Sei muito bem que pouco importa o que eu ache ou deixe de achar, mas considero O mundo do sexo, de Henry Miller, um valioso e esclarecedor ensaio sobre vida, liberdade e arte. O quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell,corre por fora cabeça a cabeça. Infelizmente, a maioria das análises opta sempre pelo mais fácil, o que está mais a mão, e o classifica junto com sua obra como pornográfico. Discordo. Na verdade, Miller ainda é lido com as lentes da hipocrisia. Sempre encarei seus livros como um anúncio de liberdade, talvez os veja desse modo por acreditar que não exista bem mais valioso que este. Por pensar assim, sei que vou morrer sem entender como grande parte da humanidade se desfaz da propriedade de ser livre, não entendo mesmo! O que vemos então? Casamentos de fachada, profissões sendo abraçadas porque são rentáveis e a hipocrisia se alastrando com eficácia capaz de humilhar o carioca Aedes aegypti.
Importante ressaltar que ao longo da obra de Henry Miller, embora com a liberdade sempre como protagonista, o que não falta é movimento, a repetição nunca é percebida. E alguém conhece liberdade sem movimento? Conhece, acomodado leitor? Um pedido, antes que eu esqueça: por favor, não compare Henry Miller com Bukowski, este não passa de um arremedo depressivo. A liberdade é muito maior que um porre e suas variantes, a liberdade é irmã gêmea do amor, ou conforme Sartre: “uma realidade metafísica, com o sentido de uma realidade transcendental; a realidade que se ama em cada um, é a origem, a salvação. Cada homem deve ser produto da comunidade e de uma realidade livre”. Você encontrará essa mesma posição ao longo da obra de Henry Miller. Mas por que o sexo choca tanto? Por que vivemos tempos de transição, saindo de homus cinicus para homus dissimuladus. Nos acostumamos e nos acostumaram a revestir de sublime o tal do amor, mas o que vem a ser esse amor? O amor é quase uma chantagem. Na verdade, qualquer bobagem pode se chamar de amor. Ainda estou para conhecer amor que não reprima. E por ser assim, amor não tem graça, o que movimenta é o sexo.
Liberdade também é procurar o amor. Então, por que não procurar amor e sexo? Leia Henry Miller com atenção e perceba o porquê da ausência desse amor nauseante, o amor melequento. Porque isso não existe, é a consciência da liberdade que permite a invenção do amor. Lamentável, leitor, você ainda não tinha pensando nisso? Perdoe, divagações de um velho com três casamentos desfeitos e exercitando algumas fórmulas no afã de inventar o amor.
Metáfora principal
Viver e vida, o primeiro depende do segundo e para que este se legitime necessita da vontade de querer aproveitá-la, contida no primeiro. Aí se estabelece a confusão. Caso o paciente leitor esteja acompanhado, faça a pergunta: o que é vida, o que é viver? No meu entender, o exercício da vida implica, também, no exercício do sexo. Calma, não se alvoroce, tudo dentro do razoável, ou melhor, da fartura razoável. Não sei, no entanto, quais razões levam a comunidade heterossexual a não conferir a devida importância ao tema. Ainda bem que o vasto contingente homossexual não se intimida, não se reprime e faz justiça. Acredito que assim procedam por saberem a distância que separa a vida do viver. Nunca esquecer que a vida furiosa não poupa ninguém. A questão se resume ao modo com que Henry Miller utiliza as palavras dando a algumas um caráter poético, cria assim uma síntese de imbricações entre o som e o significado verbal. Em todas as palavras sobressai a riqueza afetiva. É esse o método que unifica autobiografia e ficção e impede a despersonalização do autor diante da obra, diante das palavras. Desse modo, o autor reflete a vida. Henry Miller compreende a realidade da vida, uma totalidade, uma certeza como a liberdade de ser e que privilegie ao mesmo tempo espírito e carne. A liberdade é uma presença incandescente e uma permanente tentação, o sexo se converte na sua metáfora principal. O desejo de liberdade, aliado a um desejo criativo, se traduz em premonições de amor e razão de viver.
É isso, o homem voltando a ser homem, reconquistando a liberdade, consciente de sua inesgotável capacidade criativa, voltando à inocência.
Entram em cena amor e sexo, ora unidos ora antagonistas, existe bem e mal em ambas possibilidades, a liberdade permite a escolha. Os hipócritas optarão pelo antagonismo e perceberão no sexo a devassidão, a sujeira, aqueles que anseiam por liberdade, incluo-me nessa turma, entenderão o sexo como motor fundamental da criação.
Custo a entender tanta hostilidade com algo que se pratica nu, onde cada um é o que é. A grife desse encontro é o amor. Por isso, minha homenagem a Henry Miller, o mundo do sexo é o nosso mundo.
O conteúdo autobiográfico lhe concede um de seus aspectos mais destacados: uma fogosa impressão de verdade, mas ao mesmo tempo pode embotar a percepção do leitor, desviando seu olhar do conteúdo lingüístico aos momentos da trajetória pessoal; da obra de arte ao diário repleto de emoções. O mundo do sexo merece uma leitura honesta, livre de filigranas extraliterárias, requer um exame crítico rigoroso.
Mas não se entusiasme, apressado leitor, Miller não apresenta o sexo distanciado dos problemas, das tristezas, há um preço muito alto a ser pago por todo aquele que acredita na liberdade. Mesmo assim, mesmo na dor existe luz, um relâmpago incorruptível, um luminoso desconcerto, apontando à liberdade. Um sopro do vivido e do que há por viver. Contagiante!
Alguns percebem em Miller um excesso de individualismo. E isso é inegável. Mas quem não é individualista quando o tema é amor e sexo? Será que você, surpreendente leitor, consegue o contrário? Caso olhemos como uma incorreção esse individualismo do autor, também não seremos tão cínicos e negar que ela nos fascina, porque no nosso íntimo gostaríamos muito que ela nos pertencesse.
Enfim, quase excitado leitor, é tempo de congelar as hipocrisias e bater asas em direção à liberdade. Em qualquer mundo, a toda hora.