(…) E nós, ali, a assistir ao espectáculo em tempo real/(…)
a segurar cadáveres de rosto esquálido/
com as mesmas mãos que levam tiras de milho frito à boca (…)
Assistimos impávidos, autômatos, o que nos chega pelos meios de informação e depois, quando acaba a diversão do horário nobre — que atualmente é a qualquer hora, o celular é a prova da nossa conexão —, anestesiamo-nos um pouco mais antes de, bêbados de écrans, pensarmos que acordaremos para um amanhã mais novo, diferentes.
A mudança sempre está no amanhã, apesar de repetirmos capitalisticamente que não deixemos para amanhã o que pode ser feito hoje. O futuro virá, vem sempre, e nós, seres do passado, acreditamos que temos um presente ideal, pois a crítica construtiva já a fizemos num post das redes sociais, ou — no lado oposto — nos gabinetes de ódio, e da mentira, da desinformação.
Dia após dia, o Mundo é esse espetáculo, que nos passa como relâmpagos fugazes pela visão. Não há tempo para pensar, refletir com dialética as sombras que nos chegam da parede em frente aos olhos. A caverna de Platão nunca se fez tão próxima do nosso conforto cotidiano.
“Nós que estamos bem, temos casa, comida, estamos confortavelmente reunidos em família, e no fundo não nos falta nada (…) olhamos para a televisão, nas suas guerras diárias pela audiência, as tragédias do dia, e constatamos a notícia insensível; a dor do outro é constantemente banalizada.” É este o retrato registado pela escritora Josefa de Maltezinho.
A realidade é para ela, na verdade, um imenso filme (mal filme), com personagens boas, de um lado (onde nos inserimos; assim queremos acreditar), e as outras que mudam de cara conforme o enredo geoestratégico, e o que sobra, é a impotência frente às notícias, sem nada poder fazer pela dor do outro, “e desta forma, desliga-se a televisão e pronto desliga-se a consciência”.
Na verdade, o buraco da nossa rua continua tendo mais importância do que as vozes de dor trazidas pelos ventos das guerras ou outras tragédias. E por isso, a poesia (a escrita), evidencia Josefa, é esta forma de desabafo, de alguma terapia, e que carrega no seu âmago a esperança de que a palavra possa despertar consciências; que ela possa cumprir a real e solidária globalização, pois o nosso fado, quer se queira ou não, é sermos transnacionais. Não há soluções para o Mundo excluindo o outro.
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