Apesar do título aparentemente niilista, Colecionador de nada, de Sandro Ornellas, abre conversa contundente com a tradição lírica moderna de nossa poesia. No que toca o existencialismo propriamente dito ressaltem-se esses versos do poema de abertura:
Mas místico mesmo é viver com o medo
De que o outro torne visível em seu rosto
O que sob o nosso existe em segredo
Reza a lenda que dentre as inúmeras pinturas que retrataram o rosto de Mário de Andrade, a que mais o teria intrigado teria sido a de Flávio de Carvalho. Um retrato evidentemente expressionista em que podemos ver um Mário de Andrade decaído (sem julgamento de ânimo, mas sim de forma). O homem moderno por excelência, de vida pública admirável, atuante como poucos em diferentes frentes da vida cultural brasileira, surge um tanto quanto deformado, comparado, por exemplo, ao retrato que dele também fez Lasar Segall.
O suposto descontentamento do renomado modernista autor de Macunaíma talvez tenha se dado pelo fato de o pintor, Flávio de Carvalho, ter capturado no poeta justamente aquilo que fazemos questão de deixar submerso em nós. Descortinar o que nos faz medonhos, eis um dos importantes traços da estética/filosofia expressionista.
Pois bem, a abertura do livro de Ornellas nos traz tematizada essa estética. Mas será que o sujeito desse livro contemporâneo quer de fato ocultar sob a face suas deformações? Arrisco dizer que não.
Um dos grandes espólios que devemos ao século 20, no que toca a criação artística e as tentativas de teorizações sobre ela, é o de que a arte (como experiência) não forma, antes, deforma o olhar. Mais do que formar um gosto, as experiências do referido século pareceram nos chamar para uma menor conformidade do gosto; logo, uma possível des-formatação do gosto e do olho. O século 20 inventou isso? Não, mas parece ter praticado com maior consciência.
Por que então arrisco dizer que o sujeito no livro de Ornellas não tenta esconder a face? Pelo simples fato de vermos nas entrelinhas dos versos (e algumas vezes nas próprias linhas) a presença ainda atuante dos autores que são caros a esse poeta. Podemos dizer, não há no livro o menor esforço em ocultar as faces daqueles que melhor deformaram o gosto deste poeta.
O próprio Mario de Andrade, mencionado acima, aparece feito musa (no sentido mais grego do que romântico) já no terceiro poema:
ao abrigo das ruas
caímos nas garras
do palhaço
que ri
às portas do caos
(apareça & se perca)
A opção pelo & e não pelo vernáculo “e” chama a atenção do leitor para o campo semântico do comércio. Daí uma criativa associação com o famoso poema Rua de São Bento, presente em Paulicéia desvairada. Em ambos percebemos que o verbo perder-se remete a uma asfixia pelo dinheiro e pelo poder. O desvario figura explicitamente no texto, “a anestesia vicia/ o desvario/ se avizinha/ do fundo mais sujo”.
Mas engana-se o leitor que pressente emulação pura e simples do poeta moderno. Há, no mesmo poema, uma elisão da asfixia das ruas, mobilizada pelo capital e pelo poder, com o tédio de Drummond do Poema de sete faces:
mascaramos violência
que coage com emprego
chefe salário &
nos assalta
com desemprego desamparo
desespero
Apropriação direta
A garantia do emprego não evita o desespero, pelo contrário, o atrai, mostrando que na dinâmica da “vida besta” o fato de estarmos empregados não afasta jamais o medo de não estarmos. Se aqui a menção ao poeta mineiro é sutil, linhas abaixo, ainda no mesmo poema, vemos a apropriação direta dessa importante face a Ornellas:
rasgamos o luxo
& apagamos a luz
das vozes que vendem
poemas nas ruas
[…]
marcados
pela crueldade
de quem abriu um frasco
& queimou seu perfume
com nojo
Além da menção ao poema José, de Drummond, percebemos nesses versos o fino ajuste do tom do poema de Ornellas com a Ode ao burguês, outro clássico de Paulicéia. Calar a voz de quem vende poemas na rua onde a lei é o comércio é uma das principais marcas que ligam ainda o livro de Mário de Andrade aos livros que vimos lendo e escrevendo hoje em dia.
