Mitos amazônicos

Os grandes mitos propostos em “Órfãos do Eldorado”, de Milton Hatoum, são os do amor, da família e da amizade
Milton Hatoum, autor de “Órfãos do Eldorado”
01/05/2008

Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum, é uma boa novela de um bom escritor. Antes de se falar no livro, entretanto, é preciso blindar o andor. Quarto livro de um autor esporádico, mas com prêmios importantes, Órfãos…carrega uma carga indevida, que muitos insistem em lhe dar: a de comprovar que Hatoum é o melhor escritor brasileiro da atualidade.

Hatoum não é o melhor escritor brasileiro da atualidade e nem Órfãos… é seu melhor livro, título que cabe a Dois Irmãos, um ótimo romance, mas que também não é nenhuma obra-prima da literatura brasileira.

Dadas as ressalvas, vamos fazer justiça a este talentoso escritor, que dá sinais que poderá um dia estar entre os maiores do País. Hatoum encontrou um nicho seguro ao usar como cenário de suas obras a região amazônica, onde nasceu. A Amazônia interessa a muitos e é fonte riquíssima para a imaginação. Hatoum não é bem-sucedido apenas por isso, até porque outros autores, muitos que provavelmente passam despercebidos, escreveram sobre a Amazônia. Hatoum se destaca porque sua literatura é universal, com personagens, tramas e conflitos que extrapolam o berço regional.

Arminto Cordovil, protagonista e narrador de Órfãos do Eldorado, vive a velhice de forma inexorável: alimentado pela memória. Ele narra a história de sua família rica, da qual se afastou pela revolta do pai, que o culpa pela morte da mãe. Relembra também sua paixão por Dinaura, mulher mito e misteriosa. Chega ao fim solitário e visto como louco.

Aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apaga a nossa dor?

O fogo da alma de Arminto é fruto de uma vida sem fala, sem o diálogo com o pai, sem a compreensão do papel de Florita em sua vida, criada da família que tentou ser elo entre pai e filho, mas que nunca se concretizou pela ignorância de ambos. O fogo da alma é a paixão não correspondida de Dinaura, moradora de um orfanato de freiras, por quem Arminto se apaixona mas vive apenas um dia de amor. Como um mito amazônico, Dinaura desaparece e deixa Arminto transtornado para o resto da vida, principalmente ao saber que ela poderia ser sua irmã bastarda.

O amor incompleto deixa Arminto prostrado, desinteressado em administrar os navios que herda do pai. O naufrágio de um deles, o Eldorado, leva o narrador à miséria, mas ele pouco se importa, pois sua única ambição é encontrar Dinaura, que estaria vivendo na ilha de Eldorado.

Encaixe
Órfãos do Eldorado é uma novela encomendada, feita para a coleção Mitos, da editora escocesa Canongate. Num raro caso em que a encomenda não prejudica a qualidade da obra, Hatoum conseguiu encaixar de forma sutil as histórias míticas da Amazônia em sua novela, a principal delas a da Cidade Encantada, um Eldorado, lugar rico, harmônico e justo no fundo de um rio.

Mas os grandes mitos que a novela propõe são os do amor, da família e da amizade. Para Arminto, o amor é um mito que nunca acontece, mas que ele busca durante a maior parte de sua vida, como se Dinaura fosse sua cidade encantada. Sem o amor, nada mais importa para Arminto.

Antes de partir para a busca do Eldorado, Arminto vem de uma família destruída pela ignorância do pai, homem que construiu um império na área de navegação, um filantropo na sociedade local, mas incapaz de amar o próprio filho.

Enquanto busca o amor, Arminto releva a preciosidade da amizade de Florita, que o criou como a um filho e manteve por ele carinho eterno. Florita até lhe ensina o caminho do sexo, o que o faz ser expulso de casa pelo pai, que os flagra na rede: “Devia ter uns vinte anos quando Amando me levou para Manaus. Meu pai calou durante toda a viagem; só no desembarque é que disse duas frases: Vais morar na pensão Saturno. E tu sabes por quê”.

Só quando descobre Florita desamparada e miserável é que Arminto é atordoado pelo real sentimento da amizade, ao ver em estado deplorável aquela que sempre lhe foi companheira e fiel. Ele também percebe o quanto Estiliano, seu tutor após a morte de Amando, era amigo de seu pai, a quem sempre defendeu, mesmo sabendo dos defeitos e das atitudes suspeitas na política e nos negócios.

Estiliano carrega também outro mito, o da cultura. Homem acostumado com a Amazônia, com as pessoas simples, com os negócios da navegação, é também um apreciador de poesia grega e francesa, cujos conteúdos tenta transpor para a vida real.

É com esse conjunto de mitos, conflitos e personagens que Hatoum construiu em Órfãos do Eldorado uma novela agradável, com fôlego para ser um romance. Na verdade, esse é o sentimento que fica ao término de Órfãos…, que o material era bom demais para uma narrativa tão curta. Fica a vontade de saber mais sobre Amando, sobre a mãe de Arminto, sobre Dinaura, sobre Estiliano, que passam pela novela como se fossem apenas mitos.

Órfãos do Eldorado é um bom livro de um bom autor. O mito de melhor escritor brasileiro, no entanto, cabe sempre na piada de Cristovão Tezza, que diz não ser nem o melhor escritor de seu bairro, onde também mora Dalton Trevisan.

Órfãos do Eldorado
Milton Hatoum
Companhia das Letras
112 págs.
Milton Hatoum
Nasceu em Manaus, em 1952. Ensinou literatura na Universidade do Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autor de Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do norte (2005).
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho