Para existirem as democracias, é preciso uma classe média numerosa e consolidada, que se mostre equilibrada e sensata nos momentos críticos que o país venha a atravessar. Essa mesma classe média, em geral, é composta por pessoas escolarizadas, que admiram e respeitam as artes e a cultura acadêmica. Atualmente, em muitas regiões do mundo, observa-se o crescimento da extrema direita. A causa desse crescimento talvez se deva ao empobrecimento da classe média, tornando a formação cultural do cidadão bastante precária. Vê-se pelo mundo inteiro o fracasso escolar, que reflete a decadência dos valores inerentes a uma classe que serviu de pilar para a sustentação dos regimes democráticos. Posições extremas, tanto à direita quanto à esquerda, não são posturas oriundas de reflexão, mas de necessidades imediatas de pessoas que não possuem o mínimo para sobreviver. Os líderes de partidos extremistas, aproveitando-se dessa precariedade, sugerem soluções fáceis que pessoas escolarizadas, possuidoras de certa cultura acadêmica, sabem ser irrealizáveis.
Como exemplo, pode-se citar a questão da migração africana ou asiática nos países europeus. Os líderes, da extrema direita em geral, afirmam que, caso a imigração seja interditada ou os imigrantes expulsos, a condição do povo local melhorará; ainda preconizam a valorização do habitante de raiz local, da identidade nacional, etc. O que seria a identidade nacional francesa, alemã ou italiana num mundo tão miscigenado como o atual? Difícil responder. Mas tais dirigentes insistem nessas falácias.
Outro ponto é a justiça. A classe média, de modo geral, respeita o aparelho judiciário do seu país. No entanto, pessoas de baixa ou pouca escolarização não têm a mesma opinião. Em geral, são favoráveis a que se faça justiça rapidamente, muitas vezes sem julgamento, a execuções sumárias e a penas extremamente violentas.
A sociedade em que vivemos será mais justa (mas não sem problemas) a partir do momento em que a escolarização avançar. O que se observa atualmente é que, diante de uma crise econômica oriunda da falta de uma filosofia que prime pelo fim de tamanha desigualdade, atitudes extremistas, bem exploradas, levam avante os partidos de extrema direita.
Talvez algumas pessoas não vejam relação entre tais reflexões e o romance Rosa & Violeta, de Clara Corleone. No entanto, levanto as questões acima porque, logo no início do romance, há uma instituição, muito dilapidada e, muitas vezes, associada às forças fora da lei: a polícia.
Eis o início do livro:
Naquela manhã, quando Moreira saiu de casa, ele achava que era impossível o dia ficar pior.
“Onde eu estava com a cabeça quando me casei com um policialzinho de merda?”
Aqui, quem levanta a questão é, logicamente, a mulher de um policial, mas tal adjetivo poderia ser proferido por outras pessoas ao longo da narrativa. É certo que a imagem do homem isolado, travestido em policial, não vá necessariamente refletir toda a instituição, mas a delegacia policial está presente em grande parte da narrativa, sobretudo pelo fato de não ter desvendado um crime que envolveu o assassinato de uma adolescente e de seu namorado.
Sociedade contemporânea
Além dessa peripécia inicial, o livro é rico em questões da sociedade contemporânea. Em relação às instituições, a família ocupa um local proeminente. Os valores familiares são questionados e dissecados um a um, por meio do comportamento do pai e da mãe das duas personagens principais. Outro ponto importante é a escola. Já que falo em escolarização como solução para os problemas contemporâneos, incluindo a desigualdade, qual é o papel dessa instituição na sociedade? As relações pessoais entre jovens, entre pessoas “maduras” e jovens, e mesmo os sonhos e ideais destes são discutidos à exaustão. Muitas vezes, nos deparamos com alguém que, pela inteligência e habilidade, anuncia um futuro brilhante, mas um acontecimento imprevisto faz tudo desabar.
A autora utiliza um elemento inicial sui generis, que desencadeia a narrativa e as consequentes peripécias: trata-se de uma mulher supostamente embriagada, dormindo em um automóvel no acostamento de uma rodovia. Daqui em diante, desenvolve-se a narrativa e toda a reflexão sobre os valores de uma sociedade quase em decomposição, caso a analisemos a partir de princípios conservadores.
Talvez o problema maior seja esse, e a solução para muito do que é visto como fracasso na época atual esteja na necessidade de se fazer uma revisão nos valores pretensamente morais e sociais de uma civilização.
A autora usa e abusa de uma estrutura múltipla e polifônica num romance dividido em cinco partes, trazendo à baila vários narradores e focos narrativos, cada um ressaltando um tipo de problema relativo à própria vida pessoal, profissional ou de classe social.
Não sei se poderia dizer que o livro peca em algum aspecto, mas o que talvez se pudesse criticar seriam os excessos, pois tenta dar conta de muitas questões. Além das instituições como polícia, escola (aqui cabe a relação entre os alunos e a drástica relação entre professor e aluno), família, perdas, homossexualidade, arte e literatura, incluindo o teatro. Há ainda o problema das drogas, do alcoolismo e do culto à beleza feminina.
No final, devido à necessidade da trama, a solução encontrada pela autora é um desfecho de literatura policial, que parece se sobrepor aos problemas extremamente complexos da natureza humana.
O desprezo pela polícia ou pelo policial, relatado pela personagem feminina no começo do romance, se não é resolvido, apresenta o que se discute no início: uma solução não recomendada, fora dos parâmetros civilizatórios, para um caso de fracasso policial. Funciona como se o fracasso de um caso não resolvido pela justiça fosse substituído por uma solução fácil, fragilizando ainda mais a instituição. Ao lado disso, o relacionamento entre mãe e filha, após inúmeras perdas, parece se apaziguar ou mesmo se resolver.
A vida é carregada de tragédias; a literatura não tem capacidade de consertar as coisas.