Pombajiras e peitões

Em ritmo de romance policial, "A extraordinária Zona Norte" descortina um mundo masculino em torno do jogo do bicho, terreiros e bordéis
Alberto Mussa, autor de “A extraordinária Zona Norte”
01/02/2025

Três amigos, Juba, Turquesa e Escóte. Os três policiais, no Rio de Janeiro da década de 1960. Conhecem-se desde a infância:

(…) estudaram nos mesmos colégios; jogaram as mesmas peladas; soltaram os mesmos balões; cortaram pipas com o mesmo cerol. Embora não torcessem pelo mesmo time, iam juntos ao Maracanã. Rapazes, passaram a frequentar os mesmos sambas. Dividiram, muitas vezes, as mesmas mulheres. E decidiram cursar juntos a Academia de Polícia.

Em 1966, Juba desaparece numa chacina. Uma ossada aparece, oito anos depois. Turquesa decide investigar e vingar o amigo.

Turquesa chama Domício, primo de Juba, investigador particular que gosta de ler, para ajudar na sondagem. Turquesa é delegado e bate na mulher de cinta, “um policial honesto, no sentido que tinha essa palavra nos anos 70”. Domício, sem pai, agregado na casa do padrinho, é uma versão atenuada dessa masculinidade. Come pelas bordas, aposta no jogo do bicho inspirado nos livros que lê no ônibus. A investigação sobre a cena do crime — a chacina num barracão de rinha de galo, onde se reuniam compositores de uma escola de samba — descortina um mundo de jogo do bicho, terreiros, bordéis, e dinâmicas familiares ao estilo Nelson Rodrigues.

A sinopse acima sugere um romance policial de submundo, com os elementos clássicos do gênero. Mas a narração não tem a fluidez dos gêneros populares. O narrador em comando abre logo de início sete temas, chamados de “sete capítulos cíclicos do romance”. São várias linhas narrativas que se desenvolverão, em idas e vindas no tempo, com destaque para as décadas de 1960 e 1970, retrocedendo às vezes até o início do século 16. Na primeira metade do livro, mais de quarenta personagens são apresentados em detalhes e teias de relações, sem que o leitor consiga identificar qual é mais importante para a trama. O narrador joga as cenas pra lá e pra cá, em frente e atrás no tempo, deixando o leitor impotente em seu desejo de entender a narrativa passo a passo. O controle está na mão do narrador: para apreciar a leitura, é preciso se entregar, como na expressão “relaxa e goza”.

Leitores que conhecem as obras anteriores de Alberto Mussa poderão reconhecer esse autor-narrador que manipula com certa ironia o jogo da narração. Ele se apresenta logo no prólogo, chamado de Vestíbulo:

Concebi A extraordinária Zona Norte como um romance popular e etnocêntrico, talvez intraduzível, na forma de uma narrativa elusivamente autobiográfica, passada nos lugares que compõem meu mapa-múndi afetivo.

Importante aqui é o advérbio “elusivamente”: esquivo, zombeteiro, impreciso. Reconheceremos, na narrativa, cenários que remetem à biografia do autor: o bairro, a biblioteca, o estado natal da matriarca, o quartinho perto da garagem, e até a rua onde fica o casarão da família. Porém esse “eu” que comanda a história não é o “eu” Alberto Mussa, que assina o livro; é um “eu” que existe apenas no romance, o grande manipulador dos destinos. O prólogo se encerra com uma misteriosa frase: “O assassino, certamente, também leu aqueles livros”. Após a leitura, nos perguntamos se tal assassino seria o autor-narrador, que pode levar à fortuna ou à ruína os personagens que criou.

Tom entre sóbrio e cômico
Alberto Mussa muitas vezes é elogiado como “um dos melhores e mais originais escritores de sua geração”. De fato, a prosa segura nos apresenta páginas marcantes, como a narração de uma gira de umbanda, a perseguição ao criminoso Cara de Cavalo, o movimento dos planetas sobre a terra:

Nesses subterrâneos do universo, onde o frio é ingente e a escuridão, pesada, rangiam os ferros das porteiras que represam as almas devolutas. Em pouco tempo soaria a Hora Grande das Pomba-Giras, entre as quais se encontrava, desvairada, a própria Hécate.

De nada disso se sabia, ou se intuía, no Andaraí.

