O livro/texto traduzido é a materialidade apresentada ao leitor, mas o que está por trás desse fato? A tradução de poemas, romances, etc. não é um produto, é um complexo e imbricado processo de ajustes, negociações (para lembrar um livro de Umberto Eco) e tensões, que muitas vezes não são claras e transparentes. Pensar a tradução nessa perspectiva, portanto, é uma questão fundamental. De fato, traduzir é ler. Ler é uma forma de poder. Atribuir significados, ressemantizar também constitui um poder. Como pensar a(s) relação(s) do Haroldo de Campos leitor de poesia; Haroldo poeta; Haroldo tradutor; Haroldo leitor de traduções? Toda essa rede, ou pelo menos uma parte dela, pode ser vista na cuidadosa edição bilíngüe da Cosac Naify de poemas de Konstantinos Kaváfis traduzidos por Haroldo de Campos, com organização de Trajano Vieira.
Essas ligações estão latentes nos quinze poemas apresentados nessa edição, que abre com o poema de Haroldo o alexandrino. Um livro de Kaváfis que inicia com uma poesia de Haroldo não pode parecer estranho? Ora, esse e outros são os caminhos tortuosos do fazer literário, e por que não do próprio processo tradutório, que não se restringe a uma mera equivalência de palavra por palavra. Aliás, Haroldo quebra com essa visão, na medida em que faz escolhas e tem preferências, como fica claro no texto Kaváfis: melopéia e logopéia, no apêndice dessa publicação. Transcriar, como se sabe, é a maneira pela qual o poeta brasileiro traduz, sempre atento à “camada fônica”, nesse caso particular, a do texto de Kaváfis.
Minha opção, como se verá, diverge das demais. Atenta radicalmente para a camada fônica do original e tenta ‘mimá-la’ em português, ainda que para tanto, aqui e ali, force e interprete arbitrariamente (apenas na aparência?) o texto de Kaváfis. Obter a ‘melopéia’, ‘fingir’ a sonoridade grega, é a meta.
Nesse texto, importante para quem se interessa pela questão da tradução, o tradutor-poeta reflete sobre suas escolhas e expõe as suas preferências.
Retomando a pergunta feita acima: poderia ser estranho, mas não é. Em o alexandrino, de forma delicada, Haroldo em versos traça o perfil de Kaváfis: “ele à sua/ mesa escreve […] e volta-se/ de novo para o/ papel continua a metrificar suas estanças/ é paciente espera — mas tão/ carregados de futuro que neles um/ sempre moderníssimo tino se re-/-pristina minuto a minuto esbanjando/ atemporânea pervivência:/ se chama konstantinos kaváfis […]” Como pensar essa “atemporânea pervivência”? Atemporânea, qualidade que independe do tempo, característica confirmada pela segunda palavra, um empréstimo do espanhol, que em português estaria para sobrevivência. Todavia, o termo “pervivência” talvez tenha outras nuances. Em latim, pervivere, verbo intransitivo, significa continuar a viver, viver por meio de ou através de. Uma vivência que continua independentemente do tempo, ela pervive. Um Kaváfis que continua vivo, ou melhor: renasce e revive, por meio da leitura-tradução de Haroldo de Campos. Um Kaváfis que é aquele primeiro, mas que também é outro, por meio da tradução, que renova esse primeiro. Uma origem, para lembrar Walter Benjamin, que não é estática e única, inserida no fluxo do devir, é marcada pela restauração e pela abertura. Reconstituição, de um lado, e incompletude, de outro: aqui se insere o complexo processo de tradução. Quantos caminhos tortuosos não foram perseguidos e trilhados? Aqui, se está diante de um alto nível de potencialização da arte poética.
Sobrevida ao texto
Ítaca, Mar matutino e À espera dos bárbaros são três dos poemas desse volume. Os mitos gregos são uma forte presença, como é possível verificar em Édipo, Aquiles e na já mencionada Ítaca. Há sem dúvida uma revisitação deles, mas a partir de uma modernidade que traz a poesia de Kaváfis. Ítaca é o destino da viagem de retorno; contudo, para o poeta grego que nasceu em Alexandria, no Egito, o que importa é viajar, o que pode acontecer no deslocamento, não a chegada. “Roga que tua rota seja longa” é o segundo verso que permeia e está presente nos demais, como em “Tua sina te assina esse destino,/ mas não busques apressar tua viagem” . A viagem/experiência do vivido é o que está no centro da discussão. A estrofe final é interessante para pensar a “subversão” da leitura de Kaváfis: “Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu./ Agora tão sábio, tão plenamente vivido,/ bem compreenderás o sentido das Ítacas”. Esse movimento está presente, ainda, no cuidado rigoroso com a métrica e nos versos que não rimam. “Mar matutino” é também uma contemplação, uma renovação: “Parar aqui. Mirar um pouco a natureza […]/ E estando aqui, não relembrar só meus fantasmas:/ anamnese, ilusões — esses ícones do êxtase”. Essa poesia pode lembrar a de um outro poeta nascido em Alexandria e contemporâneo de Kaváfis, mas de origem italiana, Giuseppe Ungaretti (1888-1970), também traduzido por Haroldo. O êxtase, o arrebatamento, de Mar matutino está presente em Manhã (Mattina) do poeta italiano: “Deslumbro-me/ de imenso”.
Em À espera dos bárbaros, cuja estrutura consiste em perguntas e respostas (dísticos), a operação cultural (transcriação) é dada por meio da leitura-releitura de Carlos Drummond de Andrade. “— Que esperamos, reunidos na ágora?/ É que hoje os bárbaros chegam” são os dois primeiros versos. A resposta “os bárbaros chegam/ os bárbaros chegam hoje” é como um refrão, mas não só: é a força. A iminência da chegada dos bárbaros é o que move todas as estrofes. A operação que Kaváfis constrói com a sua tradição literária e cultural tem um paralelo naquela armada por Haroldo, que aqui, no final, lê/traduz o poeta grego a partir da tradição literária brasileira. O Poema de sete faces de Drummond é a base de Haroldo para pensar o dístico final de À espera dos bárbaros: “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”. Os versos finais de Kaváfis na leitura e operação de Haraldo ficam: “E nós, como vamos passar sem os bárbaros?/ Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução”.
A tradução também alimenta, renova e dá sobrevida ao texto, ou melhor — para recuperar o termo usado por Haroldo ao falar de Kaváfis —, faz o texto perviver numa atemporalidade. Traduzir, portanto, significa também perviver, conceito-chave do clássico texto de Walter Benjamin sobre A tarefa do tradutor. Textos que vão se sobrepondo e formando um grande mosaico.