Visão dos invisíveis

Poema em prosa de Lucas Guimaraens
Ilustração: Marcelo Frazão
01/03/2025

I
Nunca tiveram culpa. Uma mesa de pés de ferro-alumínio, um tampo de compensado ruído com o tempo, uma toalha de plástico — vermelha e branca em gritos de histórias — sobre a mesa. Era choro contido. Pouco. Como escassos eram os que ali rodeavam a pequena caixa onde se encontrava Antalfomaí. Havia um pudor em chorar: aquele líquido fácil de se verter e que, ali, no esquife e fora dele, o morto jamais pudera gozar. Fora feliz. Paredes escuras, azulejos azul celeste, rejuntes desgastados. Se o momento não se passasse naquela pequena cozinha, poderiam observar os inúmeros diplomas devidamente emoldurados na parede do cômodo ao lado. Ali residiriam traços do que já foi. As portas-prancheta, frágeis, e o vento que das montanhas vinha obrigaram Antalfomaí a colocar pilhas de livros no chão, rentes às portas abertas para que assim permanecessem.

Quando nasceu, foi susto e sonho. A mãe preparada para a cesariana — aliás, convencida pela indústria médica de que era a melhor e mais segura opção — parecia ausente desde o momento em que entrou no carro em frente à sua casa até o fim da cirurgia. Seus olhos, não sabia a razão, ficavam fechados. Disse ao marido que a luminosidade a incomodava. E, ali mesmo, antes do parto, já batizou aquele que estava por vir: Antalfomaí.

Quando nasceu, foi susto e pesadelo. O bebê perfeito e sem olhos. A cavidade ocular perfeita, as pálpebras também. E abertas. Os músculos extrínsecos eram perfeitos e se movimentavam vorazmente como se buscassem as bolinhas de olhos que deveriam envolver e mexer. Ainda. O nervo ótico estava intacto. Este, que normalmente se origina na retina e penetra a cavidade craniana, parecia buscar seus receptores que, por sua vez, não existiam. Nem a retina. O bloco condensado de fibras nervosas parecia um cabo de alta tensão ricocheteando o asfalto molhado e soltando fagulhas de fogo nos músculos da nova vida.

Quando nasceu, foi sorriso e choro. Antalfomaí sorria de pálpebras abertas. Sem reclamação. Médicos e auxiliares viravam o rosto e buscavam as lixeiras ausentes no bloco cirúrgico. A mãe — finalmente de olhos abertos — chorava.

A impressão era a de que todos estavam — ou queriam estar — cegos. Antalfomaí, por sua vez, enxergava. Ou parecia. Certamente sorria.

II
Demorou a caminhar. Logo nos primeiros passos, ainda que sua formação óssea e muscular estivessem plenas, caía. A família decidiu por fazê-lo inerte. Com seu crescimento, conseguiu arrancar as grades de onde havia sido colocado e caminhou pela primeira vez. Isso coincidiu com o momento em que começara a falar. Apesar de sua constante sensação de náusea, caminhava pela casa com propriedade. Aliás, caminhava, abria a porta da geladeira e sem tatear os alimentos, escolhia o que era necessidade de seu apetite. Via.

Foi a época também em que colocaram óculos escuros e boné quando havia qualquer evento fora de casa. Titubeante, caía com frequência. De cara na rua de pedras em frente à casa. Estilhaços das lentes dos óculos aderiram à musculatura vigorosa de suas cavidades oculares. A cirurgia para a retirada das impurezas foi malsucedida. A musculatura ocular havia se tornado uma planta carnívora. Os dedos ou instrumentos que a tocassem eram imediatamente dilacerados. Os cacos encontravam o repositório.

III
Na escola, aos onze anos em sala de garotos e garotas de sete, seus dias foram atrozes. Sem visão, a auxiliar de aprendizagem lia e explicava tudo o que se passava durante as aulas. Era meiga. O que não sabia é que Antalfomaí lia de outras maneiras. As palavras tinham vida, logo sua absorção não vinha dos sons, mas da visão ultrassonora dos códigos verbais, como golfinhos a decidirem os seus próprios destinos no mar infinito. Havia, então, conflito. Entre o que a auxiliar ditava e aquilo que ele via sem ver e que era mais intenso do que as explicações em ladainha de sua acompanhante de estudos. Eram duas legendas, em dois idiomas distintos, sobrepostos um ao outro. Para todos que já o consideravam uma aberração desde o primeiro dia escolar, virara um imbecil, débil.

No entanto, Antalfomaí não conseguia, por si, explicar o que lhe ocorria. Assim passavam os dias. Entre dois idiomas diferentes e as ações perniciosas de seus colegas. Mas ali iria aprender a primeira das lições. Onde há obstáculo, há possibilidade de ultrapassá-lo.

IV
Tropeço atrás de tropeço. A cada tombo, uma guinada. E as magias dos que nascem sem olhos. Ao dar de cara com o quadro negro, o giz, o próprio quadro e as palavras ou desenhos apresentados pela professora eram absorvidos em sua cavidade ocular, cada vez mais suja. Começou a amar a sujeira do mundo. Alfabetizado, escrevia ou fabulava suas impressões.

O mundo de representações é o que mais lhe impressionou e incomodou. Como acreditar em uma cadeira se esta, em sua tentativa de explicação universal, carece de suas complexidades? Como criar tecnologias a partir de simplificações que não retratam a realidade das pessoas e das coisas? Foi nesse momento, anos já passados, que começou a esfregar livros da biblioteca pública em seus olhos ausentes e comedores do que se lhes era apresentado. Descobrira que as palavras também tinham vida e se inseriam com todas as suas polissemias em seu pensamento.

Primeiramente, começou a não acreditar no que lia (no que engolia das palavras). Depois veio a depressão por não acreditar na ilusória construção das civilizações. Assim. Ao lado direito de sua casa de subúrbio, havia um terreno baldio. Amiúde, queimadas no matagal. Quando as havia, via. Lembrava da mentira dos livros: combustão parcial de metano e de acetileno. Lera isso em livros sobre aquecimento global. Ocorre que o carbono negro, a fuligem, também se inseria em suas cavidades ausentes de visão. E havia mais.

Há que ressaltar que, neste momento, a cavidade não era mais um vazio de carne. Uma espécie de globo ocular estava em plena formação: cacos de vidro, pedras, fuligem, giz, peles humanas e palavras. Estas eram, no início, a composição daquela membrana amorfa e grotesca que se desenvolvia onde deveria haver retinas límpidas, pretas, azuis, mel ou verdes.

V
A guerra. A guerra não era guerra. Era a maldade que entrava pelos poros dos povos preenchidos pelas chacinas e torturas de um discurso, ou seja, de uma representação das coisas pelas palavras. Tinham, todos, medo. Apreensão. Fiavam nas cores e fiavam tecidos de solidariedade. Antalfomaí era todo amorfidade. Todo alacridade. Amorfo na depressão que lhe vinha das explicações do mundo mais do que dos flagelos que recebia por sua condição. Alacridade porque vivia o toque das coisas, desconstruindo-as.

Esfregara livros de filosofia em seus cacos de olhos. Disseram a ele que havia algo de cegueira nos filósofos. Como se tivessem ido à guerra como clareadores. Uma bomba teria estourado perto de seus corpos e de suas lanternas e os teriam deixado terra, barro e cego? Como viver nas representações enquanto pessoas desapareciam em uma cidade em que falar era sinônimo de aniquilação? Antalfomaí se pensava louco e talvez o fosse.

Certamente não possuía a mesma percepção de pássaros, postes, acordes, voos que os demais membros da família humana. Mas era certo que das palavras nasciam a vida que lhe fora tirada junto com seus globos oculares, vestidos do que é pigmento e existência nos corpos de todos.