Ao mesmo tempo, outras cenas têm uma visualidade de pornochanchada, meio farsesca:

A perua segue, em velocidade moderada. E, na altura do Colégio Pedro II, a cena se repete: a mulher fica de joelhos sobre o banco, lateralmente em relação ao motorista, e — com a luz do teto acesa — abaixa as alças do vestido, deixando à mostra dois esplêndidos peitões: rijos e bicudos.

O tom oscila entre o sóbrio e o cômico, e essa pode ser uma chave para interpretar as forças em jogo no romance.

A narrativa se afunila na metade do livro, a partir da página 99. Os capítulos dão mais foco à investigação da chacina — quem estava no local do crime, de onde vieram os tiros, quem viu o quê — e, como é usual no gênero policial, a leitura se acelera, pela curiosidade de se descobrir as respostas. Os suspeitos e os motivos vão ficando mais claros, e o embaralhamento inicial vai se desfazendo. É então que a relação entre os três amigos — Juba, Turquesa e Escóte — vai se tornando central para o desfecho da trama.

Temos um bromance: três homens ligados emocionalmente de forma intensa, numa fusão de companheirismo e competição. Juba, o mais exuberante entre os três, será o ponto alto dessa masculinidade abusiva, e cairá vítima de sua própria força de macho. As Pombajiras que se manifestam ao longo da trama são a manifestação da força ancestral feminina que exerce sua vingança: “Não gosto de homem que maltrata mulher!”.

Incômodo
Esse é provavelmente o aspecto mais incômodo do romance. As forças espirituais femininas observam a ação terrena masculina: ironizam, assustam, mas não têm poder real. Os crimes são cometidos pelos homens, por honra e poder. Apesar dos desmandos, narração sóbria muitas vezes gera empatia com os personagens violentos.

Esse ciclo de traições e vinganças, um agir cego, sem contato com a interioridade, é anunciado logo nas primeiras páginas do romance: “ninguém conhece a si mesmo”.

No prólogo, tal visão de mundo é relacionada à arte do romance:

(…) o romance não analisa personagens, não trata exatamente de indivíduos. Eles são, aqui, representantes circunstanciais da espécie humana.

Numa entrevista à revista Topoi, em 2016, o autor explora ideia semelhante: “É uma pretensão muito grande para o narrador fazer uma análise psicológica, porque é impenetrável o que se passa dentro de uma pessoa. O que você conhece dos outros são simplesmente os fatos que são expostos. Você não conhece o interior de ninguém. Então, a literatura psicológica, particularmente, é absurda. Não tem base, não tem fundamento”.

Um narrador dominante que não conhece o interior de ninguém. Personagens tratados como representantes circunstanciais. Também o leitor é passivo nesse jogo, comandado pelo narrador.

Esta resenha evitará relacionar o masculino à dificuldade de lidar com a subjetividade. No jargão contemporâneo, não há uma masculinidade, mas “masculinidades”. Já a proposição “ninguém conhece a si mesmo” soa antiquada, em nossa época voltada à investigação das identidades, ao autoconhecimento e aos cuidados com a saúde mental. Porém, o romance insiste na polaridade entre Exus e Pombajiras, entidades masculinas e femininas.

O livro traz algumas linhas intrigantes sobre “as masculinidades”. Ao selar seu acordo de investigação, Domício e Turquesa estão num estádio de futebol, assistindo a um jogo do Flamengo. O capítulo se encerra com um gol de Zico:

É o êxtase. Toda fúria, toda barbárie se dissipam diante da beleza, ainda que por um momento. Aquelas masculinidades, pelo menos, viveram isso. Nem tudo foi completamente em vão.

É possível que certo tipo de leitor encontre em A extraordinária Zona Norte um êxtase parecido. Talvez, para algumas masculinidades, a barbárie narrada se dissipe diante da beleza.

Porém há leitores que veem na “literatura psicológica” algum fundamento. Para esses, a leitura deste romance terá sido em vão.

A extraordinária Zona Norte
Alberto Mussa
Todavia
232 págs.
Alberto Mussa
Romancista, contista e ensaísta, Alberto Mussa nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961. Seu romance O senhor do lado esquerdo (2011) recebeu o prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2015, recebe o Prêmio Oceanos pelo romance A primeira história do mundo. Seus livros já foram publicados em dezenove países.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho