Em agosto do ano passado, um dos mais reconhecidos escritores latino-americanos veio a São Paulo negociar a adaptação de um filme e de uma peça teatral baseados em obras suas, aproveitando para lançar a edição brasileira de seu último romance — até aquele momento —, As pontes de Königsberg (Casa da Palavra). Em parte por causa da chuva, em parte por causa da concorrência desleal de um jogo decisivo do Corinthians naquele mesmo horário, sua palestra na Biblioteca Latino-Americana não chegou a lotar o auditório.
Poucos meses depois, David Toscana lançava no MĂ©xico o romance que já Ă© considerado sua obra-prima, La ciudad que el diablo se llevĂł (A cidade que o diabo levou), mas continua nĂŁo recebendo nossa atenção devida. AtĂ© que, a alguns milhares de quilĂ´metros daqui, bastou que dissesse uma mera frase para se tornar no Brasil “a notĂcia” do Festival de Guadalajara — muito embora houvesse mais de dez autores brasileiros participando. O autor, que Ă© de Monterrey, MĂ©xico, mas vive em VarsĂłvia, PolĂ´nia, dividiu mesa com Milton Hatoum e, a certa altura, perguntou-lhe como conseguia se concentrar para escrever em um paĂs com tantas praias e mulheres bonitas.
Hatoum posteriormente declarou publicamente como a afirmação representava o olhar exótico norte-americano e hispano-americano sobre a literatura brasileira. No entanto, a literatura de Toscana sempre se caracterizou por não temer a associação equivocada com o realismo mágico e, através de enredos sempre lúdicos, cunhar um estilo chamado “realismo desvairado”. Além disso, o autor também traduzirá para o espanhol algumas obras de Machado de Assis.
Na entrevista a seguir, o autor comenta o incidente da Feira de Guadalajara, o equĂvoco de se pensar que um romancista possa abordar qualquer assunto hoje, a importância de se pensar o romance como uma sucessĂŁo de frases ricas, dentre outros temas.
• O senhor Ă© um dos poucos autores latino-americanos pĂłs-boom que nĂŁo buscaram uma oposição direta com o realismo mágico, e sim algo mais sutil. Sobre o incidente do Festival de Guadalajara, existe uma privação por parte de autores latino-americanos de explorar suas raĂzes lĂşdicas por medo de serem vistos como exĂłticos em paĂses de primeiro mundo?
É verdade que o Brasil se encontra na periferia cultural, mas Ă© o que acontece com a grande maioria dos paĂses. Nem sequer a França está mais no centro. A cultura se encontra na periferia. E quanto ao realismo mágico… Muitos autores o tomaram como uma peste e se puseram tĂŁo distantes da tradição que terminaram metidos em uma moda passageira — e nĂŁo foram poucos os escritores interessantes que se estropiaram ao tratar de seguir essa moda. Leio muito mais clássicos que contemporâneos. Meu coração está no Romantismo, no sĂ©culo de ouro espanhol. Talvez tenha os mesmos avĂłs que o realismo mágico, mas nĂŁo sou filho dele. Por isso, nĂŁo tenho medo da imaginação — ainda que nĂŁo goste da magia —, nem temo o exĂłtico, porque o exotismo está nos olhos dos outros.Â
• Pensando, então, em booms, o que o senhor pensa a respeito e o quanto lhe afeta que a obra de um chileno tenha sido considerada o melhor romance mexicano de todos os tempos?
Com [Roberto] Bolaño ocorre algo estranho. Publicamente, todos o elogiam. Mas, em privado, há uma maioria que o considera chato, falso, pretensioso. Suponho que seja mais alimento para a Academia do que para a alma.Â
• Tanto em As pontes de Königsberg quanto em La ciudad que el diablo se llevó,o senhor põe em questão a função da literatura em tempos de guerra. No entanto, no cenário contemporâneo existe uma liberdade muito maior para se produzir uma literatura sem qualquer relação direta com uma função pragmática. Pode-se dizer que existe um jogo em seus livros de escrever estritamente sobre tempos de repressão sob uma perspectiva livre. Como aprendemos com Menard, um romance não é o mesmo escrito em 1945 e 2012. Portanto, de que forma o contexto cultural do século 21 entra em sua última obra?
