E quem somos nós?

Narrativas de Léonora Miano questionam a maneira como as sociedades lidam com os migrantes
Léonora Miano, autora de “Vermelha imperatriz”
01/03/2025

É raro que se passe algum dia sem notícias do tratamento degradante dado a migrantes em diferentes cantos no mundo. Sejam os abusos sofridos por latino-americanos deportados dos Estados Unidos, as situações de trabalho análogas à escravidão das quais latino-americanos e asiáticos são resgatados no Brasil ou a forma que países Europeus deixam africanos à deriva no Mediterrâneo, somos constantemente testemunhas de uma violenta xenofobia ao redor do globo.

Os conflitos que permeiam as migrações são tema recorrente na literatura de Léonora Miano. Nome conhecido no meio literário francês contemporâneo, Miano já venceu o Prêmio Goncourt, com Contornos do dia que vem vindo, e o Prix Femina e o Grand Prix du Roman Métis, com A estação das sombras. Ambos traduzidos no Brasil.

Recentemente, mais dois livros da autora foram lançados no país: Vermelha imperatriz e Stardust. À primeira vista, as obras são vastamente diferentes. Enquanto a primeira imagina uma versão de África daqui a um século, a segunda conta a vida nas ruas da periferia parisiense contemporânea. É a figura do estrangeiro que aproxima as duas narrativas. Por meio dela, Miano nos faz indagar sobre quem seria esse “nós” que se julga coeso ao excluir o outro.

Caminho reverso
Com enredo situado nos anos 2100, Vermelha imperatriz narra os conflitos políticos e sociais de Katiopa, um continente africano quase inteiramente unificado. No centro da trama está a história de amor entre Boya, acadêmica especializada em práticas sociais marginalizadas, e Ilunga, o mokonzi, ou chefe de Estado. A crise gerada pelo casal na nova nação, existente só há cinco anos, comprova o interesse de Miano por questões envolvendo a figura do estrangeiro.

Com o início lento, composto por longas passagens expositivas para estabelecer a história de Katiopa, o romance demora para engrenar. Além de explicar a série de eventos que levaram à dissolução das nações africanas e a criação de um Estado comum, a narrativa também apresenta ao leitor um vocabulário advindo de diversas línguas africanas. Assim, pode-se consultar o glossário ao final do livro durante a leitura ou apostar no texto hermético de Miano para entender que os fulasi são os franceses; os ingrisi, os ingleses; Pongo, a Europa, entre tantas outras expressões.

Contudo, uma vez estabelecidos o universo criado pela autora e o conflito central da narrativa, Vermelha imperatriz é um romance intrigante. Katiopa, assim como todas as nações, precisa se definir. E esse processo não ocorre sem a tentativa de apagar elementos considerados indesejados. No caso da nação imaginada por Miano, os líderes precisam decidir o que fazer com os Sinistrados: descendentes de imigrantes fulasi que, incomodados com o aumento da imigração no Pongo no início do século anterior, deixaram seu país e se estabeleceram em Katiopa em busca da antiga influência colonial.

— Nessas condições, ninguém pode ficar surpreso se a mão que você estendeu aos Sinistrados privar nosso povo de recursos, por assim dizer, ainda necessários ao desenvolvimento deles. Ver subordinados se tornarem iguais nunca é uma perspectiva alegre. Permita que eu faça este alerta, irmão.

Por meio do conflito dos Sinistrados, Miano traça paralelos entre o romance e o contexto migratório contemporâneo. A autora problematiza a lógica “nós” contra “eles” que classifica imigrantes e seus descendentes como uma ameaça que precisa ser detida e expulsa. Questão relacionada não só à estrangeiridade desses sujeitos, mas também à classe social que ocupam. Aceitar os Sinistrados como parte da identidade de Katiopa, portanto, é o grande desafio da nova nação. Como expressado por Ilunga, que decide estender a mão aos estrangeiros apesar de ser um risco político: “O problema era aquele nós. Quem eram eles afinal?”.

