Um dia, o médico Drauzio Varella pegou o metrô e foi até o inferno. Não gostou nada do que viu, mas ficou intrigado. Continuou fazendo o mesmo roteiro por dez anos, até que em 1999 saiu de lá com uma preciosidade debaixo do braço.
De suas incursões semanais à Casa de Detenção de São Paulo, o temido Carandiru, Varella coletou material para um dos livros mais impressionantes sobre a vida na cadeia. Estação Carandiru, (Companhia das Letras, 298 págs.), mereceu, sem apelação, o Prêmio Jabuti para as categorias reportagem, livro do ano na categoria não-ficção e melhor livro não-ficção eleito pelos usuários da Internet.
Obra de estréia de Varella, um cancerologista que se enfiou no inferno Carandiru como voluntário em um programa de prevenção da Aids, Estação Carandiru não tenta comover, dramatizar, fazer chorar nem rir. O livro é tão real que é simplesmente seco. E é dessa maneira que é engolido pelo leitor. Nada mais apropriado para descrever a vida de sete mil marginais que se amontoam num espaço que não caberia nem metade deles.
Também jornalista de estréia, já que o livro é uma fascinante reportagem, Varella passou longe do lugar-comum em que muitos repórteres tarimbados ainda mergulham quando falam de prisão. Nada de …”Oh, aqui vivem mais de 7 mil homens empilhados em condições desumanas”… Como se fosse preferível que os quatro mil excedentes estivessem nas ruas nos roubando.
Alheio à demagogia, Estação Carandiru não mostra como os presos vivem, e sim como sobrevivem. E isso dói ao leitor, porque o livro revela que eles, dentro das condições que lhes são impostas, sobrevivem melhor que muitos de nós.
Claro que no inferno ninguém é santinho. São todos criminosos e o sangue, as facas, a Aids e as mortes correm soltos. Mas eles têm valores disfarçados em códigos de honra e conduta. São valores de bandidos (onde até a pena de morte é válida), contudo valores que fazem o Carandiru funcionar, como microssociedade, com mais sincronia que muitos lugares além de seus muros vigiados. É um inferno, porém organizado, se isto vale como consolo.
Mas o sucesso do livro está mesmo calcado no talento modestamente não admitido de Varella. Nenhuma história é boa sem um exímio contador. O médico-escritor construiu uma obra de texto simples, mas envolvente. São capítulos independentes, cada um deles com um tema (um lugar ou um personagem do presídio), que podem ser considerados várias crônicas. O relato é ágil, de cima para abaixo, com a maioria dos parágrafos completados perfeitamente com frases dos bandidos, em sua gíria mais do que particular.
Varella revelou-se também um observador atento do comportamento social dos presos, funcionários e visitantes. A obra vale como um ensaio sobre a vida dentro e fora das celas dos bandidos do Carandiru, onde no mês de maio foi realizada uma cerimônia coletiva de 150 casamentos, muitos deles assistidos por filhos gerados atrás das grades nas visitas íntimas. O autor é perspicaz e até arrisca pérolas como a do comportamento feminino na agitada fila de visitas: “As mulheres sempre arrumam assunto entre elas”.
Além da literatura, Varella teve o mérito de trazer à superfície um mundo cuja ponta mais visível era aterrorizante, a do massacre de 1992, quando a polícia entrou no presídio para conter uma rebelião e o saldo oficial foi a morte de 111 detentos (os presos garantem que foi pelo menos o dobro). A narrativa do caso, a única carregada de emoção no livro, Varella deixou por conta dos próprios presos, o que funcionou até como legítima defesa do autor para não parecer melodramático.
Prêmios, troféus, dinheiro e reconhecimento público mudaram um pouco a vida de Drauzio Varella, que já prepara mais dois livros. No Carandiru, o inferno continua o mesmo, muito sangue, mortes, Aids e bandidagem. As idéias para melhorar o caótico sistema penitenciário brasileiro são muitas, mas com certeza estão longe de solucionar todos os problemas mostrados em Estação Carandiru. Até porque uma de suas opiniões mais contundentes sobre o assunto Varella omitiu no livro: “Não adianta, tem gente que nasceu para ser bandido”.