A cena de abertura escancara a violência: há o homem furioso, a mulher desesperada, os papéis esparramados pelo chão e a tensão crescente. Os dois personagens são casados há 20 anos, dividem o mesmo teto e têm uma filha juntos. Nada disso, porém, impede o marido de desferir golpes, proferir ofensas e se divertir enquanto destrói cadernos com pensamentos íntimos, exercícios de escrita e textos literários de autoria da esposa.
Tudo é narrado de forma explícita. Socos, chutes, risos sarcásticos, xingamentos e o movimento do pau mole que tenta penetrar à força a mulher atirada ao chão. Tudo é explícito, mas nada é gratuito. O início de Cabra que lambe sal, romance de Letícia Bassit, não poderia ser mais apropriado. Coloca leitores e leitoras como testemunhas de uma cena brutal, repulsiva e, ainda assim, tão comum à realidade brasileira.
Desde o início da adolescência, a personagem-narradora compreende bem essa dinâmica. Também sabe que a violência psicológica, física e verbal pode partir dos homens que vão ao teatro, choram em filmes do Almodóvar, votam na esquerda e debatem literatura. Aprendeu na prática quando o parceiro que “era só sorriso e carícias” passou a criticar suas roupas curtas e a ridicularizar seu trabalho como atriz e escritora.
Ele fazia ainda mais. Deixava a esposa sozinha com frequência, olhava para todas as bundas que cruzavam seu caminho e destruía a autoestima da mulher que jurava amar. O apreço pela veia artística da esposa deu espaço a piadas degradantes, ao passo que a linguagem repleta de amor se tornou pura rispidez.
Após a violenta cena de abertura, a personagem-narradora percebe que não aguenta mais um dia sequer ao lado daquele homem. Decide partir de uma vez por todas e reconquistar suas metáforas e sua poesia. Quer reencontrar uma antiga versão de si, acreditar novamente em seu potencial e, quem sabe, recomeçar seus projetos literários.
Mergulho no passado
Nesse processo, revisita a infância, repensa sua relação com os pais e mergulha em cenas traumáticas vivenciadas ao longo das décadas, a começar pelo estupro que sofreu aos 14 anos. Também reflete sobre a ausência da filha — uma estudante de medicina que vive em outro país — e recorda os primeiros encontros com o marido.
Aspectos ligados à sexualidade também ganham espaço no fluxo de consciência da personagem, com pensamentos que passeiam livremente entre fetiches, experiências, preferências e descobertas — inclusive a de que os homens sempre tentaram moldá-la para que ela correspondesse aos seus desejos na cama (e fora dela).
A maternidade também passa a ser compreendida a partir de novas perspectivas. A protagonista se dá conta de que esteve sozinha em situações em que o amparo ou ao menos a empatia seriam muito bem-vindos. Nota o silêncio, a ruptura e o peso que sempre carregou sozinha. Identifica a superproteção dos pais, percebe-se amedrontada. Não quer isso para a vida. Nunca mais.
As reflexões de alguém cuja existência é marcada por imposições e violências já oferecem um rico material para a composição de personagem e até mesmo para a construção de um bom enredo. Entretanto, o romance de Letícia Bassit vai além. Isso porque enquanto a protagonista se depara com anseios e verdades difíceis de aceitar, ela se transforma em uma cabra.
Metamorfose arriscada
A aposta da autora é ousada. Poderia a transformação da mulher em cabra (seja de forma literal ou metafórica) colocar tudo a perder em um romance que até então caminhava muito bem dentro de um universo (infelizmente) bastante realista? Poderia, claro que poderia. Mas não é o caso aqui. Aliás, as cenas que envolvem a metamorfose estão entre as mais complexas e poéticas do romance.
A protagonista se modifica lentamente. Seus pensamentos estão mais acelerados que seu corpo. Por isso, não se espanta ao ganhar patas, pelos e chifres. Também não demonstra resistência aos seus instintos mais primitivos. Arrisca a própria vida para subir uma montanha e lamber sal. Talvez porque aprendeu com o pai que sal é amor, enquanto açúcar é paixão. Ou talvez, porque depois de uma vida inteira de submissão, agora quer flertar com o perigo, olhar para abismos, enxergar o exterior para reorganizar o que dói por dentro.
E nesse ponto, mulher e cabra se tornam uma coisa só. A protagonista recupera a subjetividade, as metáforas e a vontade de caminhar por lugares íngremes sem proteção alguma.
Enfim, torna-se livre, inclusive para alimentar sua raiva contra seus abusadores. Afinal, embora a presença da cabra sugira uma aproximação com a fábula, este não é um livro moralista (ainda bem!) nem uma história previsível.
Linguagem híbrida
Cabra que lambe sal não é apenas uma narrativa envolvente ou uma denúncia urgente a respeito de algo que acontece em todas as esferas da sociedade. É, também, um exercício de linguagem dos mais valiosos.
Letícia Bassit demonstra rara habilidade de concisão e explora muito bem diversos gêneros textuais, ao apresentar um romance híbrido, com poesias e até letras de músicas (eu mesmo as cantei mentalmente enquanto lia o livro, num ritmo que parecia verossímil para mim).
Também há de se destacar a beleza de diversas frases e a preferência da autora por sentenças curtas — ideais para transmitir a leitores e leitoras algumas ideias centrais da obra, como a angústia, o desamparo, a submissão e a claustrofobia.
Embora curto e bem escrito, Cabra que lambe sal não é uma leitura fácil. O romance, acertadamente, não suaviza as cenas de violência e ainda alerta para uma realidade que não está apenas nos jornais, mas também em nossas bolhas, universidades e condomínios.