconhecimento é uma má notícia. Suponho que o que há de desagradável em Werle seja constitutivo do que é humano. Há uma crueldade no enfoque do texto sobre o personagem, uma visão sarcástica. Penso que isso cria uma empatia com o leitor do seguinte modo: ora rir em consonância com o sarcasmo do texto enquanto constrói Werle, ora ser objeto desse riso sarcástico, uma vez que a desagradabilidade do personagem dá ao leitor algumas más notícias sobre ele mesmo.

Wesley Peres

• Sobre uma das obsessões do personagem, o escritor irlandês John Banville diz: “A morte nos forma. Tudo o que fazemos é um desafio à morte, em oposição a ela. A morte é o grande dom e o grande horror que nos foi dado, junto com a autoconsciência”. Concorda com esta afirmação?
Concordo. Sem a morte e sem o saber da morte, o homem seria como os animais que, segundo Bataille, estão no mundo como a água está na água. Andar de quatro seria isso, ser assujeitado ao meio a ponto de não se distinguir dele. A linguagem quebra a coluna do tempo, trazendo a morte do futuro para o presente, e como o presente é o futuro do passado, tudo que é humano é cortado pela morte — o que faz de nós uma espécie solitária, recortada do mundo; faz de cada homem sozinho, recortado do conjunto dos outros homens. Por isso não há O homem, há cada um tentando a muito custo lançar alguns fios sobre os abismos que o separam (desde sempre) dos outros homens. Só que a linguagem é o abismo e são os fios. A linguagem os aproxima, porque de saída afasta os homens irremediavelmente. E a linguagem literária serve para afastar os homens uns dos outros e de si mesmos. Depois que estiverem todos muito longe uns dos outros e sobretudo de si mesmos, os homens poderão falar por uns fios de linguagem, mas não falarão uma linguagem que lhes é imposta, fascista (Barthes), mas um tanto mais livre, porque visitada tanto pela inteligência quanto pelo afeto. Não sabemos nunca o que fazer com o corpo, que é uma constante subtração de si. Sabemos (por culpa de Montaigne) que um bebê já é velho o suficiente para morrer, então que só se escreve movido por essa constante subtração de si que define o corpo vivo. Não ficamos de pé quando encontramos o fogo, e sim quando encontramos a linguagem. Lejeune (ou Todorov?) diz uma coisa muito bonita: os homens que andam pela rua só param de pé porque são homens-narrativa. Eu diria porque são homens-linguagem. Então, então mesmo: só se escreve a partir da morte, que retroage sobre nós, nos impulsiona, exige de nós o trabalho de tornar a vida minimamente viável, não aplacando seus núcleos infernais, mas fazendo disso alguma coisa que nos coloque de pé.

• Tanto Casa entre vértebras (carta do narrador a sua namorada) quanto As pequenas mortes (confissão do personagem-narrador impregnada por suas obsessões) são romances cujo elemento que mais se destaca é a linguagem. Neste último, Felipe Werle, na tentativa de “organizar o caos”, se repete, contradiz e parece não chegar a lugar nenhum. O livro possui poucos personagens e apenas o narrador e Ana, sua namorada, ganham contornos mais definidos; não há ação ou uma trama se desenvolvendo. Preocupou-lhe em algum momento o risco de cair na recorrência de citações e idéias ou ainda na experimentação do vazio, na pura e mera forma?
Não há experimentação. Posso citar de cabeça alguns romances que são referências cruciais e não são ficções “com uma trama se desenvolvendo”: Molloy, Malone morre e O inominável, do Beckett (aliás, praticamente toda a ficção do autor); As ondas, da Virginia Woolf e, também da escritora inglesa, a segunda parte de Passeio ao farol, chamada “O tempo passa”, mas que é constituída quase só de espaço e pode ser lida independentemente; A paixão segundo G. H. e Água-viva, da Clarice; Prosa do observatório, do Cortázar; Ulysses e Finnegans Wake; e ainda poderia falar de Marguerite Duras e de Georges Perec e de Campos de Carvalho; de Pena de morte, de Maurice Blanchot; A rainha dos cárceres da Grécia, do Osman Lins, romance que dá ao leitor a experiência de ler, ao mesmo tempo, um romance e um ensaio sobre esse mesmo romance, ou seja, um texto que, ao se duplicar, sai para fora de si mesmo. Cito esses autores para dizer que o que faço é um diálogo com a tradição. Agora, há de se escolher com que tradição sua obra conversa: essa é a tradição com a qual me interessa dialogar. Outra coisa, que está longe de ser uma invenção minha, é na verdade uma coisa típica da “tradição da modernidade”: a citação, a paráfrase, a paródia, a reflexividade textual (esta, levada à máxima potência em A rainha dos cárceres). No caso específico da citação, bem, há nos meus livros citações explícitas e outras integradas à estrutura textual, de tal modo que ninguém as percebeu; há citações legítimas e ilegítimas, ficcionais, atribuídas a fontes distorcidas, da alta literatura e de maravilhas literárias que roubei da boca de pessoas, coisas que escutei. Há citação (implícita) até de uma frase extraordinariamente bem construída que extraí da fala de um personagem de desenho animado (minha filha me chamou a atenção para ela). Bom, isso tudo também não inventei. Há quanto tempo Bakhtin falou da polifonia no romance e Antonio Candido afirmou que o romance é onímodo? As citações em seus diversos modos constituem um ótimo instrumento polifônico e de composição da variação formal. No que se refere a um possível temor em cair na pura e mera forma, afirmo que isso não existe, a pura e mera forma, assim como não existe o puro e mero conteúdo. O conteúdo se constitui em algo que acontece entre os vazios da estrutura da obra e as inquietações do leitor que o levam a percorrer esses vazios, colocando algo de si (de sua enciclopédia, como diz Eco) — podendo ser esse algo de si inclusive os seus próprios vazios, dele, leitor, os seus desencaixes, sua diferença radical consigo mesmo e com o mundo (não há “consigo mesmo” sem que haja mundo, e isso que estou dizendo é mais velho do que andar pra frente). Logo, se uma obra não é lida, qualquer que seja a sua estrutura, ela é pura e mera forma, morta; se é lida, e se o leitor tem uma experiência estética com essa forma, ela é obra viva, que ressoa na carne e na inteligência de quem lê.

