Meu primeiro contato com a Sigrid Nunez foi através do filme do Almodóvar O quarto ao lado, lançado em 2024. Fiz o oposto do comum — vi o filme e depois li o livro. O diretor espanhol se baseou livremente no romance O que você está enfrentando para escrever o roteiro sobre eutanásia e amizade. Nunez é nova-iorquina, nascida em 1951, e já publicou dez livros entre os quais se destaca O amigo, vencedor do National Book Award em 2018.
A amizade é um tema forte em O que você está enfrentando e também está presente em Os vulneráveis. No caso desses dois romances, particularmente a amizade feminina. O tema fica mais evidente em O que você está enfrentando, já que a narrativa está centrada no compromisso que uma amiga estabelece com a morte digna da outra, uma paciente de câncer terminal. A narradora deste romance tem como característica principal a empatia e esse traço se estende para além da amizade central do livro. Há outros relatos nos quais ela sempre se coloca como uma “boa ouvinte” das histórias alheias. As narradoras dos dois romances são escritoras.
A amizade entre mulheres também é o ponto de partida de Os vulneráveis, mas não seu foco principal. No início da obra, estamos diante do encontro de velhas conhecidas no funeral de Amarílis, amiga que fazia parte do grupo. A pandemia de covid-19 está prestes a estourar e o encontro é um último momento de socialização antes do isolamento que a pandemia imporia. É importante notar, no entanto, que esse ponto de partida não é necessariamente o centro em torno do qual a narrativa se desenvolverá e aqui já se desenha uma característica importante do livro — relatos heterogêneos que se costuram a partir da reflexão em primeira pessoa de uma escritora. Não há um fio da meada a se puxar, ainda que a maior parte do romance trate do convívio entre a escritora e um jovem isolados durante a pandemia. A narradora fala da amiga Amarílis, mas também de suas lembranças de infância, de sua trajetória de vida, das pessoas com quem conviveu e convive, e principalmente, de literatura:
Um consenso crescente: O romance tradicional perdeu seu lugar como o principal gênero de nosso tempo. Não importa quão bem feito, parece faltar urgência a ele. Por mais imaginativo que seja, parece carecer de originalidade. Embora ainda seja um meio poderoso de retratar o caráter humano e a experiência humana, de alguma forma, cada vez mais, a narrativa ficcional está parecendo irrelevante. Cada vez mais escritores estão tendo dificuldade em silenciar uma voz que diz: Por que você está inventando coisas?
Sentido para a escrita
São muitos os escritores e as citações literárias mencionados ao longo do romance, de Tolstói a Annie Ernaux. Além de prestar uma homenagem àqueles que a formaram como escritora e também pensar com seus contemporâneos, o foco nesses momentos parece ser a busca por um sentido maior na escrita. Esse sentido, obviamente, atrela-se à estrutura da composição, algo que a escritora está colocando em discussão. Há ainda um certo questionamento sobre o valor ou poder da literatura na atualidade em comparação com tempos passados como se vê na citação acima sobre o gênero romanesco. A estrutura do livro parece espelhar essa tentativa de encontrar um caminho para a forma da obra, já que diversos relatos esparsos a constituem e podem dispersar o leitor que busca uma linha para seguir. O livro funciona para quem estiver disposto a embarcar nas reflexões da narradora e, a cada fragmento, pensar com ela sobre o dia a dia, sobre as pessoas, sobre o que acontece a cada de um nós. Nesses trechos, o que Nunez nos apresenta é um olhar delicado e arguto sobre o cotidiano e também ponderações sobre assuntos próprios de nosso tempo como a pandemia e a ascensão de Trump. Mas se quisermos nos deter na principal história que o livro “conta”, temos que tratar de uma amizade intergeracional forçada por conta da pandemia e acrescentar um papagaio.
Daqui a alguns anos, disse a médica, acredito que as pessoas vão olhar para trás e ver tudo isto como mais um exemplo da barbárie humana. (Observe a suposição esperançosa de que nossos descendentes serão mais humanos que nós)
A pandemia de covid-19 é um acontecimento marcante e recente de nosso tempo e muitos livros e filmes ainda devem surgir a respeito. Nunez se debruça sobre o tema colocando sua narradora-protagonista, uma mulher na terceira idade, isolada em um belo apartamento com um papagaio (chamado Eureca) e um jovem universitário (a quem a narradora chama de Ervilhaca). Por conta de sua idade, ela é considerada “vulnerável”.
O romance se passa em Nova York e o enredo é o seguinte: por conta do isolamento pandêmico, a rica dona do papagaio fica presa na Califórnia e a narradora aceita mudar-se para o apartamento dela para cuidar do animal, já que seu cuidador — o universitário que aceitou morar ali por um tempo — havia desaparecido. No entanto, ele inesperadamente retorna para o local e ela não pode mais sair, já que emprestou sua casa para uma médica em um desejo de colaborar com os profissionais da saúde no momento mais crítico da pandemia (vejam a empatia da narradora novamente). O resultado é que os três: a escritora, o jovem e o papagaio passam a conviver. Insuportável e silenciosa a princípio, a relação entre ela e o jovem acaba se harmonizando a ponto dos dois passarem a bater papo e fumar maconha juntos e, claro, cuidar do papagaio.
Na convivência entre os três personagens delineiam-se alguns temas que, para além das reflexões literárias da narradora, marcam a obra. O primeiro é a importância das relações interespécies. A presença do papagaio acaba sendo um pretexto para a narradora discorrer sobre a importância das trocas entre humanos e animais. Em O que você está enfrentando, um gato inclusive toma a palavra para contar sua história. O tema do convívio harmônico com os animais liga-se a outro, também presente em O que você… — o futuro do nosso planeta e dos seres que nele habitam, o que implica a questão da crise climática. Neste romance, um ex-namorado da narradora realiza palestras sobre o futuro sombrio do nosso mundo e se choca com a ideia de as pessoas ainda quererem ter filhos no mundo de hoje.
Vulnerabilidade e conexão
Por fim, voltando a Os vulneráveis, há o tema da convivência entre gerações. Se a princípio a comunicação entre a narradora e Ervilhaca é praticamente inexistente, ao conhecer a história do jovem, ela também percebe a vulnerabilidade dele e a conexão entre os dois se modifica. Em diversos de seus comentários literários, também se percebe que a própria literatura poderia ser colocada no campo do “vulnerável”, principalmente se pensarmos sobre sua relevância hoje. O romance de Nunez nos faz relembrar esse tempo pandêmico, o isolamento, o medo e também a incerteza do que estaria por vir. Durante a pandemia, muito se falou sobre o que uma experiência tão dura “nos ensinaria”. A fala trazia a ideia de uma transformação positiva pela qual a humanidade poderia passar. Se olharmos para o mundo hoje, alguns anos depois, vemos que estamos longe desse pensamento. Uma das epígrafes da obra sintetiza um pouco essa sensação. É do dramaturgo inglês James Saunders: “Está por trás de tudo [..] certa qualidade que podemos chamar de pesar”. Apesar de se deter em um tempo em que todos nós estávamos muito vulneráveis, o romance acaba por se abrir para uma reflexão sobre nosso tempo atual e sobre para onde caminharemos, expondo tanto a fragilidade do nosso planeta como aquela inerente a cada um de nós.