Começara, no entanto, a ter certa harmonia — ainda moço de 30 anos, pensava ser isso o amor. Não era. As palavras e os toques eram mais mundo do que seus três vizinhos retirados de suas casas no meio da noite. Nunca voltaram. E vinha novamente a grande depressão. A confusão entre os relatos dos outros e a realidade que pensava fagocitar por meio de suas cavidades oculares.

Com um amigo austríaco cujo encontro viria anos depois, teria sabido que relatos, frases só teriam significados em seus contextos linguísticos. Mas seu contexto não era de nenhum outro ser vivo e sua leitura não era de enunciados. Vinha do oco das montanhas, de fórmulas jamais escritas e de sua ausência de olhos.

Mesmo com suas dúvidas, em sua incapacidade imponderável de se adaptar aos modos de vida, Antalfomaí começara a acreditar que o universo seria apenas o conjunto de algumas propriedades pertencentes a certos grupos de jogos. Como em uma família onde se encontram similitudes que se entrecruzam entre os diversos parentes, similitudes que aparecem, vez sim, vez não (como o formato de um nariz, o tamanho, as orelhas, os olhos… ou a ausência deles), mas que não se apresentam todas elas em uma única pessoa.

E assim fez-se a paz. Momentânea. Descobrira que uma frase possuía sentido apenas se ela estivesse inserida em um jogo de linguagem preciso. Talvez fosse assim mesmo. As representações poderiam ser reais. Assim, ele entendeu que palavras e decisões generalistas tendiam a ser falsas. A paz veio na mesma medida em que se encontrou sem defeitos. Ele era o que se poderia encontrar no fim do arco-íris. Ele poderia, pela primeira vez, chamar-se de eu.

eu vivi para ver o mundo nascer
o mundo nasce com a visão de cada nascimento

eu vivi para ver
o mundo não saber o que é

o mundo não é mais o mundo
ruas talvez não sejam as mesmas

praças não são praças em seu uso
praças são obstáculos na passagem silenciosa.

Nazim Hikmet é lido.
Sergio é lido.
Darcy é lido.
Livros são lindos.

O ser humano é majoritariamente líquido.
Líquidos são de difícil contenção.
Ultrapassam barreiras.

O ser humano ultrapassa barreiras.

Ilustração: Marcelo Frazão

VI
Quando amou, foi brisa e carvão. O amor. E a óbvia repulsa do ser amado. Já não queria ser eu. Queria ser o outro, formado pelas perfeições do corpo e do espírito. Não mais lia. Os livros que desvendavam a mentira dos outros livros também falseavam a realidade. Isso Antalfomaí se deu conta ao encontrar com o perfume mais intenso que já enxergara. E a tentativa de ser todo fulgurância. E a rejeição. Durou pouco. Não a rejeição, que dela não se resguardaria pela vida inteira — ainda que suspiros de magnólias viriam no tangível da piedade de alguns olhares ou do sucesso veloz de suas contradições que o tornariam, em lapso momento, celebridade — mas rapidamente redescobriu, no esfregar de páginas em seus não-olhos, a poesia. Descobriu o infinito e a incerteza:

Esperança
Esperança

Nome de estrela
Criança que dança

Se é nome de todo dia
Às vezes balança
Outras cansa

Esperança
Esperança

Se é mirra, incenso ou ouro
Pouco espanta

Bata à porta
Chute a lata
Vá para a rota
Faça a mala

(Mesmo em casa)

Corte a fita
Não entre pelo cano
Finque a palafita
Do novo ano.