Seguindo, as faces nem tão ocultas assim que vão aparecendo em Colecionador de nada não nos remetem apenas à lírica moderna da nossa primeira metade de século 20, remetem também ao nosso mais bem estabelecido contemporâneo. Numa de suas Coleções alquímicas (série esparsa dentro do livro que nomeia três poemas), o ritmo é marcado pela aceleração à maneira de Carlito Azevedo:
no alto da planície & no baixo do planalto
da minha meninice que veio viu & venceu
mas também desaprendeu & como dois & dois
são quatro
& também muito mais do que
com esses dois
daí que por isso então começo assim
Esse quase fio desencapado coloca na economia do livro um diálogo muito sofisticado entre soluções formais do outrora com as do agora.
Aliás, é importante dizer, a regularidade formal na composição dos poemas dessa Coleção de nada revelam também um diálogo aberto com a tradição. O livro marca em alguns poemas certo desapontamento com os rumos sócio-históricos e humanos que as civilizações têm tomado e faz isso por meio de quadras, ou melhor, “superquadras”. Essa ironia aproxima a solução formal, escrever estrofes regulares em quatro versos metrificados, e a “moderna” solução urbana da cidade de Brasília, de onde o poeta vem. Repetimos, é uma ironia que associa a reclamação semântica, arquitetura e urbanismo da cidade moderna, com a solução formal das (super)quadras.
Ode florestal
Mas, no que toca o diálogo formal com a tradição moderna, o ponto mais ambicioso do livro é a tradução/adaptação que Ornellas faz da consagrada Ode marítima de Álvaro de Campos, sob o nome de Ode florestal. O maior poema do livro, com 26 páginas, é um exercício de tradução e permutação do texto do modernista português. Vale lembrar, a permutação, na tradição do verso, é um procedimento da poesia medieval portuguesa (e também dos provençais franceses), do qual lançou mão alguns modernistas de nossa língua, Fernando Pessoa e Mário de Andrade entre eles.
Ao trocar o cenário marinho pelo florestal, Ornellas, à maneira de Mário, se vale do tradicional procedimento para criar algo mais atual, mais de seu tempo. Como tudo em seu livro, a presença da tradição não paralisa a invenção formal e semântica, pelo contrário, o traço inventivo está justamente no modo como se apropria da tradição.
Em meio à essa tradução/adaptação/permutação, o poeta substitui o marinheiro inglês de Álvaro de Campos pelo xamã ianomami Davi Kopenawa e com isso insere o leitor no mais atual e urgente dos temas do nosso tempo, tempo de destruição da Gaia e de negação à vida. Valendo-se do entusiasmo do heterônimo pessoano pelas navegações, Ornellas cria um sujeito que responde à destruição do planeta ao querer-se fazer floresta, traço que recentemente também encontramos em fundamental livro da poeta Prisca Agustoni, o belíssimo Quimera (2025).
A transformação da economia sem trocas da primeira parte do livro — que em alguma medida dialoga com outra ode, ao burguês, de Mário — em uma ecologia poética por meio da tradução que faz de Álvaro de Campos, torna-se a potência principal de um livro que coloca em crise os problemas atuais de nossa vida cultural e política sem deixar de trazer pro agora os traços poéticos importantes d’outrora.
Voltando enfim ao título do livro, o que Ornellas põe seu sujeito para colecionar são os devires de uma vida ainda não tentada, mas sempre possível no canto de outras vozes, como a do xamã e a do poeta. Se o niilismo, numa dada manifestação nos chama para o sem sentido da vida, e a consequente constatação do absurdo e da ruína, já aprendemos com Nietzsche que há outro poder no niilismo que nos direciona ao que ainda não foi dado, mas que existe em potência.
O que o sujeito deste complexo e bonito livro de Sandro Ornellas parece fazer ver é que uma ode contemporânea nos chamaria à escuta. Neste caso em particular, e em outros que, felizmente, estão cada vez mais aparecendo (sem desprezo pela tradição), uma escuta das vozes das florestas.