Eternizando o passado

Em "Invenção e Memória" não se sabe ao certo qual o limite entre realidade e ficção
Lygia Fagundes Telles, autora de “As meninas”
01/06/2000

O título do mais recente livro de Lygia Fagundes Telles pode auxiliar na compreensão do conteúdo. Invenção e Memória (Rocco, 125 págs.) traz 15 contos nos quais a autora recria experiências pessoais. No entanto, é difícil separar o que é invenção daquilo que é memória, pois ao abordar momentos de sua infância, adolescência e de sua vida de adulta, a escritora selecionou apenas aquilo que desejava expor. Ela também utiliza enredos para abordar determinados assuntos e, de repente, mergulha no passado. Ao fazer uma primeira leitura, percebi que alguns contos apresentam assuntos em comum e, por isto, vou comentá-los em blocos. Vamos aos enredos.

Recordações da adolescência
O conto A dança com o Anjo se passa durante a Segunda Guerra Mundial, momento histórico no qual as mulheres não tinham perspectiva de entrar no mercado de trabalho e, assim, o casamento era a solução. A mãe da narradora tem medo de que a filha perca a virgindade e a possibilidade de se casar e, por isto, proíbe a moça de freqüentar ambientes onde ela possa conhecer homens. Mas no dia da “pendura” (11 de agosto) — quando estudantes de direito comem e bebem em algum restaurante e saem sem pagar —, a narradora dança uma única música com um rapaz que, posteriormente, analisa que era um anjo. É possível interpretar que Lygia inventou este enredo baseada em alguma experiência real, mas também pode ter sido invenção. A situação parece ser verdadeira mas — de tão bela — dá a impressão de que foi apenas fantasia.

Heffman é outro conto que aborda o período da adolescência da autora. Ela recorda que um sujeito chamado Alfredo Mesquita inaugurou a Livraria Jaraguá, ambiente que reunia estudantes esquerdistas para ler e discutir os mesmos livros. O proprietário do estabelecimento escreveu um texto de teatro intitulado Heffman e convidou a narradora para participar da montagem. Ela hesitou, uma vez que tinha a perspectiva de uma carreira literária e na época era uma respeitável funcionária pública, mas acabou aceitando o papel. No entanto — a leitura do livro esclarecerá a questão —, ela não participou da encenação teatral. A narradora lembra da noite do último ensaio, quando muitas pessoas daquele momento estavam vivas e — posteriormente ao escrever o conto — gostaria de poder parar o tempo.

Lygia observando ou inventando?
Além de criar enredos que parecem relatos de experiências pessoais, a autora apresenta contos que sugerem que ela observou ou inventou. Em Se És Capaz, o protagonista é um garoto que recebeu de seu avô o poema Se…, de Rudyard Kipling. O menino queria ser bombeiro por idealizar a bravura de tal profissão, mas acabou tornando-se bacharel e entrou na política com a finalidade única de enriquecer. O tempo passou e ele transformou-se em um homem rico com a vida pessoal destruída, casando e descasando, até envelhecer sozinho e sem patrimônio em uma clínica de repouso. Lygia Fagundes Telles não julga, apenas narra e pergunta. Será que o homem se perdeu durante a trajetória ou já estava perdido desde o início? Aquele poema que o homem recebeu na infância era uma aula de ética — uma carta de princípios —, mas a vida demonstrou ser difícil colocar em prática as “palavras bonitas”.

As páginas policiais trazem estórias parecidas com o enredo do conto O Menino e o Velho. Certo dia, a narradora foi até um restaurante que costumava freqüentar e observou um velho e um menino sentados em uma mesa, mas por mais que houvesse relação entre eles os dois não eram parentes por que o idoso trajava boas roupas e o garoto vestia farrapos. Em uma segunda ocasião, a mesma narradora retornou ao mesmo local e percebeu que a mesma dupla estava novamente na mesma mesa, mas dessa vez o menino usava roupa elegante. Numa terceira ida ao restaurante, a narradora notou a ausência dos dois e o garçom comentou que aquele menino havia assassinado aquele velho. Se a “estória” acontece todo dia, o jeito de contar é novo e justifica a existência do conto. Arrisco dizer que a moral da estória é — se é que alguma estória tem moral — que muitas vezes aqueles que ajudamos podem nos prejudicar ou até mesmo nos destruir.

Em História de Passarinho, Lygia apresenta um homem considerado bom por cumprir suas obrigações sociais e sustentar esposa e filho. Até que ele compra um pássaro que se atirava contra as grades com a finalidade de escapar da gaiola. A rotina segue e a mulher o filho insistem em atormentar o protagonista. Depois que o pássaro fugiu da gaiola, misteriosamente e sem nenhum aviso, o homem também abandonou o lar. Por que ele foi embora? A atitude do pássaro despertou no homem a idéia de que ele também vivia dentro de uma gaiola e o motivou a fugir. Analiso que a autora quis dizer que algumas decisões, aparentemente sem lógica, são resultado de muito tempo de sofrimento.