O amor — ou o ato da transa, da carne e seus prazeres — veio rápido. Galopes de vento num vapor ascendente. Descobriu, na armadura forjada em células e tronco esculpida, a mulher. Átimo de constelações, lactações, veneno e antígeno. Isso veio, no entanto, em terras frias, de pessoas com cabelos da cor de vento que penteia e alisa as plantações. Era um evento de reconhecimento mundial. Entre as premiações contempladas, havia a da paz, a da física, a da literatura a da… Todos queriam um pouco do que Antalfomaí não tinha, mas que o fizera ter mais do que os outros: visão de mundo. Porque o carbono não era carbono e as combustões não eram combustível sustentável. Ele obtivera, anos antes, a fórmula certa de economia e sustentabilidade quando seu corpo flambado pelo incêndio criminoso em sua casa o fizera mais próximo desta energia e mais longe de seus parentes que haviam sido carbonizados. Ele, o único sobrevivente. A maior dor veio das partículas de cinzas e perda. Sem olhos e enrugado pelo fogo. Mais uma vez. Porque a paz não era pombo, nem ditames, nem preceitos legais. Porque ela relevava mais da poesia do que da razão humana, a literatura tornou-se sua casa. Iniciava sua percepção de que as fórmulas de mundo e as formas de vida que lhe chegavam pelo seu sentido sensorial anormal não construía mais do que outros falseamentos da realidade. Mas o circo já estava montado e as crianças do mundo queriam vê-lo.

Antalfomaí era todo diversidade. Tornara-se todo sentimento. Refutou muito do que lhe vinha dos orifícios reformados por retalhos. Daí o fato de, ao chegar no país com cheiros de amarelo e ouro, ter havido tamanha contestação contra sua indicação para o maior prêmio existente quando os homens e mulheres se faziam presentes sobre a terra. Suas conclusões eram perfeitas, os resultados também. Mas onde estavam as teorias, teoremas, artigos em revistas especializadas para confirmarem o que Antalfomaí enxergava? Não existia. Antalfomaí era toda sensação. Chegou em loas. Saiu surrado por uivos. A idolatria é o primeiro caminho para agregar algozes em torno de uma existência. Restou a Antalfomaí uma passagem aérea com escala em Paris e algum dinheiro de bolso dos poucos piedosos.

VII
Chegara à cidade das luzes. Sem luz. Sem direção. Era a primeira vez que experimentava a cegueira. Uma multidão de chapéus, echarpes, sombrinhas o empurravam para algo que lhe assemelhava a uma tormenta no mar. As palavras que saíam de sua boca não chegavam como enunciados inteligíveis para a multidão que ali estava. Sete horas de interrogatório na alfândega. Deixaram-no passar porque haviam decidido que sua ausência de beleza era ausência de vida, logo seria invisível. Não havia razões fora o fato de que, naquele momento de sua história, ele não era.

Quem diria
França é franca
mas fraca a cruz
das dores
Itamarandiba seixos redondos
Jequitinhonha nesse largo
de peixes e poeiras

Quem diria
do franco
do asfalto
da enxada
(desvencilhar de
pedras)
de Valéry
de Moura
& mouros

Morfina não mata dores
mas consola.

Não adormecem os corações.

Quem diria das melodias
jamais decompostas
inteiras são as esferas
e ninguém ousa partir o sol.

Quem diria.

Tempos baldios. Do metrô saiu em uma estação — um cais de porto, quase — levado pelas mãos de uma jovem. Temia a mulher. Mão áspera e feminina. Vez por outra, enxergava as estrias de perfume. Mas era a que lhe guiava para fora da tormenta. Caminharam. Não havia luzes na cidade. Havia monstros para Antalfomaí. Desceram dezoito degraus e começaram a escutar diversas vozes de idiomas ancestrais. Havia mistérios que não se encontravam em sua visão. Havia raízes fincadas no nomadismo, uma contradição que saberia em breve. Melhor, sentiria. Tateou perguntas. Não era correspondido. Os cheiros começaram a surgir. Outros perfumes também. Estranhamente, parecia ter chegado em casa, na casa de seu país que não mais existia ou estava por se dissolver. Tateou novamente perguntas. Estava às margens do bulevar Ney. Siloé era o nome da moça que o levara até ali. Um ambiente ruidoso e cheiro de esgoto e especiarias, condimentos culinários. Parecia casa ou um arremedo dela. Siloé era puro feitiço. Era pura excitação. Era pelo de gato em arrepio. Para Antalfomaí, tornara-se um porto seguro. Uma âncora no mar revolto.

