O crânio de Castelao (3)

Leia o capítulo 3 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/03/2013

Capítulo 3

P. segurou pelas têmporas a cabeça daquela reencarnação de Sandra Bullock e aproximou-lhe os lábios. Ela fechou os olhos como quem dobra um leque com um código secreto. Ele beijou-a. A sua boca sabia a rebuçados menthol de Hotmint com aditamento de cravo de Zanzíbar. Os caramelos dos que mais gostava. Ela retorceu-se-lhe na boca e a língua dele ficou pressa na vertigem de uma glote que o arrastava para o esófago. Quis desprender-se, mas a cabeça dela tinha-se ido descarnando e o que havia entre as mãos era um crânio limpo, sem continuidade possível em corpo nenhum, e o que lhe sugava a língua não era uma glote cobiçosa mas a profundidade negra de umas mandíbulas que pronunciavam a palavra morte como se recitassem um feitiço. P. berrou e acordou com sobressalto. O nome da filha do professor F. escapou-se-lhe como se a voz que dissesse “Elva” viesse ainda do sonho e parte do seu corpo estivesse ancorado nele. “Elva”, repetiu. Surpreendeu-se de ter chegado tão facilmente à conclusão de que a moça de Bonaval e a mulher do seu sonho eram a filha do professor F.

Estava sobre o leito da Pensão Universal e tinha a camisa Versace azul — 20.000 pesetas numa boutique — empapada de suor. Adormecera sem tirar mesmo a americana de Armani, que se enrugara como uma rodela pelas convulsões do sonho, e as calças, em sintonia com a americana, tinham um aspecto desalinhado. Tentou refazer as recordações, mas estas deslocavam-se em todas direcções, como um feixe de luz decomposta em reflexos irisados. Apenas o cadáver da ratazana que esmagara na estrada lhe resultava facilmente reconhecível. O resto era incerto e, ao tempo, ressesso. Enquanto se barbeava diante do espelho riscado, a cena pareceu-lhe já vivida. Quando tinha chegado à Pensão Universal? Ontem? Hoje? Há uma hora? Onde começara o seu sonho?

As perguntas saíram-lhe ao passo da sua Gillette Mach 3 pelo ângulo das queixadas e desconcertou-o a ausência de respostas lógicas. Imaginou fios que puxassem da madeixa e, de repente, com a espuma ainda no rosto, correu para a sua americana e apalpou-lhe nervosamente as algibeiras. Na do interior, estava a carteira que no sonho — agora não tinha a menor dúvida de que fora um sonho — vira voar nas mãos dum estafeta entre a multidão. Sorriu com a mesma satisfação que exibia diante dos alunos quando os surpreendia com um comentário inesperado. Acabou de se barbear e vestiu um traje limpo. Mudou a carteira para a algibeira interior. O relógio digital do quarto — uma caixa negra cravada à parede — marcava as 08:15 AM e a sua cita com o professor Saguedo Sobrinho era às nove no café Majestic. No nome de Majestic presumiu uma espécie de contra-senha, pois era no Majestic da Avenue Kleber de Paris onde estava instalada a Propaganda Abteilung, órgão que controlava a produção cultural francesa durante a ocupação nazi. Às nove em ponto sentou junto à janela do café. O velho demorou nove minutos. P. reconheceu-o apenas entrou e sentiu um arrepio: era exactamente igual ao professor Sobrinho do seu sonho e embora ouvira falar muito dele — era famoso pela sua teoria da memória latente dos cadáveres —, aquela era a primeira vez que o via. A sua surpresa cresceu quando o velho se aproximou dele com familiaridade.

— De novo pelo Majestic! — saudou-o Saguedo Sobrinho e sentou ao seu lado.

— De novo?

Os olhos do velho professor faiscaram com picardia,

Memorabilia corpórea, eh? — e deu-lhe um golpe nas costas que, pelo inesperado, o fez abanar na cadeira. O velho pediu ao camareiro um café com leite e torradas. Continuou — Percebo, querido doutorando, que as suas pesquisas pelo Porto estão a tirar-lhe a saúde a colheradas. A gente não pode andar a tudo. Ontem já o vi demasiado afogado…

P. empalideceu,

— Ontem estive aqui?

O professor Sobrinho puxou-lhe uma mão no ombro,

— Sente-se mal? Pedimos um copo de água?

— Quer dizer que ontem já estivemos juntos?

— Não se lembra? Foi naquela mesa — e indicou uma mesa num recanto. — O terceiro encontro nesta semana.

P. encolheu-se em si mesmo como uma maçã que se resseca. O professor observou-o detidamente,

— De verdade não lembra?

— Lembro vagamente que estive aqui, mas não é exactamente uma recordação: é a recordação de um sonho.

— Temo que as suas últimas pesquisas o tenham perturbado… Essa mulher com a que estava ontem parecia-me suspeitosa.

— Uma mulher?

— Também não lembra?

— Uma mulher parecida com Sandra Bullock?

— Sandra quê?

— Sandra Bullock. Não conhece Sandra Bullock?

— Fala como se fosse um delito. Pois não, não conheço Sandra Bullock, mas se Sandra Bullock se parece com aquela mulher, deve ser esplêndida.

— Quer dizer que estive aqui com Elva?

— Elva ou Sandra? Não me atrapalhe que à minha idade não está para trelas!

P. alterou-se e, no seu desatino, colheu o confuso professor pelas lapelas,

— Está certo de que estive aqui com Elva?

O professor berrou um “solte-me!” que fez virar o café inteiro para eles. Ao sentir o peso de todos os olhares recriminadores, P. deixou-se cair na cadeira com abatimento.

