(Possível entrevista tardia sobre o livro A arte de conversar, que organizei para a Coleção Clássicos, da Martins Fontes, em 2001.)
• No que consistia a “arte da conversação”?
Não há apenas uma “arte da conversação”. Chamam-se assim os vários escritos e preceptivas a propósito de formas polidas e civis de conversa, sobretudo nas cidades-estado renascentistas do século 16 e nas monarquias nacionais do antigo regime, nos séculos 17 e 18 principalmente. Opera basicamente como um soft power diplomático entre as diferentes cortes e os seus cortesãos.
• Quais as qualidades de um interlocutor agradável, capaz de manter uma conversa estimulante e polida, nos parâmetros renascentistas e pós-renascentistas?
Como não há apenas uma arte da conversação, há também diversas qualidades exigidas em tempos e lugares distintos. Mas destacaria, como exigências mais persistentes nos vários escritos que estudei sobre o assunto, as seguintes qualidades: o senso de medida, que evita os termos excessivos e insuficientes; a sprezzatura, isto é, de parecer natural em tudo o que se faz, mesmo que o aprendizado tenha demandado esforço e estudo; a graciosidade dos gestos e maneiras; o senso de conveniência, que ajusta ações e palavras aos decoros de ocasião, pessoa e lugar; e, enfim, acima de tudo, o prazer do convívio e da companhia.
• Até quando essas “qualidades” permaneceram válidas como exemplo de civilidade e humanismo?
Falando genericamente, essas qualidades ainda não perderam interesse, a menos que disséssemos que o prazer advindo das conversas e da companhia das pessoas já não é possível, pois esse é o escopo principal de todas as preceptivas. Por outro lado, é claro que uma vida pautada exclusivamente por interesses dos negócios, e, portanto, por encontros com finalidades imediatistas e instrumentais, não é o melhor ambiente para o emprego de uma “arte” da conversação, que supõe sempre o esforço para ser agradável em companhia e o cultivo do próprio esprit, como se diz nas artes francesas; wit, nas inglesas; engenho, agudeza ou argúcia, termos correlatos na Itália e na Península Ibérica. Enfim, a forma mais estimada de conversa muda com o tempo, o que não deve mudar é o prazer de conversar.
• A que atribuiria a dificuldade que a maioria dos grupos sociais contemporâneos tem em manter um diálogo, uma conversação? Com a tal polarização, chegamos ao fim da era da conversa letrada e até da nossa boa conversa fiada?
Não sei se essas categorias antigas serviriam para falar do contemporâneo, mas, de novo, quando já não há nenhum valor atribuído ao cultivo das faculdades intelectuais sem uso imediato, pragmático, há sempre diminuição do interesse pela conversa. As pessoas, nesse caso, se contentam com a troca de informações ou a instrução a ser dada ou recebida.
• Ainda insistindo em falar do contemporâneo, por que as gerações atuais parecem tão desinteressadas pela comunicação verbal e cada vez mais restritas ao audiovisual?
Toda conversa se sustenta na disposição para a companhia e para a vida civil. Num espaço urbano dominado pela urgência dos horários, pela desconfiança e violência da desigualdade, e ainda pelo sectarismo ideológico, é difícil imaginar que os jovens, ou quaisquer outros, possam encarecer o diálogo. Eles apenas reagem a circunstâncias altamente desfavoráveis às práticas de civilidade. Depois, claro, houve também o surgimento e popularização das redes ditas “sociais”, um ambiente no qual você só fala com você mesmo, em versão excitada, ampliada e paranoica, dirigida pelos algoritmos, e não para um interlocutor particular. O que não participa do eu-expandido é inimigo.
• O que quer que chame de “boa conversa” ainda tem poder como arma de sedução, de persuasão? E como se poderia exercitar essa arte no contexto da nossa sociedade atual?
Enquanto os valores civis e urbanos de cultivo intelectual tiverem interesse, é de supor que a conversa permaneça um lugar persuasivo importante. Já no contexto do neoliberalismo — o que inclui o seu reflexo na patrulha moralista de direita e de esquerda —, a conversa agradável e espirituosa parece extemporânea, senão irreal. Mas não acho que isso seja impeditivo de toda forma de diálogo. Ele pode ser praticado em toda situação em que a diversidade de posições não se decida à força. Enquanto conversamos, não trocamos socos.
• O que continua sendo válido, em termos de comportamento, sobre aquilo que deve ser dito ou calado, em reuniões sociais?
Algumas das regras de ouro das artes conversacionais permanecem interessantes em toda conversa, como a atenção para as diferenças de pessoa, tempo e lugar, de modo a não ferir suscetibilidades e decoros. Mas as mudanças são grandes demais: no salão do século 17, por exemplo, tratava-se de uma reunião de poucos bem-nascidos, educados de forma semelhante. A civilidade numa sociedade democrática supõe diversidade e flexibilidade de juízo muito maiores. Ou seja, é preciso ativar formas próprias, contemporâneas, de convívio civil para extrair prazer da conversa. Gostar de conversar, eis tudo, mas isso significa, em primeiro lugar, ter gosto pela discordância, até pela provocação. Discordância não é recusa, mas acréscimo ao diálogo.
• Como explicar, no cenário das sociedades contemporâneas, a proliferação de situações que limitam, quando não banem, ou impossibilitam, qualquer tentativa de comunicação verbal do grupo? (Exemplo: o uso intensivo dos celulares; o volume de aparelhos eletrônicos nas alturas; a dispersão da atenção por meio de imagens e sons invariavelmente presentes, seja no celular, na TV ou por conta de outras interferências). Não há nada mais comum do que ver três ou quatro pessoas que saem juntas e cada uma delas está ligada apenas no próprio celular.
A tecnologia não deve ser encarada isoladamente. Ela é má sobretudo quando empregada em meio hostil ao convívio, como é o da competição capitalista desorganizada e capitaneada por autocratas aloprados, na qual a exclusão é vista como um trunfo da liberdade ou como superioridade racial. Nesse meio, a tecnologia tende a fomentar situações de isolamento individual, ou de encerramento da pessoa em grupos restritos e homogêneos, hostis a qualquer diálogo. O que não é como eu, é lixo como ele.
• E o brasileiro, reconhecido como povo amigável, que gosta de conversar, como estaríamos equacionando essa fala social? A conversa de comadre, a conversa de botequim, a conversa de simplesmente “jogar-fora”, casual, sem pretensão, onde foi parar tudo isso?
Não vamos nos iludir muito com essa cordialidade brasileira. Ela é ideológica e postula uma mitologia que valoriza vícios sociais históricos. É o mesmo com a chamada “malandragem” ou até a “antropofagia”. No fundo, são formas de naturalizar contradições graves. Mas vou responder diretamente à pergunta: conversa, em contexto democrático, supõe qualidade da educação pública básica, o que é o mesmo que dizer incremento da formação intelectual desde a infância, e esforço para diminuição das desigualdades. Fora daí, a conversa é só papo furado.