E, no entanto, fora apartado dela imediatamente naquela comunidade. Convivia com homens apenas. Aprendeu rapidamente que estava em uma comunidade muito antiga, mas muito nova. Muito antiga que suas origens no norte da Índia datavam, naquelas terras europeias, do século 15. Muito nova, que sua permanência nos lugares era inconstante, às vezes frívola, certamente efêmera.

Ao enxergar o que não podia ver, absorvia a arquitetura do local. Lembrou de um emaranhado de pipas, umas sobre as outras, algumas rasgadas, com e sem cerol. Eram aproximadamente 300 famílias vivendo sob esse recorte de pipas. Lembrou de seu país, da pipa desgovernada que havia entrado nos glóbulos carnívoros de seus olhos ausentes. Era cimento, poeira, esgoto, ratos. Mas era pipa, era cores. E os temperos, a primeira visão que teve dali.

Pensou. A frivolidade das vidas perdidas. A seriedade dos dentes dos ratos. A sinceridade da ausência de flores. O cheiro dos sexos e os gemidos das peles em tensão. Sentia falta de Siloé. E Siloé não havia.

Aos poucos entendia o afastamento de Siloé. Era um estrangeiro naquela comunidade, primeiro. Por fim, Siloé, aparentemente, tinha o hábito de transgredir costumes e leis. Uma forasteira dentro de sua própria comunidade. Miseranda quase proscrita. Domadora de corações. Sedutora de mortes. Feiticeira de plantações inexistentes.

Havia ratos nas praças dos trópicos. Mas no território invernal, Siloé era a história de uma tragédia, da mulher estrangeira, abandonada pela comunidade, pelo seu companheiro gitano para que ele contraísse novas núpcias, dois filhos por criar, dentes cor-de-miséria. Asilada. Exilada.

Ficara uma década sem poder voltar para aquele aglomerado de cabanas, que seu companheiro era também o líder. Ele, por sua vez, ninguém sabia o nome. Decidiram chamá-lo de Jason, rima de chanson, canção. Passado algum tempo, Jason tornou-se canção de rudezas e força física. Virara som. Depois silêncio.

Enquanto isso, Siloé era fugitiva dos cheiros e sabores de sua origem. Perdera inicialmente sua origem. Aos poucos, perdera as imagens de sua comunidade. Branco. Humilhada, abandonada e desamparada, Siloé pensa em vingança. No lugar disso, entrega-se à vida dos botões de flores abertas para o vil metal.

Sua história vinha de suas entranhas de sexo, suor, feitiços e sangue. Proscrita pelo líder da primeira conjugação daquela comunidade, girou mundo virado, retomou borboletas, perdeu seus filhos perdidos. Sozinha. Proscrita por ser mulher e ser maior que os gigantes das histórias orais que permeavam as noites daquelas crianças. Proscrita por não poder escrever sua própria história e ser enganada pelos corações das maldades que existem desde a origem dos tempos, quando a primeira ampulheta ainda estava sendo forjada pelos homens.

O primeiro líder, seu antigo companheiro, morrera. Ela voltou. Enterrou a carcaça de seus filhos. Ou tentou. Como já não existiam carcaças, escolheu dois lindos ratos, mordeu-os como Saturno devorando seu filho e os enterrou ao som de um violão gitano. Eram dois grupos disputando a ampulheta de sujeira e sol e sombra às margens do rio. Siloé sabia, seu marido, Jason, havia sido derrotado outrora. Aliás, ele havia debandado para outro acampamento, atraído pela fortuna de poeiras mais bem comportadas às margens de uma mesma miséria. Siloé era proscrita desde então. Mas sempre fora. Enquanto os homens de sua vida buscavam coroas e riquezas, ela travava a luta por seu reconhecimento, seus temperos, sua magia. E sua fortaleza maior. Novamente proscrita.

Antalfomaí, aquele que enxergava mais do que todos, rumou Siloé para outros mundos. Amaldiçoara os traidores. Siloé entrou para a história daquela comunidade como se tivesse matado seus filhos, coisa que nunca ocorreu. Encontrou a si, em sua deserção.