• Por que optou por ambientar a história em Goiânia, ligando-a ao acidente real de contaminação com o Césio 137 que ali ocorreu? O romance poderia se passar em outro lugar?
O helenista Jean-Pierre Vernant afirma que a tragédia humana consiste nisto: só sabemos o que fizemos depois de fazê-lo. Lacan reitera isso e mais: quando se diz, não se sabe o que se diz; depois, às vezes, entendemos um pouco. Falamos para humanizar o silêncio da carne, reparti-lo. Falamos para dar rede a essa explosão que nos habita, e que Freud chamou de pulsão de morte, e que Lacan chamou de Gozo, de Outro Gozo — ou Gozo do Corpo, ou, ainda, Gozo do Ser. Escrevi As pequenas mortes, dentre outras causas, porque vivo sob o espanto permanente da morte, grafada em mim em 1987. Neste ano, eu, uma criança vivendo em Goiânia, estive mergulhado na paranóia desencadeada pelo acidente com o Césio 137. Há uma cena em especial que marca o modo como a morte, em mim, deixou de ser uma abstração e se tornou algo muito concreto: a mão queimada, vazada, da menina Leide das Neves e, ao seu redor, no quarto do Hospital Naval, no Rio de Janeiro, uma profusão de bonecas e flores que as pessoas doavam e que, na época, me parecia um modo de as pessoas a enterrarem viva. Em reação, construí fantasmas disso. Escrevi também a partir desses fantasmas. Talvez fosse melhor dizer: fui fantasmado por esse acontecimento. Talvez tenha sido uma “escolha forçada” — se é que existe outro tipo de escolha — colocar isso em obra. Se assim é, escrevi As pequenas mortes e talvez escreva sempre por causa dos imprevistos que me encontram, que me desorganizam e me obrigam a uma desorganização-reorganização, a uma des-reorganização. E é aí que o singular e o universal se engancham, o mundo humano é uma fantasia de organização, de sistema, que nos faz sonhar com uma realidade que exclui tanto os monstros dos acontecimentos imprevistos quanto o monstro do único acontecimento absolutamente previsto, a morte. O acidente do Césio me pareceu um mote imperdível para tratar desses monstros do imprevisto e desse grande monstro do absolutamente previsto e impossível de ser metabolizado pelos mecanismos de construção da realidade humana (afinal, tudo que é humano é construção; mesmo assim, dói). Agora, com relação à escolha de Goiânia, posso dizer que a cidade construída no livro padece de uma oscilação espacial entre o que existe fora do livro e o que só existe dentro dele. A história poderia se passar num lugar que se chamasse Bombaim, Goiandira ou Yoknapatawpha.

