Quando não se trata de um testemunho, parece que são dois os principais caminhos trilhados para falar de pobreza e das pessoas que convivem ou sofrem com ela: desprezo (às vezes tingido de certo tom “analítico”) ou compaixão, como quem sempre quer expressar a pena que sente dessa gente tão coitada. Vivendo em uma sociedade tão estratificada como a brasileira, esta categoria (“os pobres”) é quase uma das bases da nossa existência mental, e a literatura não tinha como deixar de registrar isto: das aparências esporádicas (geralmente no pano de fundo) sob o registro da benevolência senhorial durante o romantismo ao fascínio científico (na verdade pseudo-científico) do naturalismo, até as denúncias esquerdistas/nacionalistas do regionalismo.
Com a exceção marcante do maravilhamento brilhante e brilhoso de Guimarães Rosa, que cai (ou ascende) para o exótico inventivo, pode-se dizer que parte significativa da produção literária brasileira tem tratado a pobreza de tal forma que não é necessário muito esforço para encaixá-la dentro desta dicotomia do desprezo (disfarçado) ou da pena. No campo do contemporâneo, parece que a forma mais freqüente de se evitar as armadilhas destas duas simplificações é a de simplesmente ignorar a existência de classes que não a classe média, a não ser para algum pano de fundo ou para colocar um personagem principal como vítima de algum crime.
Desta maneira, Sonhos de trem, de Denis Johnson, seria um livro impossível para a literatura brasileira, e sua leitura sai muito recomendada não apenas pelas qualidades mais intrínsecas do texto, como também pelo choque de exótico que há de provocar no leitor brasileiro (algo bastante raro em se tratando de literatura norte-americana, considerando a anglofilia de nosso mundo editorial).
Ameaça silenciosa
A ambientação desta curta novela é o noroeste dos Estados Unidos no início do século 20, a expansão ferroviária construindo um mundo particular que vai se desfazendo por conta de seu próprio êxito. Temos a narrativa da vida de Robert Grainier, homem ao mesmo tempo comum e incomum, que vive esta expansão e seu isolamento, dele mesmo e do desaparecimento de seu mundo, tudo em um registro que é completamente estranho a coitadismos ou ojeriza. É uma narração que constrói (ou reconstrói) um mundo inteiro de precariedade material se abstendo desses julgamentos consagrados (e cansados), como quem aponta para o mundo e diz somente: isto é.
Ou, melhor dizendo, foi. Além do registro desta pobreza, outro elemento marcante da narrativa é se tratar de um passado relativamente distante, uns últimos pedaços de oeste selvagem, uma expansão que se aprimora e se aperfeiçoa (a rota ferroviária a ser construída pelo protagonista no início é uma de atalho, servindo apenas para melhorar a conexão entre duas cidades). Um mundo que vai perdendo aos poucos seu aspecto de obscuro. A narrativa é de uma vida difícil, longínqua, um registro despido de nostalgia simples mas ciente de que a experiência humana é feita tanto de nossas capacidades quanto de nossas incapacidades. E, assim sendo, o tipo de experiência de vida ali narrada, marcada por aquele tipo de precariedade, não é mais possível.
A natureza desbravada se apresenta aqui freqüentemente como ameaça silenciosa, aparentemente inerte, sua imensidão sempre reforçando o caráter minúsculo e fraquíssimo do homem. Não há acolhimento. Não há expulsão. Há, contraditoriamente, bonança e morte, mistério e indiferença. E não há personagens maravilhados diante desta paisagem, que é completamente naturalizada. Um homem morrer sozinho no meio da floresta com a perna infecta, um índio beber demais ao experimentar álcool pela primeira vez e ter seus restos espalhados por centenas de metros ao dormir em cima de um trilho de trem ou um sujeito ajudar em um linchamento aparentemente só porque estava ali do lado sem nada para fazer — em momento algum toda esta brutalidade vem com o descritivo (nem mesmo implícito) de selvageria, de absurdo, de denúncia ou repreensão. Há, na verdade, certo lirismo esquisito, simples e belíssimo atravessando toda esta brutalidade, a natural e a humana, em tudo o que ela tem de casual e impressionante. Um autor mais conhecido que se parece com isto é Cormac McCarthy, mas aqui não vemos seu tom bíblico/apocalíptico ou suas figuras extremadas: tudo aparece mais naturalizado, e se não estivéssemos falando de brutalidade, até seria possível descrever sua iteração aqui como “mais amena”.
Nova tônica
Talvez esta diferença de possibilidades narrativas referentes à pobreza seja oriunda das diferenças da própria sociedade estadunidense em relação à brasileira. Os mitos do sonho americano (de progresso material por meio do trabalho árduo e diligente) e do self-made man (independência total do indivíduo) fazem com que se enxergue pessoas que são pobres de forma menos separada das outras classes sociais — como um estado em que a pessoa se encontra naquele momento (geralmente entendido por ser algo de culpa própria), e não alguém que tem um tipo de vida e visão de mundo completamente diferentes, como que de outra espécie.
Robert Grainier, assim sendo, torna-se uma figura exótica mais pela sua subjetividade peculiar, que tende ao isolamento extremo, e sua realidade completamente desaparecida, apagada pelo próprio progresso que perseguiu, do que pela sua precariedade material (apesar de ter sido capaz de adquirir uma carroça com cavalos, é por meio de muito trabalho físico e desgastante que consegue comprar esses bens).
A mim, acostumado com a tônica sociológica presente em tantos esforços intelectuais brasileiros historicamente consagrados, até mesmo nos de pretensão literária (em que quase sempre se pode escutar certo tom de voz calmo de narrador de documentário), Sonhos de trem acabou sendo enriquecedor, ultrapassando o prazer do momento da leitura. Para além do texto bem escrito, de certa beleza bem afiada, com um lirismo ao mesmo tempo simples e difícil e capacidade de recriação de um mundo bruto e sumido, a leitura acabou servindo para lembrar das possibilidades que hoje em dia parecem pouco exploradas na produção literária.
Nota sobre a tradução: ainda que seja evidente um trabalho de linguagem por parte do autor, a tônica da simplicidade facilita a transposição para outro idioma, se tratando então de um livro em que não se perde muito ao ser lido em tradução competente, como é o caso da edição brasileira. O tradutor freqüentemente optou pela clareza, deixando o texto ligeiramente menos conciso do que o original: o que no inglês era apenas “Idaho Panhandle”, lugar onde a história é ambientada, virou “estreita faixa de terra que forma o cabo da frigideira do mapa de Idaho”, e todas as outras menções ao Panhandle voltam a mencionar mapa, faixa de terra, etc. Nada que possa ser qualificado como “erro”, mas uma fórmula menor ou a confiança no leitor de que este lembraria o que é o “Panhandle” teria combinado mais com o espírito do texto.