Ilustração: Marcelo Frazão

VIII
Escreveram muito sobre Siloé ao longo dos tempos. Mudaram seu nome, mas era musa de versos. Encontrou com outras musas e outros versos. Agora, Siloé e Antalfomaí estavam em terras novas, terras antigas, terras que haviam cegado Antalfomaí, seu berço de nascimento.

Antalfomaí era todo medo. Era todo obscuridade. Chegara em seu país e não mais enxergava. Ou não queria enxergar. Corpos pendidos em sua rua, buscara outros remos, outras navegações. Em Jaicós, no Piauí, encontrou com a cearense Jovita Alves Feitosa, uma brava mulher; um senhor homem. Despedia da parentaia, a lutar em terras paraguaias. Um espelho de Siloé. A partir daquele momento, entre Cortes, deserções, fantasias, mulher virando homem, Siloé encontrara alguém cujos dentes eram afiados como os dela. Podia também morder ratos. Aprenderam, juntas, a morder ar, preconceitos, discriminações e o jugo dos reis de todos os tempos. Entre São Luís e Rio de Janeiro, trotaram. Com os pés e a alma de poeira, Antalfomaí, encantado, carregava a bagagem da longa viagem.

Artefato raro era o espelho. E por ele procuraram. Ali, o que Antalfomaí, distante, já vira sem ver, foi confirmado. Jovita e Siloé haviam fundido corpos, palavras. Não eram mais do que uma. Roubaram, de uma e de outra, reciprocamente, a personalidade e suas histórias. Apaixonara pelo mesmo homem. Em uma história, ele era de outras terras, de visão azul. Em outra história, ele era Antalfomaí e suas impurezas. Escreveram sobre Siloé naquelas terras. Versos também fizeram:

 O leitor ou leitora já viu a Jovita?
Mas quem é Jovita?
É a curiosidade do dia, o ídolo da
atualidade. O nome da moda, a pessoa do
tom, a glória do Piauí, o orgulho do Ceará,
a musa da guerra, […] a poesia do Exército
encarnada sob a forma airosa de uma
rapariga travessa, exaltada, graciosa,
meiga, terrível, misteriosa.[1]

Fato relevante é que, com um enorme pau-de-arara de ideias, ações e palavras, Antalfomaí e Siloé conheceram o trabalho na terra e as agruras e mistérios das cidades urbanas. Devassidão. Lutaram pelas minorias e pela cor local — esta, obviamente, era global. Não vista, mas enxergada. No entanto, à medida que o mundo se transformava, deixaram o cheiro da carne queimada do lombo chicoteado e adentraram outras searas, tentando obter do sentimento uma atenção maior ao ser humano, aos limites de ser humano. Encontravam-se em transição. Antalfomaí não mais obtinha fórmulas matemáticas, químicas ou físicas ao esfregar seus olhos amorfos nos materiais que lhes vinha às mãos. Ele sentia, assim, das pedras, seus choros. Toda pedra continha uma lágrima, como todo passarinho há um dia de parar suas asas. Eram lágrimas também o líquido do umbuzeiro que ele e sua companheira bebiam para saciar a necessidade de vida na caatinga.

Estiveram também em palácios. Mas eram unidos pelas travessias com seus sacos absorvidos de coisas de todas as terras por onde passaram. Nestes sacos cerzidos do que houvesse à disposição, Antalfomaí enxergara seus próprios olhos: sacos de coisas, de enxofre, de ferrugem, de cheiros, de sexo, de paisagens e de tudo o que era sentimento.

Antalfomaí via singularidades. Aprendera o caráter etéreo do diferente primeiro pelos seus glóbulos carnívoros. Deles, observara que tudo é vida e que cada uma comportava uma fórmula. Depois foi dissuadido destas impressões da juventude. A singularidade — símbolo maior que era Siloé — eram os sentimentos. Individuais, mas universais. A angústia das mães de pés rachados à espera de seus filhos e o desejo de vê-los novamente reunidos na choupana.