Gosto da sua pergunta, pois Ă© um tema em que tenho pensado muito sem chegar a uma resposta. Sei que hoje somos livres para escrever qualquer coisa, mas vamos tomar todas as liberdades? AlĂ©m disso, por mais que leia livros, memĂłrias e jornais dos anos 1940, nĂŁo posso evitar ser um homem contemporâneo, que vĂŞ o mundo desde a perspectiva do sĂ©culo 21. Isto soa lĂłgico, mas o que Ă© essa perspectiva contemporânea? NĂŁo sei. AlĂ©m disso, se há uma sensibilidade contemporânea, onde está o universal? Há coisas que mudaram, e uso como exemplo a religiĂŁo. É difĂcil que um autor contemporâneo dĂŞ a seus personagens a relação com Deus que tinha Dom Quixote ou os patriarcas Buddenbrook. Como leitores, toleramos e admitimos tudo isso com autores do passado, mas nos parece uma aberração que hoje alguĂ©m escreva assim. EntĂŁo, talvez nĂŁo sejamos tĂŁo livres, pois alguns temas — como o da culpa espiritual, o amor virginal e o respeito aos padres — estĂŁo em desuso, ainda que escrevamos sobre Ă©pocas em que tudo isso imperava. SĂł os escritores puritanos gringos seguem fazendo dramalhões por um divĂłrcio ou uma infidelidade.Â
• Que desafios essa liberdade de criação oferece ao escritor de hoje e em que medida o dilema da função ainda existe?
A aparente força de ser livre nos debilita de reconhecer o valor do silĂŞncio. Se Flaubert escrevesse hoje, talvez nos desse um romance muito mais gráfico. SaberĂamos sobre os gemidos de Emma, a textura de sua pele, a cor de seus mamilos. NĂŁo por isso terĂamos um romance melhor. As estrelas de cinema do passado eram fascinantes porque eram misteriosas. Hoje, todas se confessam diante das câmeras e dos microfones. Assim nĂŁo há fascĂnio. O melhor romancista tem de ser o que bem intui o que deve dizer e o que deve calar.Â
• O senhor decidiu fazer um romance sobre as mortes em Varsóvia, e escreveu uma celebração à vida. Ambientou-a na 2ª Guerra, mas retratou apenas o cotidiano de quem não estava no exército. Definiu protagonistas que representariam, por suas profissões, o clero, o comércio e os serviços funerários, porém, colocou-os todos para se embebedar continuamente.
Sempre gostei de tomar temas desgastados — as tabernas, o circo, a vida rural no MĂ©xico — e demonstrar que ainda há neles muito o que dizer. O que se pode falar sobre a 2ÂŞ Guerra Mundial? Talvez seja o perĂodo histĂłrico sobre o qual mais se escreveu. Na literatura comercial Ă© sempre igual: temos vilões e vĂtimas e temos de mostrar o quĂŁo malvados sĂŁo os malvados e quando devemos nos compadecer das vĂtimas. Preferi falar de quatro bĂŞbados sem heroĂsmos militares e ver que mesmo uma existĂŞncia sem maiores atribuições Ă© melhor do que o nĂŁo ser, Ă© melhor do que o nada. Lá no fundo estĂŁo as tragĂ©dias de sempre, mas o ponto de vista Ă© festivo, alcoĂłlico e poĂ©tico.
• Entre seus personagens, há uma enfermeira que amputa sem razão seus pacientes e um escritor que busca seu romance perdido em hospitais como quem procura um ente ferido. E, apesar de tudo, são personagens cativantes e complexos. O quanto há de teatral e o quanto há de verossimilhante em seus personagens? Como você os compararia aos de Borges e aos de Flaubert?
Quando penso em personagens, sempre tenho em mente os escritores russos, que vĂŁo desde a profundidade de TolstĂłi atĂ© a pincelada de Tchekhov. TosltĂłi parece nos mostrar que, em uma novela, manda o narrador. Ele nos diz que Anna KariĂŞnina Ă© fascinante, ainda que ela se mostre uma mulher um pouco menos do que insuportável. Ao fim, a maioria dos leitores se encontra fascinado. O tema dos personagens Ă© imenso, mas basta dizer ao leitor que nĂŁo cabe ter juĂzos morais sobre um personagem, pois, no papel, uma pessoa que desprezarĂamos em carne e osso pode nos seduzir.Â
• Sua escrita combina dois elementos que dificilmente se encontram juntos: um universo de personagens e situações de tonalidades lĂşdicas e excĂŞntricas e um cuidado flaubertiano com o texto, frase a frase. Que tipo de percepção se depreende dessa combinação quando aplicada a La ciudad…?
