A literatura da argentina Camila Sosa Villada é um mergulho na realidade, quase sem lugar para o escapismo que muitas vezes pode ser associado à ficção. Por outro lado, seus livros são, ao modo kafkiano, uma martelada na cabeça, um incômodo perpétuo diante das obviedades do cotidiano. Sem pegar carona na onda da autoficção, a escritora transita em suas memórias de mulher trans e na idealização de um mundo que não parece tão fragmentado quanto, verdadeiramente, é.
E a resposta que permite entender o enigma da equação entre a sua literatura e o tudo o que a cerca está na linguagem. Para Villada, por sinal, é a linguagem o poder que dá vida e corpo à interpretação que faz do mundo, pois é ela que materializa os impedimentos e as possibilidades.
Por isso, nesta entrevista exclusiva ao Rascunho, a escritora explica sobre o seu processo criativo e conversa sobre as questões centrais da sua obra.
• Em Tese sobre uma domesticação, você aborda a questão da subserviência das figuras femininas de forma muito particular. Como foi o processo de escrita deste livro para a construção de uma narrativa tão intensa?
Eu o escrevi imediatamente depois de O parque das irmãs magníficas. Foi a partir de um convite do jornal argentino Página 12, para uma coleção de autores “queer”. Escrevi em seis meses, foi intenso, mas acima de tudo porque eu estava vivenciando o feedback das pessoas que leram O parque das irmãs magníficas (esse tipo de feedback ainda acontece). Recebia mensagens nas redes sociais com pena de mim. E odeio que sintam pena de mim. Odeio que o livro tenha provocado o sentimento de pena nos leitores. Uma espécie de compaixão pela realidade das travestis. Então, escrevi apaixonadamente sobre uma travesti que não merecia misericórdia. Que ela estava apenas lutando consigo mesma e com sua ideia de amor, mas também com sua ideia do que é liberdade. Minha inspiração sou eu mesma. Eu me vi nos camarins, na minha época de atriz, os aplausos, os elogios, até alguns prêmios e os teatros lotados e voltando de bicicleta para casa, com as flores que alguns admiradores me presenteavam. A solidão daquela glória, que foi maravilhosa, mas que em algum momento deve ser colocada de lado. Quanto à narrativa intensa, penso em algo como uma vingança ou um feitiço, algo que é sussurrado quase sem respirar.
• Por sinal, vejo uma relação muito próxima entre Tese sobre uma domesticação e o filme Uma mulher fantástica. E essa intersecção das duas obras faz pensar na condição da mulher trans na América Latina. Estamos atrasados em relação à Europa e aos Estados Unidos no que diz respeito a direitos civis e combate ao preconceito?
Não vejo conexão com Uma mulher fantástica. Muito pelo contrário. A atriz consegue tudo sozinha. Um pouco de sorte, mas não é por causa da morte de ninguém que a história começa. Antes de Uma mulher fantástica, fui protagonista de uma minissérie chamada A viúva de Rafael, que era muito parecida com Uma mulher fantástica. Duas travestis que percorrem a história para conquistar uma potência. A atriz é toda a potência que uma pessoa pode conquistar. Por outro lado, os Estados Unidos e a Europa concederam direitos às pessoas trans em seus territórios, mas basta olhar para a história da invasão europeia na América para entender que eles nunca poderão sequer vislumbrar o que é o travestismo latino-americano. Mesmo com seus assassinatos. Estávamos aqui antes de a Niña, a Pinta e Santa Maria. Exigimos direitos, mas exigimos algo mais, que é que nos devolvam o que historicamente nos foi tirado. O conto Cotita de la Encarnación, em Sou uma tola por te querer, poderia ser um exemplo. De qualquer forma, isso não diz respeito à atriz. Porque direitos também têm a ver com classe. Ou seja, os direitos que o Estado não lhe dá, ela obtém por meio de dinheiro.
• A questão trans é central em sua obra. Como você vê a evolução da representação de pessoas trans na literatura e na cultura em geral? E qual o papel da literatura na construção de identidades e na luta por direitos?
Acredito que nos meus livros “a questão trans” é central na medida em que tem a ver com a minha vida. Eu sou travesti. Você ousaria dizer a Vargas Llosa, por exemplo, que a questão cis é central em sua obra? É uma pergunta que pode confundir quem a responde. Sim, meus personagens principais são trans. Quase sempre. Este é o ponto central? Ou o mais importante é o que acontece com eles? Escrevo bons personagens travestis. Sempre. Eu lhes dou palavras, eu lhes dou destaque. Eu não os uso como preenchimento. A questão da representatividade será resolvida quando nós, travestis, formos quem coloque os outros ou a nós mesmas no palco ou nas páginas. Enquanto isso, tudo é conversa fiada e ignorância. Acho que a literatura não tem nenhum papel. Não teve com os genocídios, nem com as guerras, nem com as desigualdades. Os livros foram escritos e seu efeito é muito íntimo e delicado, algo quase imperceptível. De uma ordem muito pessoal. Quantos livros de guerra lemos para testemunhar o massacre em Gaza hoje? Não creio que tenha tanto poder. O que tem poder é a linguagem. Mas os livros são escritos mesmo sem linguagem ou com uma linguagem morta. Se fala uma linguagem morta. É terrível.
• Em A viagem inútil, você faz um relato autobiográfico muito poderoso. Como foi o processo de transformar sua própria história em literatura? E quais os desafios que você enfrentou ao abordar temas tão pessoais e sensíveis?