Antalfomaí era duas línguas. Uma que passava entre sujeitos, verbos e predicados, como aprendera — ou tentara —na escola. Narrativa. Outra — e mais relevante — era os versos. Estes eram mentais e jamais haviam sido externados por ele. No entanto, agora que a visão residia no sentimento, no Atlas que carregava o mundo, nas minas de carvão no negrume dos fundos, na rosa selvagem da mulher, decidira falar.

IX
Antalfomaí era todo sentimento. Era todo flagelo, mas pensava conhecer os caminhos do alento. Inicialmente, juntava em seus cacos amorfos de retina a tradução das sensações que haviam passado pela bateia das vidas miúdas nas agruras de um sertão e seus cabarés.

Neste ponto, aquele que nunca vira, iluminou-se. Não havia verdades fora de contextos, havia aprendido com o amigo austríaco, filósofo. A mais valia era gritar, com seus olhos de aterrorizar, o contexto social que conhecera nas andanças com Siloé. Como uma superestrutura de madeira, arrebanhava cupins para ruir a arquitetura sociológica secular. Ou achava que arrebanhava. Havia resistência. Foi a primeira vez que dirigiram a ele por meio da palavra lunático. Ele gostou. Siloé-Jovita também.

X
Descobrira mais. A função da não visão era nutrir impulsos. Amava e sofria. Lembrava das folias de reis de sua infância, o acalanto miserável e a riqueza desconhecida das cores que não via. Mas ouvia. Estava em um quarto úmido de lembranças. Uma preocupação com a saúde de familiares e conhecidos. Decidira usar sentimentos e palavras. Seus pais vieram de terras secas de outros senhores. Não havia assistência. Somente resistência. Este era seu barro, seu bairro e era a vida de Siloé. A partir de então, Siloé tornara-se sinônimo de sua própria vida. Mesmo sem perceber. Mesmo sem ver.

Descobrira mais. O fascismo. Enxergou o calor de livros queimados nas praças.

XI
Antalfomaí era copo de fogo a pingar lepra. Assim o enxergaram tão logo o descobriram como o cego que via através das saias, das gravatas e das certezas impuras de homens maus. Seu corpo estava arriado. Sua mente não. Após seu tempo de prisão por querer plantar suas verduras e sovar seu próprio pão, Antalfomaí decidira dar visibilidade ao invisível de seus versos, pensamento-visão. Sua visão, descobrira, também possuía uma fórmula, mas esta não era arroubo de juventude. Sua visão eram frases escandidas, versos sem metrificação. Decidira publicar tudo o que haveria de ser lido até aqui. Conseguira, nestas horas de solstício, lançar-se no jornalismo amador. Tão logo soube, a polícia proibiu a continuação da publicação. Não queriam Antalfomaí e as vozes que o habitavam e que já eram dele, como tudo o que entrara em seus carnívoros glóbulos oculares: Siloé, Jovita e todos os percursos transcorridos. Havia devorado o conceito de democracia. E, no entanto, democracia não conhecera tal como estava escrito nos alimentos-livro. Pensou em publicar seus versos, pensamentos de lutas. A ideia, aparentemente, causou náusea em terceiros. Fora preso e ficara recluso por três anos. Saiu sem seus dedos do pé e sua genitália. O que mais era humano nestas deformidades eram seus olhos de enxergar cegueiras.

Tornou-se logo deputado. A vida corre rápido e não há que dizer que nos trópicos milagres acontecem. Como os cactos no sertão, as leguminosas na ânsia de absorver oásis. Participara de uma Assembleia Constituinte. Percebendo a inconsistência das pequenezas ignoradas pelos reis, dos pés rachados e negros, dos beiços abertos e sangrando, instituiu-se cassado de seu mandato. Pastoreou novos arco-íris.

