1.
Uma escritora francesa do século 19, Aurore Dupin, passou a usar o pseudônimo masculino de George Sand, e o nome George Sand tornou-se mais famoso do que Aurore Dupin. Aurore perpetrou uma vida de avalanches privadas e públicas, da qual o lance mais ostensivo foi sua relação amorosa e livre com Chopin, tendo de entremeio ruidosos escândalos que encantavam o diz-que-diz parisiense. Nos salões, quase sempre se vestia de homem, com cartola e bengala. Nadar, o fotógrafo-epítome de Paris, representou-a na maturidade, colocando-lhe uma arrogante e burlesca peruca barroca; já seus retratos feitos na juventude mostram-nos uma mulher vulnerável, talvez enfermiça. Esses ângulos opostos bem a definem.
2.
Ela escreveu em quase todos os gêneros, o que era habitual no seu tempo (hoje é que os escritores “se especializam”), mas o ficcional e o memorialístico significam melhor sua obra. Georges Sand situa-se entre aqueles ficcionistas que constituíam o cerne do Romantismo. No seu prefácio (Ao leitor), ela se coloca, nessa grei, dentre os que preferem narrativas rústicas:
Já disse e devo repetir aqui: o sonho da vida campestre foi sempre o ideal das cidades e até mesmo das cortes reais. Nada fiz de novo, seguindo a inclinação que atrai o homem civilizado para os encantos da vida primitiva. Não quis inventar nem uma nova linguagem, nem tentar maneiras novas.
Já eu gostaria de ampliar seu pensamento sobre as “narrativas rústicas”; se é real que o campo sempre atraiu as pessoas urbanas (quase é uma obsessão) como um locus amoenus desejável, e tenha provocado obras desde Virgílio — lembro-me da escola secundária e do sub tegmine fagi que tínhamos de decorar —, é bem verdade também que o movimento fundado por Goethe, mas não só por ele, trouxe a Natureza já como programa: na primeira metade do século 19 todo intelectual era naturalista e botânico. O charco do diabo (1846) vem nesse âmbito.
3.
Trata-se de uma história linear que se passa no campo e a autora diz “pretendi fazer uma coisa muito tocante e simples” (une chose très touchante et très simple), mas não é bem assim. Simples é, é tocante, mas ficar por aí, isso depende da ingenuidade do leitor que lê apenas pela rama. O enredo nos apresenta um viúvo, “velho” de vinte e oito anos e com três filhos, cujo sogro, granjeiro e prático, o incita a casar-se para que uma mulher tome conta da prole, e já lhe diz quem é a noiva (uma viúva rica) e que ele deve visitá-la no dia seguinte, para apresentar-lhe suas homenagens nubentes. Ela vive noutra granja, nem tão perto que possa ir a pé, não tão longe que precise de uma charrete. Irá, portanto, na égua Grise. Uma vizinha pobre vem implorar a ele que leve sua filha de dezessete anos, que vai apresentar-se para assumir um emprego numa granja que fica no caminho. Quando estão de partida, um filho pequeno chora, fazendo manha, pedindo para ir junto. Claro, vai. Perpassam paisagens estranhas, de uma vegetação hostil e sombria, em que se destaca o famoso charco (eu preferiria “pântano”, por sua conotação sombria) que dá título ao livro, e onde são obrigados a parar, porque a montaria, essa, fugiu.
4.
Em que pese a declarada ausência de inovações, quer na forma, quer no conteúdo, tornou-se sua ficção mais conhecida, e com suficiente qualidade para ser incluída no que há de mais expressivo da literatura pré-Flaubert (a não esquecer que, já na década seguinte, explodiria Madame Bovary). Não sei qual o conhecimento de George Sand acerca da obra de Edgar Allan Poe, seu contemporâneo; em todo o caso, vigorava na época um viés bem praticado por Poe, que se convencionou chamar, por falta de termo melhor, de “romantismo gótico”, de arrepiar a pele e bater os dentes, uma espécie de frívolo divertissement geracional. Pois, a contar do título, a novela de Sand conduz-nos a um pântano misterioso que, na visão do jovem casamenteiro, parecia enfeitiçado, ou diabólico, mas — aí o equívoco de muitos leitores — não existia para aterrorizar gratuitamente, mas, sim, para provocar sensações que instauravam acontecimentos inesperados, como a fuga da Grise sem mais nem menos; mas esse fato teve uma função estrutural, pois deixou o viúvo e a jovem na necessidade de caminharem pelo mato, e mais, tiveram de pernoitar e comer al fresco, causando uma aproximação picante entre ambos que, logo, convenceu o moço de que estava apaixonado, e que seria a jovem a melhor esposa e mulher; não lhe passam despercebidos os encantos dela, e a melhor pessoa no mundo a cuidar dos seu filhos, tendo em vista o carinho dedicado ao pequeno que os acompanhava. Quer dizer, o pântano foi um “gótico” de fachada, pois fez surgir o amor e acabou inscrito no título, como estratégia editorial para atrair leitores novidadeiros. E aqui percebemos a instauração do uso de um título que remete a certo conteúdo, e, entretanto, nos leva a outro; nada mal, pois ganha o leitor com o acesso a uma obra de outro gênero, talvez muito melhor daquele que buscava. Não digo que tenha sido de caso pensado, mas não o nego.
5.
Enganando ou não enganando, a novela privilegia o surgimento do amor em sua forma natural: duas pessoas estão a sós, têm tempo de se conhecerem pelo diálogo e pela atração física, passam percalços juntos e esse amor acaba por se criar. Na verdade, a autora pregava a genuinidade e a força do que é livre sobre a falsidade do que é imposto, tal como ela mesma fez em sua vida insubmissa. Os casamentos arranjados (tal como foi o seu primeiro, com um monótono barão de província), ela os considerava odiosos.
6.
A sequência da viagem foi um desaponto. Ao chegar enfim na granja da noiva, ele encontrou já três pretendentes lhe fazendo a corte, e é seu quase-futuro sogro, um tipo de canalha, que o leva a uma sala em que está a filha, e o apresenta: “Eis aí mais um!”. A moça aproveitava sua viuvez como marketing nupcial, e tinha a pachorra de poder escolher. O final é previsível. Irritado com tudo ali, o viúvo abandona a granja e vai buscar a jovem que havia deixado em seu emprego. Sabe que ela sofreu abuso, protege-a, recolhe-a e voltam para a casa de origem. Casam-se.
7.
No parágrafo 3 falei na ingenuidade do leitor que aceitar essa história com sentimentalismo, sem pensar muito. O charco do diabo é o revés: trata-se da denúncia de uma sociedade que não apenas submete as pessoas a decisões alheias, como premia o amor numa época em que isso era vedado e, no fim, denuncia uma agressão sexual a uma menor. Não é pouco, mesmo para uma mulher como Aurore Dupin e, por isso, é uma novela que se inclui no cânone das obras europeias que começavam a discutir a sexualidade sem os empecilhos conservadores. E fez tudo isso sob a capa de uma história toda ingênua. Eis a originalidade de George Sand.