Pedrinho é o personagem nuclear de Meu nome é Laura, mas não é com ele que o autor Alex Andrade começa sua história. Segmentado em três partes polifônicas, o romance é primeiramente conduzido por Pedro, um homem em busca de um filho perdido em várias distâncias. Do portão da escola, o menino, de nove anos, foge do bullying sofrido pelos coleguinhas por não gostar de futebol, “ser esquisito” e falar “igual a uma mulherzinha”. O pai tenta, em vão, contê-lo num abraço, decifrar, do olhar desmoronado, uma forma de ajuda, mas os ataques que sofre da porta para fora são equivalentes, ou menores, aos acessos de hostilidade que Pedrinho experimenta dentro de casa.
Sua mãe Heloísa, forjada por uma família conservadora e religiosa, condena o jeito acolhedor do marido, sustentando que o filho deve reagir com virilidade, “enfiando a porrada em todos”, para mostrar “que é homem de verdade”. Uma conduta que contraiu dos pais feito um soco que vibra no tempo, reverberando agora no neto em reprimendas do calibre de “mostre a bravura que só os machos têm” ou “honre o que você tem entre as pernas”. Pedro tenta defender o filho, mas ele próprio é assombrado por traumas do passado, uma violência geracional que lhe tornou um adulto inseguro e incapaz de ser um esteio de proteção. Vive sendo desmoralizado pelos sogros, à deriva num relacionamento que tropeçou para um casamento, depois para uma gravidez. A paternidade se fez mais um processo de se afastar da própria infância do que empreender um futuro estável, atracado a um oscilante sentido de um mundo livre de responsabilidades e insaciáveis obrigações.
Então, durante a gestação, o casal sofre um acidente de carro, e a vida dá uma chacoalhada. O efeito dramático de perder o filho se iguala ao afã pelo nascimento, e a trama revela seu primeiro ponto de tensão bem como um artifício narrativo que vai além do testemunho dos fatos. Andrade faz uma referência velada, habilidosamente sutil, ao pensamento de que a homossexualidade é um acidente, um desvio, uma deformidade humana. Mais adiante os avós chegarão a sugerir que o melhor era o neto ter sido abortado. Uma combinação de intolerância e desprezo validada por Heloísa, cuja maternidade tóxica o autor se apodera para escapar dos clichês e ampliar a discussão sobre as raízes do preconceito e da homofobia, para além de suas expositivas e imediatas consequências.
Inverter o papel do opressor, normalmente atribuído ao homem, ao patriarca, estabelece uma visão mais infusa do impacto da rejeição, não pela ruptura dos laços, mas pelo buraco no espelho. Na segunda parte, na qual Pedrinho toma a dianteira no relato, é penoso escutar seu testemunho ante as reações de repulsa da mãe, as palavras desferidas contra ele nas vezes em que foi flagrado usando batom e sapatos altos.
Você vai ser castigado por Deus, você tem ideia do que é isso?! Isso é coisa do demônio! Essa coisa só desgraça as famílias, você ainda tem a chance de não entrar nisso porque ainda é cedo demais para pensar essas imundícies.
No entanto, quando o casamento dos pais se torna insustentável por conta das diferentes formas de reconhecer o filho, o golpe fatal vem num telefonema entre a mãe e a avó que ele captura por detrás da porta.
O Pedrinho, mamãe, ele é veado! Sim, eu tenho certeza! Por Deus, não estou cometendo nenhuma injustiça, mas eu tenho faro de mãe (…) Esse garoto é uma piada para os amigos da escola, eu já falei com o Pedro, mas esse imbecil não reage, parece que não enxerga um palmo à sua frente! Não quero ter um filho gay. Não quero!
Extirpado do colo materno, o então pré-adolescente encontra numa colega mais descolada o suporte afetivo de uma figura feminina, na qual, de certo modo, se refletir. Nana é a primeira a notar seus desenhos, sua sensibilidade, e com ela Pedrinho se abre, inicia, de mãos dadas, seu processo de transição de gênero. Pedro e Heloísa se afastam de vez, e ele naturalmente opta por conviver com o pai. Mesmo assim, a mãe continua a usar de terrores psicológicos, agora também como uma arma para (in)diretamente ferir o ex-companheiro. Ela atribui a ele toda a culpa pela orientação sexual do filho. São episódios caóticos, de censuras e condenações, que se alternam a momentos delicados em que o personagem se descobre, entende seu corpo, cria uma identidade que deixa de ser uma voz interna para se tornar uma personificação. Andrade é um escritor experiente, capaz de regular contundência e leveza num texto cativante, indo do registro realista, incômodo, de Camila Sosa Villada ao estilo intimista, visceral, de Caio Fernando Abreu.
Eu sou um problema?
Esse aspecto emotivo, circunspecto, permeia a última parte em que Pedrinho, aos 23 anos, transicionado em Laura, faz faculdade de moda ao mesmo tempo que se vale da prostituição para sobreviver. O fluxo mental ganha predominância, guiado por uma narradora que olha para a vida de modo a elaborar cogitações sobre si mesma e dar espaço a pensamentos regressivos nos quais, na eterna batalha entre o pai e a mãe, não busca mocinho ou bandido, mas compreensão das motivações e das maneiras de cada um. Pedro, envelhecido, num novo relacionamento, ainda se atrapalha com a transexualidade, mas protagoniza momentos tocantes, em que ternamente tenta abordar assuntos que não sejam por demais intrusivos, que deixem a filha segura e confortável. Laura, percebe que, a seu modo, sempre residiu no pai um amor incondicional. Nas aproximações cuidadosas, nos escudos em casa, na preocupação com as pressões do mundo. E quando, por exemplo, recorreu ao didatismo para explicar ao menino assustado o motivo de o chamarem de veado na escola, ele elabora respostas lúdicas para o filho — e também para o leitor.
Paralelo a sua extensa carreira de romances e livros de contos, Andrade é um reconhecido autor de livros infantojuvenis. Em A menina e a sapatilha e o menino e a chuteira, a leitura intermediada entre adultos e crianças propõe um diálogo sobre a desmistificação dos padrões normativos de masculinidade e feminilidade, colocando por terra regras e julgamentos que definem que cada gênero deve se adequar e cumprir convenções impostas pela sociedade. Em sua trajetória perene pela esfera mais íntima do personagem, a trama se concatena a um pedagogismo para efeito de denunciar o resultado de uma abordagem conservadora, humilhante e cruel na psicologia de uma criança. Depois de ouvir o telefonema entre a mãe e a avó, o menino pergunta ao pai se ele é um problema, no que Pedro busca argumentos para convencê-lo que não, contudo traduz, dos olhos do filho, que nenhuma palavra estará à altura do pedido de “faça algo por mim”, do nó na garganta de um menino frágil que quer apenas ser aceito.
Meu nome é Laura é um manifesto, sem a preocupação ostensiva de sê-lo, um livro consciente do poder de seus comentários sociais, das bandeiras que ergue, das tentações políticas de sua temática, mas que se preocupa, acima de tudo, com a narrativa, em construir e dar voz a personagens que reproduzam, da tessitura entre observação e imaginação, uma experiência ficcional que alcance uma dimensão geral, simbólica e humana. Isso é raro. A literatura contemporânea brasileira está cheia de autores que encontram um tema polêmico e escrevem para potencializá-lo, causar barulho e impacto. Poucos são os que pegam esses mesmos temas e os internalizam, sintonizam uma frequência de dor sincera, de um discurso que fale a verdade.