O “eu” em busca do “nós”
A imigração também é a tônica de Stardust. O romance narra a história de Louise, jovem migrante camaronesa, e sua bebê, Bliss, em busca de uma vida mais digna nas ruas de Paris. De cunho autobiográfico, o livro foi escrito ainda nos anos noventa. Como explicado pela autora no prólogo, a decisão de publicar a obra mais de duas décadas após a escrita foi motivada pelo desejo de não ser a “sem-teto que escreve livros”, uma vez que a sociedade francesa tem “propensão a confinar suas minorias sobretudo nos aspectos degradantes — ou percebidos como tais — de suas trajetórias.”

Louise e Bliss vivem à margem da sociedade. Após perder sua bolsa de estudos e sem cidadania francesa, a protagonista sofre uma derrocada. Se antes ela era marginalizada como qualquer migrante pobre e negra, com o direito de permanecer no país em limbo, a jovem mãe lida com a miséria da vida sem moradia e precisa enfrentar a burocracia francesa para se reerguer. Objetivo quase impossível para quem a França visa expurgar.

No corredor, garotas julgam sussurrar, mas dá para ouvir tudo o que dizem. Estão desancando outra pelas costas e tramando assassiná-la por um par de jeans. Irrompe um grito. Se extingue quase em seguida. Alguém chora no pátio para onde dão as janelas. A noite é um sudário umbroso, movente, impregnado de estigmas. Estigmas de todas que são acolhidas aqui. De todas que patinham nos torvelinhos do Mar Negro. Alguma coisa se deve ter feito, não é mesmo, para vir parar em Crimée. Não é uma prisão. Mas não se tem liberdade. É como um purgatório.

Com a documentação que comprova que Bliss é cidadã francesa, Louise é permitida a ficar no país. Enviada por agentes sociais à Crimée, centro de acolhimento e reinserção social, a narradora precisa escrever uma carta para convencer o Estado a escolhê-la para uma vaga numa casa materno-infantil. O processo a põe em competição com outras mulheres, afinal o Estado alega não haver espaço para todas. Se, por um lado, a dinâmica da carta exige que Louise se coloque como “diminuída, infantilizada”, por outro fica também evidente ao leitor que a escrita se apresenta como ferramenta de salvação.

Variando entre a primeira e terceira pessoa, o texto de Miano é afiado. A primeira pessoa é usada nas cartas escritas pela personagem à avó ao longo da narrativa, que são os pontos mais altos do livro. Se na carta ao governo Louise terá de se humilhar, naquelas escritas à avó ela compartilha sua vulnerabilidade e resiliência sem se diminuir. Nelas, não é necessário apelar à piedade de ninguém para conseguir ajuda. A dignidade lhe é conferida porque, para a avó, a vida da neta basta e não há condições impostas para o acolhimento.

No prólogo, Miano explica que não usou a narrativa em primeira pessoa porque a “força do eu vem de sua capacidade de representar um nós que não existia verdadeiramente para a jovem” que era naquela época. Assim, como os Sinistrados de Katiopa, Louise está excluída do “nós” que compõe a nação francesa. Nos dois livros, Miano figura a perversidade existente na divisão pronominal e, em tempos em que somos constantemente confrontados com a alteridade do estrangeiro, nos desafia a repensar essa gramática do ódio.

Vermelha imperatriz
Léonora Miano
Trad.: Carolina Selvatici e Emilie Audigier
Pallas
428 págs.
Stardust
Léonora Miano
Trad.: Dorothée de Bruchard
Autêntica
140 págs.
Léonora Miano
Nasceu em Duala, na costa de Camarões, em 1973. Migrou para a França em 1991, onde cursou a universidade. Em 2008, naturalizou-se francesa. Sua obra foi publicada em vários países e tem abordado temas como as consequências do colonialismo, a migração e o racismo. Ganhou os prêmios Goncourt des Lycéens, Femina e Grand Prix do Roman Métis. Em 2010, fundou a ONG Mahogany.
Allysson Casais

Doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

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