Era o que eu tinha em mãos. Pediram-me para escrever sobre o meu nascimento como escritora. Eu queria ser sincera. Foi assim que me tornei escritora. Por outro lado, sejamos honestos, todos os escritores transformam suas vidas em literatura. Penso que o desafio é sempre não ofender meus pais.
• A namorada de Sandro é um livro de poemas que mescla o pessoal e o político. Qual é a importância da poesia em sua vida e como ela te ajuda a processar suas experiências e emoções?
A poesia é a maneira mais econômica de dizer muitas coisas. De camuflar-se. De acertar o coração do leitor de uma forma um tanto enganosa. Às vezes, tudo o que você precisa é de um ponto de vista diferente. E isso muda as noções do mundo. Aconteceu comigo com a poesia de Sharon Olds em relação à minha família. Eu só precisava de outro ponto de vista.
• A influência de Pedro Almodóvar em sua obra é evidente. Como você vê o papel do melodrama na literatura e como ele te ajuda a construir suas narrativas?
Cresci assistindo aos filmes de Almodóvar, clandestinamente, sem que meus pais soubessem. Gostaria de saber por que a influência é tão óbvia. Porque da mesma forma que vi clandestinamente os filmes de Pasolini e de Visconti, posso notar uma certa influência neorrealista nos meus livros, mas não de Almodóvar. É um pouco simplista encontrar uma influência como essa na escrita de uma travesti. Também têm falado de Pedro Lemebel. Mas comecei a ler a obra de Lemebel tarde, já crescida e com muita coisa escrita. Quanto ao drama, ao melodrama, ao horror, à tragédia, esses são estatutos que não me interessam mais. Os livros são mais do que isso. O mundo mudou e ainda falamos como no século 20. Minha narrativa se faz, isto é, ela me pede, como um amante, faça isso comigo, me beije aqui, me machuque aqui, me mate agora. Mas estou cega para o processo. Felizmente tenho boas editoras.
• Como você vê a relação entre arte e ativismo? Como a literatura pode ser uma ferramenta de transformação social?
Acho que já respondi isso antes. O ativismo é feito apesar da obra literária. Construir uma obra literária para mudar o mundo me parece um pouco pretensioso.
• Em suas obras, você apresenta personagens femininas trans complexas e multifacetadas. Qual a importância de criar essas representações e como você vê a recepção do público a essas personagens?
Importância, creio que nenhuma. Eu escrevo o que consigo escrever. A recepção é sempre uma espiral, uma pedra de Sísifo, algo que não se pode contornar facilmente. Deveria escrever histórias com personagens cis para ver o que mais acontece além de pensar que é um movimento literário-político?
• A memória é um tema recorrente em seus livros. E a memória de uma pessoa trans é, na maioria dos casos, negligenciada, impossível de ser contada. Como a sua história pode ajudar a contar a história de tantos outros homens e mulheres trans? Quais são os atravessamentos possíveis?
Não conheço nenhuma pessoa trans que tenha negligenciado sua memória. A memória é a alma das pessoas. E não conheço nenhuma pessoa trans que não tenha uma opinião elevada sobre sua alma, seja ela monstruosa ou bela. Não acredito que outros precisem da minha ajuda para contar suas histórias. Para contar uma história, tudo o que você precisa fazer é encontrar alguém que queira ouvi-la. Isso é uma decisão dos leitores, não minha.
• Em suas obras, o corpo é um elemento central na construção da identidade. Como você vê a relação entre corpo e identidade e como essa relação é explorada em sua literatura?
Desisti da palavra identidade. Eu assumo a palavra experiência. Não pode existir uma identidade sem a experiência do corpo desafiando-se, consumindo-se, reivindicando-se, abrindo espaço para si, adoecendo, transformando-se. Por outro lado, a literatura sempre falou sobre corpos. Não é diferente com as escritoras travestis. No entanto, nosso corpo é muito mais visível do que o de qualquer outra pessoa.
• Qual a importância da literatura argentina para você? Quais autores te inspiram e como a literatura argentina te influencia?
Tenho orgulho de pertencer a uma região com escritoras como Maria Negroni, Gabriela Cabezón Cámara, Dolores Reyes, Leila Guerriero, Maria Laura del Castaño, Paulina Cruceño, as irmãs Ocampo, Aurora Venturini, Alfonsina Storni, Mariana Enriquez, Eugenia Almeida, Franco Rivero e tantas outras que não conseguiria nomeá-las todas sem cometer alguma injustiça. Escrever na Argentina é escrever contra furacões e inundações. Talvez um dia entenderemos por que escolhemos essa profissão de mártires narcisistas, quando nos sentiríamos mais confortáveis vivendo de nossas hortas.
• A Argentina está passando por algo que o Brasil já atravessou: um governo autoritário e negligente com as minorias e tudo aquilo que não é ideário da extrema direita. Como você está digerindo esse cenário? O que você faz pra não se sentir sufocada diante desse abismo?
Aquele foi o mundo em que cresci. A extrema direita não traz nada de novo, tampouco o capitalismo. É uma proposta ultrapassada que ressurge de tempos em tempos e nos obriga a sermos inteligentes, a cuidar mais de nós mesmos, a nos proteger mais. Mas o que eles propõem não é nenhuma novidade. Este é o mundo. Abate. Alguém tomando o que pertence aos outros, seus direitos, suas terras, suas economias, suas vidas. Este abismo não me sufoca. Estou apenas criando coragem para pular.