Um bom romance deve ser uma sucessĂŁo de frases belas, efetivas, reveladoras, necessárias, citáveis. Trabalho com escritores jovens, e Ă© difĂcil que captem a importância da linguagem como algo alĂ©m de uma mera ferramenta para contar uma histĂłria. Para muitos, a linguagem Ă© Ăştil, nĂŁo bela. Dom Quixote me ensinou que com um toque de loucura a linguagem já nĂŁo obedece Ă lĂłgica, mas Ă beleza. Por isso, preciso escrever sobre personagens com algum tipo de transtorno. Confundem-me certos autores realistas que põem seus personagens falando tal qual o homem da esquina, como se o homem da esquina estivesse fazendo literatura. Mais me agradam os romances cheios de artifĂcios.Â
• Seu apuro textual tambĂ©m parece se dever a influĂŞncias de autores mais antigos, como Cervantes e os dramaturgos da era de ouro do teatro espanhol. Raramente vejo seu estilo ser relacionado a escritores mais recentes. No seu Ăşltimo livro, tambĂ©m há um hilário jogo paratextual em que, no lugar de sua foto, há uma ilustração Ă moda das pinturas renascentistas em que se veste de arquiteto da Toscana (o que reitera a questĂŁo de seu apuro lingĂĽĂstico). O senhor se sente deslocado como autor do sĂ©culo 21?
O melhor espanhol foi escrito no sĂ©culo de ouro. É lĂłgico que os tomei como mestres. Leio muito teatro e nisso aprendo ritmo. AlĂ©m do mais, meus personagens tĂŞm muito de teatral; falam com essa atitude discursiva que se dirige mais ao auditĂłrio do que aos prĂłprios personagens. Em geral, o espectador do teatro tem uma atitude mais artĂstica que o leitor — e nem vamos mencionar aquele que vĂŞ um filme. Este Ăşltimo espera que tudo se adapte Ă realidade: uma explosĂŁo tem de parecer uma explosĂŁo. Para o leitor, basta a palavra “explosĂŁo” para imaginá-la. O espectador de teatro aceita que alguĂ©m jogue para o alto um punhado de talco para ver a explosĂŁo. Mas voltando a sua pergunta… Em relação Ă s artes, o perĂodo que contemplo com nostalgia Ă© o que narra Stefan Zweig em O mundo de ontem.
• Que autores contemporâneos o senhor admira?
Entre os mexicanos, admiro Mario Bellatin, Daniel Sada e Eduardo Antonio Parra. No mundo, poderia fazer uma longa lista, mas vou fazer melhor: te digo qual é meu preferido: Ismail Kadaré.
• Existe na obra de autores como Franz Kafka, Witold Gombrowicz, Milan Kundera e, mais recentemente, PĂ©ter Esterházy, um tratamento cĂ´mico — ou mesmo erĂłtico — de temáticas como a morte, a violĂŞncia e a repressĂŁo, a que chamam de humor centro-europeu. O senhor ambientou seus dois Ăşltimos romances na Europa Central, tendo escrito La ciudad… em VarsĂłvia, lendo autores poloneses e, a meu ver, aderindo mais do que nunca a este humor.
Sempre fui seduzido pela literatura russa, centro-europĂ©ia, eslava. E com isso me veio o desejo de viver em um desses paĂses; pensei que seria a Croácia, mas, no fim das contas, foi o acaso que me trouxe Ă PolĂ´nia, um paĂs que já admirava por considerá-lo o mais teimoso da Europa e que me seduziu com sua literatura. Reymont, Prus, Bashevis Singer, Gombrowicz, Schulz, Andrzejewski, Huelle, Chwin e, claro, seus poetas. Desde meu primeiro dia em VarsĂłvia notei as pegadas da guerra. Passaram-se setenta anos, mas a cidade ainda destila esse passado. Foi inevitável aterrissar nessa Ă©poca para falar do que agora Ă© minha cidade. E, ainda que soe pouco literário, o que me deu o tom da novela foi um tango polaco chamado Upić siÄ™ warto, ou seja, “embebedar-se vale a pena”.Â
• Imre Kertész escreve em seu romance Liquidação —sobre um dramaturgo nos anos 1990, nascido em um campo de concentração da 2ª guerra — que o Kitsch é o único gênero que resta para literatura. O que pensa desta afirmação?
Sobre o kitsch? Certamente KertĂ©sz estava criticando ao cinema por converter o holocausto em algo kitsch. Ele Ă© quem melhor tratou do holocausto porque soube vĂŞ-lo com distanciamento, sem paixões excessivas, com uma volta a mais do parafuso; como se quisesse dividi-lo sem acertar contas com o passado. Muito superior a Primo Levi ou Tadeusz Borowski.Â
• Em La ciudad… há um romancista cuja a obra foi perdida e da qual ele lembra somente de algumas poucas partes. Seu romance, por sua vez, traz uma estrutura deformada, atravĂ©s de episĂłdios que se sucedem sem jamais estabelecer os pontos convencionais de uma trama — a apresentação, o problema, o clĂmax, o desfecho —, o que, em entrevista, o senhor já comparou Ă forma de uma mĂşsica que se ouve por puro prazer, e nĂŁo expectativa de um desfecho. TambĂ©m há uma cena em que uma histĂłria se interrompe no meio, porĂ©m, um de seus protagonistas compreende que ela nĂŁo havia sido interrompida, mas, na verdade, terminara. O que representa esta transgressĂŁo Ă narrativa de modelo mais clássico, cujas peças teoricamente se encaixam perfeitamente?