• “Que o texto freqüente os vazios do leitor e tenha seus vazios freqüentados pelos vazios do leitor” é o que pretende o escritor Felipe Werle. O que você busca em suas leituras? Quais são seus autores preferidos, já que eles não são necessariamente os que se aproximam da sua própria literatura?
O vazio de que se trata aí é o esvaziamento de sentido, em que se pronunciam as sílabas da carne, do pulsional, do corpo vivo. O único consolo para a morte é a vida. Dito isso, penso que precisamos nos curar do sentido e das justificativas — já se escreveu por aí que o nosso problema, de nós humanos, é que nos justificamos demais. Tudo é uma construção, mesmo assim dói — nessa dupla e mútua freqüentação de vazios, do texto e do leitor, acredito que se pode experimentar isso que dói, isso que vive, isso que goza, o corpo vivo que escapa à linguagem, mas que só nos é dado sorvê-lo via um certo uso da linguagem — uma linguagem que freqüenta o território do sentido justamente para permitir flanar fora dele. Ler é escrever, assim, não busco só quem se aproxima da minha literatura, ainda que busque estes também. Tenciono produzir uma escrita que saia de si. Publiquei cinco livros e creio que tenho conseguido colocar em curso uma obra descentrada de si. Do Casa para As pequenas mortes, ainda que obsessões permaneçam, há um pequeno e fundamental abismo que os separam. Ainda sobre as leituras: Tolstói e Dostoiévski são muito distantes do que faço, mas não sei se há obras maiores do que a desses dois russos, também de escritas tão distintas entre si. Nabokov, de quem gosto muito, disse que há escritor de contar história e escritor de fabricar encantamentos com a linguagem. Não posso negar que leio muito os do segundo grupo, e que dos contadores de história prefiro aqueles que, ao mesmo tempo, são fazedores de encantamento. Assim que minha lista de preferências fundamentais é assim: Guimarães Rosa (para mim, o maior de todos), Raduan Nassar, Mallarmé (sobretudo de Igitur), Virginia Woolf, Sterne, Ricardo Guilherme Dicke (sobretudo o de Madona dos páramos), Faulkner, Céline, Joyce, Campos de Carvalho, Barthes, Clarice Lispector, Osman Lins, Roberto Juarroz, Gombrowicz, Euclides da Cunha, Padre Antônio Vieira, Cioran, Blanchot, Montaigne, Perec, Jorge de Lima, Francis Ponge, Haroldo de Campos, Bataille, Lúcio Cardoso, João Cabral, Paul Celan, Marianne Moore, Jacques Roubaud, Pessoa (sobretudo o Livro do desassossego), Ágota Kristóf (não Agatha Christie), Samuel Beckett (talvez o maior de todos), Marguerite Duras.

Wesley Peres

Casa entre vértebras, seu romance anterior (e de estréia), venceu o Prêmio Nacional Sesc de Literatura, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e indicado ao Portugal Telecom. Qual a importância dos prêmios literários para o escritor brasileiro?
No meu caso, o Prêmio Sesc, que dá ao vencedor a publicação por um grande selo, me tirou de uma espécie de limbo. Hoje publico por uma editora excelente, a Rocco, e isso tem a ver com as ressonâncias de ter vencido o Prêmio Sesc, ter sido finalista do Prêmio São Paulo e indicado ao Portugal Telecom. Tenho leitores (ufa! Escrever para as gavetas é uma merda), trabalho em um novo livro, que deverá se chamar A invenção do corpo, e estou mais do que contente com isso. Sinto não poder responder nada além disso. Falar da importância dos prêmios de algum modo me remeteu à palavra mercado, e quando a ouço, minha língua trava. Deve haver tratamento, mas (parafraseando meu pai) prefiro não tratar isso, pois se o fizer, corro o risco de desandar a pensar e, pior, a falar sobre mercado ao invés de trabalhar no próximo livro.

• Muitos autores acreditam que é preciso aceitar o fracasso da escrita: nunca se vai escrever o livro que se deseja. Como lida com essa questão?
Todos os livros que escrevi foram livros que desejei escrever. Penso que todos eles fazem parte da construção de uma obra (sempre que digo isso, lembro do Millôr zombeteiramente dizendo que obra é coisa de pedreiro), como se cada livro fosse um fascículo de um livro maior e múltiplo. Agora, tenho uma companhia agradável e perturbadora, que é a do próximo livro que desejo escrever. Desejo sempre produzir algo descentrado com relação ao livro anterior, algo que se construa por uma ruptura maior ou menor — claro que um dia será o último e não saberei disso e estarei perturbado pelo próximo livro, aquele que nunca escreverei. É evidente que se digo que escrevi os livros que desejei escrever é porque tenho gosto pelo fracasso da escrita, do fracasso constitutivo da escrita; sobretudo a escrita literária me parece comportar a possibilidade de converter em potência o fracasso constitutivo da linguagem. Se há esse fracasso constitutivo da linguagem, por que eu pensaria em produzir um livro que não portasse em si a falha, a rasura, até mesmo o defeito? Antônio Poteiro dizia que a arte é, dentre outras coisas, uma soma de erros. Por fim, tenho a crença de que enquanto estiver vivo, sempre escreverei o próximo livro, de modo que não me assombro com nunca escrever o livro que desejo, mas sim com a impossibilidade de escrever o próximo livro — isto é, a morte.