Guardara assim o sol nos olhos e o arco-íris na mente. Com dificuldades de peregrinar sem os dedos dos pés, tornou-se imóvel e dinâmico. Os livros voltaram a conviver com sua visão de quem enxerga. Sobretudo os livros que começara a escrever. Iniciara um manifesto de adesão massiva de intelectuais e de ao menos parte da burguesia. Esta, no entanto, preferia os sorrisos amarelos em formato de croissant ou de lua nova.

Na aguardente se embrenhou desde o primeiro dia em que invadiram sua casa — havia voltado a ela, ainda carbonizada. O copo etílico era seu contato com o mundo que exigia sua existência. Sempre às vinte e uma horas e trinta minutos, aproximadamente. Logo que seus algozes invasores de sonhos o deixavam em seu quarto moído de carne exposta e sangrado.

XII
Antalfomaí voltara a amar. Outra Siloé viera. E com ela mais uma denúncia de opressões e de mortes. A peste chegara e foi atroz nos becos dos morros, nos acampamentos, nos arrozais e nas casas grandes. Houve tempo para seu filho nascer antes de ser deformado em seu sexo. No entanto, nascera uma aberração. Com olhos humanos. Antalfomaí se perguntava se seu menino saberia enxergar. Ou apenas ver, como os outros. Fora amado pelos seus pais até a idade de dezesseis anos, quando a peste o levou e, consigo, os sonhos de seus pais.

Mas a vida é primavera. Um girassol da cor dos seus cabelos. Era a imagem musical que vinha de onde ele conseguia tirar suas lástimas, no nordeste de seu hemisfério interior. Dentro de si, havia espaço para o cangaço e o messianismo. Ele era ao mesmo tempo Lampião, Caldeirão e Pau de Colher. E era ninguém. Seu universo era uma imensa fazenda de sertão, como um país de um dono só, separado do resto do mundo. Era Macondo e muralha. Mas era também proteção. Havia perdido a felicidade. A infelicidade e a impossibilidade de ser feliz e digno vieram da própria estrutura colonizadora da sociedade. O homem visto como objeto e obrigado a fazer parte de uma relação de forças desigual e frágil.

Não nos equivoquemos. Antalfomaí era o escorrimento de lepra e nos livros não encontrava caminho algum a seguir a não ser o da poesia. Criara internamente um sistema próprio de inteligibilidade comunitária onde os valores a serem alcançados eram diferentes daqueles almejados pela burguesia e mesmo pelos proscritos. Descobrira a grande mentira de todos os discursos: a palavra sim e a palavra não. Insubordinado, disseram.

Que sou insubordinado
as janelas abertas incomodam
nem tanto

Os animais de estimação
resgatados das ruas
nem tanto

Nos bares,
na música e
nos parlamentos
só me interessam as vozes
com formato de pássaros.

Tanto.

XIII
Antalfomaí era um rimance de poucas laudas. Xácara de poucos ápices, algumas premiações de quem enxergava sem poder ver e alguns ossos quebrados. E um filho perdido.

Era março, era abril, era maio,
ninguém sabe que mês era
o que vinha ou nele via:

livros abertos, higienizados
desbotados de álcool 70.

Era junho, era entulho, era além.
Espancado na espinha
respingado de urina
na beira
na rua
no chão.

Vá ao supermercado
homem faminto.
Com arroz, feijão e caviar
leve na sacola o sangue negro
espalhado entre espelhos.

Era além, eram lâmpadas
apagadas eram todas as horas.

Gotas vermelhas
entre olhos e a lente dos óculos
adormecem a cegueira.

Quanto mais esperar formigas
de pólvora atingirem sua liberdade?

Rotina rima
Botina rima
Acabou a poesia.

E, no entanto, Antalfomaí era puro verso, pura palavra. Ele se descobriu palavra a palavra, passo a passo, prisão a prisão. Ele se descobriu outras peles.

Lucas Guimaraens

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1979. É filósofo, poeta, ensaísta e gestor cultural. Autor, entre outros, de Onde (poeira pixel poesia) (2011), Exílio — o lago das incertezas (2018) e Amarrar o corpo na lua (2022).

Rascunho