A presença e a ausência paterna
Direta ou indiretamente, o pai da narradora está presente em alguns contos. Em Suicídio na Granja, a narradora lembra da infância, quando queria entender o que era suicídio e perguntou ao pai quais os motivos que levam uma pessoa a se suicidar. O tempo passou, a menina tornou-se adulta, mas ainda não encontrou uma resposta definitiva para a seguinte pergunta: “E bicho, bicho também se mata?” Ela relata que foi passar férias em uma fazenda, onde observou a amizade de um ganso com um galo, comparando a relação entre as duas aves com os seres humanos —numa crítica feroz à competição produzida pela economia globalizada. Tempos depois, a narradora retorna à fazenda e percebe que o galo estava triste e solitário. O granjeiro explicou que o ganso foi utilizado em uma refeição e que, a partir disto, o galo entristeceu e, logo, estaria morto. De tristeza.

Nada de Novo na Frente Ocidental aborda um momento de perda na vida da autora. Durante a Segunda Guerra Mundial havia a possibilidade de uma bomba “explodir” no Brasil, mas, apesar do estado de tensão, a narradora e sua mãe estavam fazendo uma refeição. Logo mais, a mãe viajaria para Aparecida do Norte a fim de fazer uma promessa e a narradora tinha um encontro marcado com um poeta. No entanto, ela quer parar — congelar — aquele momento. Instantes depois um telefonema iria avisar que seu pai morreu, mas no momento da narrativa ela não quer pensar no assunto. “Estendi as pernas no almofadão e pensei como era maravilhoso ficar assim disponível e esperando por alguma coisa acontecer.” Sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes da obra.

Lygia mulher
Há contos que trazem experiências de uma Lygia Fagundes Telles adulta. Em Dia de Dizer Não, conforme o título sugere, ela decide dizer não durante um dia inteiro. Logo pela manhã, a narradora entra em um táxi e reclama da estação de rádio sintonizada pelo motorista. O automóvel segue até parar em um sinal fechado, onde um vendedor de cartões oferece seus produtos com uma abordagem original mas ela recusa. O táxi segue e a narradora vai refletindo a respeito de sua decisão preestabelecida e, de repente, pede ao condutor do veículo que retorne até a rua onde aquele sujeito vendia cartões. Mas já era tarde, o vendedor havia sumido. Este enredo pode ser traduzido em uma única frase: ser inflexível só leva ao arrependimento.

No final dos anos sessentas, Lygia Fagundes Telles e seu marido Paulo Emilio Salles Gomes fizeram em parceria uma livre adaptação cinematográfica do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. Agora no ano 2000, ela lançou este livro chamado Invenção e Memória e incluiu o conto Rua Sabará, 400, que é uma nova versão para o prefácio daquele roteiro de cinema intitulado Capitu. Além de ser o endereço onde a autora e seu marido residiam na época, Rua Sabará, 400 aborda o momento em que os dois estavam discutindo o mistério da mais enigmática obra machadiana.

Aspectos de uma imortal
Uma das características do texto de Lygia é manter a narrativa no tempo presente e, de repente, uma frase dita ao acaso por um personagem leva a narradora ao passado, como acontece no conto Que Número Faz Favor?. Outra estratégia da autora é “fingir” que alguém lhe forneceu o enredo e o conto Potyra exemplifica a questão — a narradora escuta a alguém contar a estória e ela faz perguntas, chora, emociona-se, enfim, apresenta o comportamento de leitora e espectadora. Em diversos momentos da obra, Lygia inicia uma frase narrando, coloca uma vírgula para inserir uma fala de um personagem, e volta a narrar.

Ao utilizar experiências pessoais como matéria-prima para criar seus enredos, Lygia Fagundes Telles não está falando apenas de si mesma, mas do ser humano. O fato de ter acumulado vivências ao longo da vida possibilita que agora, aos 77 anos, a autora possa criar — e inventar — estórias valendo-se de um gigantesco “estoque” de experiências. Invenção e Memória não poderia ter sido escrito por nenhum jovem, nem pelo mais brilhante e genial escriba juvenil. Esta obra é resultado não apenas de maturidade intelectual, mas de anos e anos de conhecimento da vida e da arte de escrever. Imortal desde o dia 24 de outubro de 1985, quando foi eleita para ocupar a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, ao publicar Invenção e Memória Lygia Fagundes Telles imortalizou alguns momentos de seu passado. Enfim, a autora e seu passado estão imortalizados.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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