Medusa

Conto de Franklin Carvalho
Ilustração: Mello
01/03/2025

Naquela tarde, Medusa acordou atordoada.

Uma sede medonha, a garganta quase incendiava. Ainda aflita pela ressaca de uma bebedeira na véspera, chegou à janela e percebeu um mormaço estagnado, que paralisava até a fumaça nas chaminés da paisagem. Não havia vento. Só os seus pensamentos se agitavam como cobras famintas.

A primeira providência foi usar o celular para encomendar um garrafão de água mineral no armazém da esquina. A segunda, fumar um cigarro na varanda do apartamento, o vidro da sala fechado para a fumaça não contaminar os cômodos. Logo os deuses a ouviram e o armazém enviou um moço forte e bonito, mal assalariado e mal vestido, que carregava um cântaro de plástico transparente, repleto de 20 litros líquidos.

Apesar do esforço, o atleta se equilibrava, e suportava ainda um sorriso alvíssimo, monumento de pedras, coisa de toneladas. Assim que entrou no apartamento, ele deu a entender um temperamento manso, doce e ao mesmo tempo vivo, como um tenro filé no prato de quem gosta de carne.

Mas deu-se o desapontamento, com pouquíssimas palavras. Assim que o jovem depositou o garrafão sobre a pia da cozinha e seus músculos tensos rearranjaram-se na aparência quadrada das romãs maduras, Medusa interveio com perguntas bobas. Só conseguiu descobrir o nome do guerreiro: Perseu.

O moço encaixou o vasilhame no suporte de dispensar água e logo se despediu, recusando aguardar café, lanche, tudo o que ela oferecia. Falou em pressa, patrão, muito serviço.

Sozinha novamente , Medusa pensou pelos dois. Claro que o rapaz percebera o desejo dela e se tinha evadido. E não cabia esperar outra visita dele quando a água voltasse a acabar, nem que o mundo secasse. Algo havia se partido dentro dela, a esperança de conquistar, na sua idade, um moço tão novo.

Quantos anos Medusa tinha? Ninguém lhe dizia, porque morava só, e sempre fora acostumada a silenciar as pessoas na rua com seu comportamento serpentino e sua insolência víbora.

Aquele encontro com Perseu fez Medusa desengavetar um espelho que ganhara havia muito tempo, mas que sequer tinha desembrulhado. Ao liberar o objeto da sua caixa, ela percebeu a delicadeza da moldura de metal e a nobreza do vidro prateado.

Lembrou-se de que nunca tinha se mirado em espelho algum, nem mesmo visto seu reflexo num lago, numa vitrine, pois sempre lhe disseram bela, bela, bela. E bela ela se pensava.

Mas ao se mirar no fundo do reflexo não foi a si própria que viu primeiro.

Encontrou antes as rachaduras e as infiltrações das paredes da casa, coisa que só notava nas residências dos vizinhos. A seca geral castigava as suas raquíticas plantas nos caqueiros áridos. Tudo em volta estava empoeirado e em desordem, inclusive roupas e papéis e o que devia ser enfeite.

Passara-se muito tempo desde que havia arrumado o seu mundo. E foi precisamente o tempo o que ela viu no espelho. Além do aspecto do apartamento, rugas que eram vermes com fome dançavam no seu rosto, no vidro.

Assustada, Medusa sentiu imediatamente a morte das pessoas que se notam esquecidas por elas próprias.

Já Perseu, que mal vira o rosto daquela mulher, pois o apartamento era escuro para quem não estava acostumado aos seus cômodos, continuou belo e bobo por muitos anos. E, tão tolo, seguiu petrificando o olho alheio naquela vizinhança suburbana, o único mundo em que transitava.

Franklin Carvalho

Nasceu em Araci (BA), em 1968. É autor do romance Céus e terra (Record), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2016 e do Prêmio São Paulo de Literatura 2017. Em 2019, ganhou o Prêmio da Academia de Letras da Bahia com o livro de contos A ordem interior do mundo (7Letras). Publicou também os romances Eu, que não amo ninguém (Reformatório, 2021), Tesserato — A tempestade a caminho (Noir, 2023), a coletânea de crônicas Onde eu estava com a minha cabeça (Patuá, 2022) e a novela Noite bruta (Villa Olívia, 2025).

Rascunho