“Toda criatividade é erótica”

Cristhiano Aguiar: “A obrigação da minha literatura é atravessada pelo exercício de uma consciência crítica sobre o Eu e sobre o mundo”
Cristhiano Aguiar Foto: Renato Parada
01/03/2025

Escritor que “se alimenta” de ficção, Cristhiano Aguiar descobriu cedo que seria “alguém que escreve”, quando aos dez anos teve um conto publicado no Jornal da Paraíba, em seu Estado natal.

Professor do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, venceu o prêmio da Biblioteca Nacional, na categoria contos, pelo seu livro mais recente, Gótico nordestino, publicado em 2022.

O livro foi elogiado por misturar elementos góticos e folclóricos, buscando referências na cultura pop das séries, do cinema e dos quadrinhos.

Para ele, o melhor da criação está em “ver imagens nascendo, mergulhar no mundo que eu imaginei, sentir a vida íntima das minhas personagens como se elas fossem confissões feitas por meus melhores amigos e amigas”.

A seguir o escritor paraibano fala mais sobre outras particularidades de seu processo criativo.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Aos dez anos de idade. Eu sempre brinco dizendo que tenho duas certidões de nascimento. Uma, a do nascimento propriamente dito, a outra, a do escritor. No caso da segunda, foi assim: eu tinha dez anos quando tive um conto meu publicado no Jornal da Paraíba e foi ali que pensei: eu sou alguém que escreve.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Eu não tenho manias literárias no sentido de, sei lá, ter um ritual mágico ou excêntrico de escrita. Até porque eu já sou esquisito. No caso de obsessões literárias, jogo aqui algumas: família, pessoas ruivas, pessoas com sardas, vampiros, estradas, trocas de olhares, entardeceres, violência, robôs de baixa tecnologia.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Ficção. Não adianta, preciso quase todo dia me alimentar de ficção. E ela precisa ser algo a ser consumido por mim através do ato da leitura. Pode ser conto, romance, história em quadrinhos, teatro. Não importa o gênero.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Sem dúvidas eu recomendaria para toda a cúpula do governo o livro Políticas do encanto: extrema direita e fantasias da conspiração, do meu colega Paolo Demuru. A esquerda precisa reaprender o poder do desejo e da imaginação.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Não ter um prazo para entregar o texto. Por outro lado, pondero agora, muitas vezes se não tiver prazo, eu não termino o texto. Para além disso, preciso de um pouco de silêncio. Não tenho muitos critérios para escrever para além do desespero e da falta.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Eu na minha cama, numa boa, com o abajur ligado ao lado, quem sabe comendo um chocolatinho. E cultivando uma espécie de inocência interior na hora de mergulhar nas palavras. Ou eu numa rede, numa varanda ou na beira da praia, numa boa, quem sabe com um coco ao lado ou tomando uma caipirinha dentro de um abacaxi.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
No caso da escrita de ficção, consiste em escrever as cenas que me propus para aquela sessão de escrita. Ou, no processo de revisão/reescritura, dar conta da quantidade de páginas revisadas com um mínimo de qualidade.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Criar, criar. Ver imagens nascendo, mergulhar no mundo que eu imaginei, sentir a vida íntima das minhas personagens como se elas fossem confissões feitas por meus melhores amigos e amigas. Toda criatividade é erótica.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
“O dia seguinte”: depois da empolgação do ato criativo, relembrar ou retomar o texto num estado depressivo de descrédito com seu próprio processo literário. Além disso, perder o prazer da entrega à literatura por tê-la substituído pelo prazer de olhar a si mesmo no espelho.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O que mais me incomoda é não debatermos com mais frequência, quando necessário, as contradições estruturais deste meio/mercado.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Sem dúvidas, Julia Dantas. É minha romancista contemporânea brasileira favorita nesse momento. E será ainda mais consagrada do que já é.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Livro imprescindível: Odisseia. A alegria, o tormento, a loucura e a sede de contar histórias nasceu ali. Livro descartável: qualquer livro de colorir, exceto se tiver surubas e/ou zumbis.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Não há defeito em absoluto. Esta pergunta tem estado bastante na minha cabeça. Às vezes penso de um livro: “como essa mediocridade triunfa?!”, para logo depois encontrar um leitor cuja leitura do mesmo livro fez um sentido em sua vida. Dito isso, creio que didatismo, somado a boas intenções políticas, tem prejudicado a literatura atual.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não consigo conceber nenhum assunto que estaria proibido do meu trabalho.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
É muito comum que eu tenha ideias tomando banho. Também já vieram ideias no meio de alguma aula que eu ministrava, durante o sexo ou durante um beijo, ou a partir de frases de algo que li. Uma pessoa com quem me relacionei uma vez me disse: “Você nunca está totalmente aqui, não é Cris?”, isso no sentido de que parte da minha atenção sempre se volta a capturar, do lugar onde eu estiver, uma história a ser contada.

• Quando a inspiração não vem…
Nesse caso, é preciso aprender a desistir. É preciso se render ao silêncio e aguardar que a vida convide a literatura mais uma vez.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Eu adoraria mais um café com Elvira Vigna. Lembro do último encontro que tive com ela, tantos anos atrás, numa Kopenhagen na Vila Mariana, lembro de falarmos da nossa paixão por Camões e de ela me dar bronca “pô, você precisa ler mais mulheres, cara”. Sinto que ela teria muito a dizer sobre o mundo de hoje e sobre a literatura atual.

• O que é um bom leitor?
Alguém que lê com a generosidade de uma pessoa apaixonada e com a paranoia de um bom detetive.

• O que te dá medo?
Eu tenho medo de enlouquecer. Eu tenho medo de perder pessoas que amo. Tenho muita dificuldade com o desapego. Tenho medo do abandono. Tenho medo de perder a coragem que é exigida em toda carreira artística e intelectual.

• O que te faz feliz?
Ler e escrever. Também me agrada ficar de mãos dadas.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida me assombra em cada parágrafo que escrevo. No entanto, eu finalmente aceitei que há valor em algo do que tenho criado ao longo de mais de 15 anos de carreira. Este valor eu enxergo projetado no prazer dos meus leitores. Minha certeza é: tenho a benção de ter leitores.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
A minha maior preocupação consiste em encontrar a melhor expressão possível para o mundo que eu estiver criando naquele texto de ficção. Por “mundo”, quero dizer tanto dimensões da linguagem, quanto de verossimilhança, desenvolvimento de enredo e mergulho no mundo psicológico das minhas personagens (que sofrem na minha mão, pobrezinhas).

• A literatura tem alguma obrigação?
Esta pergunta não é tão simples, porque ela implica em entender que toda arte possui um horizonte de negociação social. Há, portanto, um implícito político na literatura. Para mim, a obrigação da minha literatura é atravessada pelo exercício de uma consciência crítica sobre o Eu e sobre o mundo.

• Qual o limite da ficção?
É preciso reafirmar a ideia de que uma ficção não deve ter limites. No entanto, seria ingênuo pensar que um discurso, ao passar a circular na sociedade, não tenha que lidar com expectativas e conflitos de valores. A literatura merece a liberdade absoluta, mas nenhuma linguagem é absoluta ao se tornar pública.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Fico em dúvida entre mostrar um celular ou um Lulu da Pomerânia.

• O que você espera da eternidade?
Esta pergunta é completamente obscena e deveria ser considerada ilegal. Não há eternidade, a não ser na literatura fantástica.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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