— Penso que está doente — o velho professor arranjou a americana.

— Doente ou tolo.

— Não deve tomar assim as coisas. Já tem o crânio de Castelao, para que complicar mais as coisas?

— Como que tenho o crânio de Castelao?

— Isso foi o que o senhor me disse ontem.

— Disse eu?

— Com efeito. Veio com uma caixa de veludo azul. Nela, disse que estava o crânio do prócer. Tinha dado com ele finalmente ajudado por aquela encantadora moça. Certamente era uma mulher linda. Surpreendeu-me que se hospedasse no Hotel Panjim. É a primeira vez que ouço dum Hotel Panjim no Porto.

P. interrompeu o velho professor e foi pagar ao camareiro. Ao abrir a carteira, comprovou que não tinha moedas. Estava o cartão de crédito e um cartão de identidade a nome de Vergílio Landeira. Por um segundo, perdeu-se nas ruelas da memória e a mente ficou em branco, como a parede dum museu. O professor puxou da manga da americana com os dedos sujos pela gordura das torradas untadas em manteiga,

— O que acontece?

P. — ou Vergílio Landeira, que a sua confusão o fazia duvidar até do seu nome autêntico — inclinou-se ao ouvido de Sobrinho e, mecanicamente, sem verdadeira consciência do que fazia — ele nunca pedira dinheiro emprestado, nunca tivera essa necessidade —, viu-se pedindo ao velho psiquiatra forense uns escudos. O velho, receoso, tirou com desconfiança pequenos bilhetes que, uma vez juntos, contabilizavam três mil escudos. O velho explicou-lhe que não tinha mais: o justo para pagar o seu café. P. advertiu-lhe que deveria pagar os dois. Não se despediu. Na rua pegou o primeiro táxi que lhe foi ao encontro.

— Ao Hotel Panjim.

O taxista volveu-se,

— Desculpe, senhor, mas no Porto não há nenhum Hotel Panjim.

P. ordenou-lhe, de más maneiras, que procurasse num guia de estabelecimentos hoteleiros e o taxista remexeu — tremelicando numas folhas verdes que extraiu da gaveta do carro.

— Desculpe, senhor, aqui não aparece.

— Tem que aparecer.

P. tirou-lhe o guia das mãos e comprovou ele mesmo que, o que era no catálogo, o Hotel Panjim não existia.

— Talvez — disse o taxista assustado — o senhor tenha uma referência equivocada. Talvez, engane-se. Conheço um Hotel Goa…

— O que tem a ver Goa com Panjim?

— Panjim, ou Panaji, é a capital de Goa…

P. matutou uns segundos e, finalmente, tentou com Goa. Ficava nos arrabaldes da cidade, numa avenida de naves industriais caminho de Vila Nova de Gaia.

O moço do hotel sorriu-lhe e disse-lhe que lá se hospedara “efectivamente” uma mulher que coincidia com a descrição que lhe dava P., mas não se chamava Elva.

— Deixe-me ver — o moço do hotel revisou o livro de hóspedes — Sim, aqui está, Joana Dacosta Fernandes. Eis o seu nome. Lembro bem. Uma mulher de beleza exótica. Deixou o hotel está manhã. Ia colher um vôo a Panjim, ou Panaji. Agora que o penso, é estranho: mas não levava malas. Apenas uma pequena caixa de veludo azul.

Aquele homem, que pareceu a P. de uma amabilidade piegas, fez do seu monólogo uma laudatio de Joana Dacosta: o seu estilo de vestir, a sua elegância natural e o seu português requintado, cheio de arcaísmos.

— Sempre falávamos de Goa — comoveu-se o recepcionista e pestanejou coquetemente —, porque eu nasci em Goa. De pais de Coimbra, mas em Goa. Interessava-se, sobretudo, pela Velha Goa, com as suas igrejas e os casais coloniais. Perguntou-me se tinha um postal da múmia de São Francisco Xavier, que se venera na catedral com grande aparato de fé. Como um goanês não vai ter um postal de São Francisco Xavier? Dei-lhe um repetido que me trouxera a minha prima Ofélia no Natal passado e ao pegar nele o pulso dela tremeu e, mesmo, eu diria que os olhos lhe faiscaram com profunda alegria. Parecia uma mulher muito católica: conhecia as relíquias de quanta igreja há nos arredores do Porto e podia enumerá-las de cor. Os seus olhos, se os miravas fixamente, eram tão formosos que te hipnotizavam.

NOTA
O folhetim O crânio de Castelao foi idealizado pelo escritor Carlos Quiroga, por ocasião do encontro Galego no mundo — latim em pó, em Santiago de Compostela, na Galícia, em 2000. Escritores de países lusófonos se revezaram em sua escrita, cada qual ficando responsável por um dos onze capítulos, que serão publicados nas próximas edições do Rascunho.

Leia o capítulo 4 por Bernardo Ajzenberg

Antón Lopo 

Nasceu em Monforte de Lemos, Galiza, em 1961. Trabalhou como jornalista até o encerramento de Galicia hoxe (2011), o único diário em galego do país, e ganhou o Prémio de Comunicação da Xunta e o Prémio da AELG. Publicou poesia, teatro e romance. Entre os seus livros figuram Sucios e desexados (1987), Manual de masoquistas (1990), Om (1996), Pronomes (1998) e Fálame, Prêmio Esquio 2003. Recebeu o Prémio García Barros pelo romance Obediencia (2010). Em 2005, ganhou o Prémio Cunqueiro de Teatro com Os homes só contan ata tres.

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