• Fala-se não apenas da falta de espaço para a literatura no jornalismo atual como também da omissão de novos autores e pequenas editoras fora do circuito tradicional. Blogs e sites de literatura conseguem suprir esse vácuo?
Quando não sei falar de uma coisa, prefiro me calar. Mas nesse caso vou falar mesmo sem saber do que estou falando. Passei a ter leitores — não são muitos, mas eles existem — depois de ser publicado por um grande selo. Ajudei a criar uma revista literária digital, a Mallarmargens. Iniciativas assim ocupam algum espaço nesse vácuo a que você se refere, um espaço pequeno, porém fundamental. Fundamental porque conheci por meio da Mallarmargens, da Modo de usar e de outras revistas digitais autores que leio, me interessam muito e estão distantes do que você chamou de circuito tradicional. Citaria vários, mas há pelo menos três que faço questão: Alexandre Guarnieri, autor de Casa das máquinas, um dos livros de poema mais impressionantes que já li; Mar Becker, poeta inédita em livro; e Juliana Krapp, quase inédita no papel impresso, pois foi “antologizada” pela Heloisa Buarque de Hollanda em Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas.

• Diz-se que os narradores da literatura brasileira contemporânea são o espelho de seus autores. Há semelhanças entre Felipe Werle e você?
Para responder terei quase que repetir uma coisa que disse em outro lugar. Se pensarmos biografia como escrita da vida, da experiência com o corpo (e não acontecimentos da vida de uma personalidade), essa coisa infernal que vive e que morre, então toda escrita literária é biográfica. O jogo ficcional aponta o seguinte: por meio da forma, se a coisa narrada aconteceu na “famosa realidade” ou não, isso não tem nenhuma importância. Um livro, se for de literatura, tem de ser uma máquina de linguagem que mimetiza a realidade diferindo dela e se sustentando por si mesma — ainda que aberta, em níveis variados, ao mundo. Jorge Amado tinha uma capacidade imensa de imaginar fatos, mas fabulava mal quando escrevia. Não sou eu que digo, o Graciliano, certa vez, chegou até ele e disse: “Jorge, invejo muito sua imaginação, eu não tenho nenhuma. Mas… Por que você não aprende a escrever?”. Ou seja, se o cara imaginou ou se roubou da realidade (como Joyce, um fabuloso ladrão de realidades), só importa para essa coisa poderosa que há em nós, a curiosidade pela vida alheia (também conhecida por fofoca), que tão pouco tem a ver com literatura. Gosto de citar esse trecho do Amoz Oz, que acho fundamental: “Tudo é autobiográfico: se um dia eu escrever uma história sobre o caso de amor entre madre Teresa e Abba Eban, com certeza vai ser uma história autobiográfica […] O mau leitor quer sempre saber, e rápido, o que realmente aconteceu, qual é a história que está por trás, do que realmente se trata, quem está contra quem, quem afinal transou com quem”. Por fim, sei que há os que dizem que a literatura brasileira contemporânea é isso ou aquilo, como se tal literatura fosse uma espécie de entidade indistinta, aplainada. Mas pergunto: dá para pensar de modo tão aplainado sobre a literatura brasileira atual quando temos autores tão disjuntos como André de Leones e Juliano Garcia Pessanha, Tatiana Salem Levy e Vicente Franz Cecim, Adriana Lisboa e Halley Margon, Maira Parula e Ana Paula Maia, Paloma Vidal e Brisa Paim, Marcia Tiburi e Daniel Galera, Evandro Affonso Ferreira e Marcelo Mirisola? Isso sem falar na poesia, há uma imensa heterogeneidade entre as obras. Só para citar alguns: Angélica Freitas, Micheliny Verunschk, Moacir Amâncio, Claudia Roquette-Pinto, Heleno Godoy, Mariana Ianelli. Como escreveu Proust: “Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas”.

Yasmin Taketani

É jornalista.

Rascunho