Sancho Pança interrompe uma histĂłria por causa de algumas cabras. Há muitas histĂłrias em Tia JĂşlia e o escrivinhador que nĂŁo se completam. Em Guerra e paz,temos dezenas de personagens cujo destino desconhecemos. Mas isto nĂŁo significa que o romance nĂŁo seja redondo, apenas que trata tambĂ©m da impossibilidade de se conhecer certas coisas. Imaginemos um romance policial em que o detetive nĂŁo apanha o assassino. NĂŁo agradaria muitos leitores, mas seria um romance sobre o fracasso de um detetive. Os romances nĂŁo devem chegar ao final quando se esgota a histĂłria, mas quando se abarca o assunto, se conclui com a intenção estĂ©tica. O fim se reconhece da mesma forma que na mĂşsica. Percebemos quando algo se estende mais do que o devido ou quando nĂŁo se completa. Se escutamos pela primeira vez o movimento de uma sinfonia e este Ă© reproduzido pela metade, nos damos conta de que algo foi interrompido. O mesmo vale para o romance em que faltam as Ăşltimas páginas. Em uma novela redonda, o final inevitável se capta ainda que haja muitos personagens sobre quem nĂŁo sabemos mais. É um final estĂ©tico, harmĂ´nico, pois a histĂłria pode continuar, e talvez cada fim de romance possa ser o inĂcio de outro. Em A montanha mágica, Thomas Mann, a respeito de Hans Castorp, diz: “Havia passado quatro semestres no PolitĂ©cnico de Danzig”. Oitenta anos depois, o romancista polonĂŞs PaweĹ‚ Huelle escreveu uma novela intitulada Castorp, em que narra esses quatro semestres.Â
• Já que mencionou Bellatin, ele tambĂ©m transgride esse modelo. No caso, atravĂ©s da fragmentação, da concisĂŁo, dos parágrafos isolados em uma página. E tambĂ©m há em La ciudad… parágrafos isolados nos capĂtulos mais curtos, dentre os quais alguns de menos de quatro linhas. Onde está a diferença deste procedimento na obra dos dois?
Ambos tratamos de fazer difusa a distância entre a prosa e a poesia. Ele se voltou para o minimalismo, com influĂŞncia oriental. “Haikaizou” a prosa. Como um cultivador de bonsais dá mais importância aos galhos do que ao folhado. Sabe que um relato, antes de tudo, deve ser belo.Â
• Sobretudo em As pontes…, o senhor se debruça sobre as curiosas ligações que trazem coisas teoricamente sem relação. No entanto, alĂ©m do gosto pelas curiosidades permanecerem em La ciudad…, encontra-se um bocado de sĂmbolos, como as profissões dos personagens, sem a pretensĂŁo de formar um conjunto perfeito. De que modo funciona o cosmo de seu universo ficcional? Sob que leis ele Ă© regido? O quanto há de casual e o quanto há de calculado?
Em As pontes de Königsberg, queria fazer vários jogos: que os personagens se convertessem em outros personagens, a histĂłria em outra histĂłria, a geografia em outra, o tempo em outro. Todos a partir de um capricho da lĂngua: Königsberg quase significa Monterrey. Mas as palavras equivalentes nĂŁo nos dĂŁo cidades equivalentes. Nunca saberei quanto há de casual e calculado. O acaso na vida Ă© um tema que me apaixona, e tenho tratado dele em alguns romances. Quando escolho um personagem nĂŁo posso ter certeza de tĂŞ-lo escolhido certo, o contrário Ă© mera ilusĂŁo. Por que um coveiro, e nĂŁo um mĂ©dico? Por que um padre, e nĂŁo um soldado? Por que um contorcionista, e nĂŁo um palhaço? Obviamente, trabalhei com personagens que nĂŁo deram resultado e, entĂŁo, tive de tirá-los de cena e recomeçar o romance.Â
• O que tinha em mente ao escrever em La ciudad…: “(…) pelas casas e pelos burburinhos falariam daquele gĂŞnio desconhecido que escreveu a mais bela obra que ninguĂ©m jamais chegou a ler”?
Tinha em mente Bruno Schulz. Um nazista o assassinou durante a guerra. Schulz tinha terminado um romance intitulado Messias e nĂŁo se sabe onde ele foi parar. Certamente, Ă© uma obra-prima que nunca ninguĂ©m chegou a ler.Â
• Faça, por fim, uma pergunta a si mesmo: aquela que nunca lhe fazem, apesar de sempre a esperar.
David, que manuscrito teria gostado de roubar e fazê-lo passar por um livro seu? O general do exército morto, de Ismael Kadaré.