(Vamos combinar o seguinte: Manoel faz as perguntas, Karam responde e Carlos fica olhando desconfiado. Os três concordam com a distribuição de papéis para a cena, tomam os seus lugares, pancadas de Molière, sobe o pano, ou cai, ou nem uma coisa nem outra, tanto faz.)
Manoel – Entretanto,
Karam – Sim, uma pergunta sem ponto de interrogação, com uma vírgula abrupta, uma pergunta pelo meio, sem começo nem fim. O meio é a sacanagem, poderia ter dito McLuhanaíma.
Manoel – Se fosse escolher uma epígrafe para a entrevista, seria O meio é a sacanagem?
Karam – Talvez. Ou: Quem já encontrou um manuscrito antigo incompleto, repleto de mistérios provocando ansiedade em decifrá-lo, sabe o que é encontrar um manuscrito antigo incompleto, repleto de mistérios provocando ansiedade em decifrá-lo.
Manoel – O escritor Valêncio Xavier saiu pelas ruas de Curitiba chutando pombas e afirmando que a culpa era sua porque depois de ler “Comendo bolacha maria no dia de são nunca” teve vontade de chutar pombas. Aliás, a acusação foi feita nas orelhas do seu próprio livro. Você tem alguma defesa contra estas acusações do sr. Xavier?
Karam – O meu livro não tem culpa. Disto ele não tem culpa. No caso do sr. Xavier, o livro apenas apitou dando início à partida. Desde muito pequeno o Valêncio já carregava esta grande vontade de chutar pombas. Enquanto as crianças do bairro sonhavam com papai noel trazendo uma bola de futebol tamanho oficial, o Valêncio sonhava com pombas, desde a pomba que lambuza nossos heróis nas praças, passando pela pomba da paz e chegando ao Espírito Santo, mais exatamente Cachoeiro do Itapemirim.
Manoel – O seu editor Joca Reiners Terron afirmou que você cria títulos e depois é obrigado a escrever um livro para usar o título. É verdade?
Karam – O Joca chutou e acertou. Tenho 135½ títulos à espera de livro. Houve o caso curioso do título para o qual não foi necessário escrever o livro porque o livro já estava escrito com outro título, foi só trocar o título. E tem ainda a história daquele que serve duplamente, é o título e também o gênero do livro. Encrenca. Sai no ano que vem, eu acho.
Manoel – Você escreveu: “A cidade é boa, tem árvores frutíferas e vampiros”. Você estava falando de qual cidade?
Karam – Não me lembro.
Manoel – Como vai Curitiba?
Karam – Vai de conto em conto, vai somando conto com conto, vai que já é um romance.
Manoel – Que livro você está lendo?
Karam – Exorcismos de esti(l)o, de Guillermo Cabrera Infante.
Manoel – Que disco você está ouvindo?
Karam – Répons, de Pierre Boulez.
Manoel – Que filme você está vendo?
Karam – Pierrot le fou, de Jean Luc Godard.
Manoel – Que quadro você está vendo?
Karam – É uma escultura.
Manoel – Que escultura você está vendo?
Karam – É um quadro.
Manoel – Que fotografia você está vendo?
Karam – Ela mostra um banquinho com roda de bicicleta, eu também apareço na foto.
Manoel – O que você escreve atualmente?
Karam – Uma auto-entrevista.
Carlos – (pigarreando) Quanto falta pra cinco mil caracteres?
Manoel – Por quê?
Carlos – Foi o que o Rascunho pediu.
Manoel – (para Carlos) Acho que está aí pela metade.
Manoel – (para Karam) Você sabe contar histórias?
Karam – Não.
Manoel – Então conte uma.
Karam – Poderia ser a notícia de jornal sobre o homem que foi matar a sede e morreu afogado.
Alguns detalhes fornecidos pela notícia: o fato ocorreu no mato e no meio do mato havia samambaia, tamanduá, cachaça, bicicleta, diamante, cebola, peixe, ferradura, pedra, geada, repolho, goiaba, violão, urubu, mandioca, sabiá, barro, cipó, capim, papagaio, guaraná, carvão, onça, bandeira, chuva de verão, paçoca, mandioca, bambu, maria-mole, palmeira, reco-reco, pão com manteiga, chorão, óleo diesel, banana, arara, fonte, macadame, urtiga, aranha, cidade, tatu, bolacha maria, mandacaru, quero-quero, arame farpado, rio, avestruz, água, burro, borboleta, cachorro, cabra, carneiro, camelo, cobra, coelho, elefante, cavalo, galo, gato, jacaré, leão, macaco, porco, pavão, peru, touro, tigre, urso, veado, vaca e pau-rosado.
Era o que havia no meio do mato. O sedento viajava a cavalo, carregava um mosquetão e usava botas.
Antes de falar do afogamento do homem é preciso conhecer a sede do homem.
O homem, solitário, conversava com o cavalo.
– Vou morrer de sede. É tamanha sede que só pode ser sinal de morrer de sede.
– Mas num mato assim tem água – disse o cavalo.
O homem não respondeu. Sabia que naquele mato havia água. O medo de morrer de sede era coisa só dele.
– Tem uma fonte por perto – insistiu o cavalo, farejando, e com sede, mas sem medo de morrer de sede.
– Não me amole – gritou o homem.
O cavalo ficou quieto. A viagem continuou. Eles voltaram a conversar, mas coisa sem importância porque nenhum dos dois quis falar de novo de sede e fonte.
A sede chegou à fonte.
– Não vou mais morrer de sede – disse o homem para o cavalo, que preferiu ficar quieto e decidiu não beber água.
O sedento mergulhou na fonte e bebeu água. Afogou-se.
Após o afogamento do homem, o cavalo disse em voz alta:
– A fonte que não mata a sede, ele encontrou a fonte que mata o sedento.
O cavalo enfiou os dentes na roupa do morto e saiu arrastando o corpo pelo mato, sem destino.
Manoel – Se perguntassem para você: o que é literatura?, o que você responderia?
Karam – Nonada.
Manoel – Por que você escreve?
Karam – Porque sim.
Carlos – Vai, Manoel, vai ser Joaquim na vida.
Folha corrida – O acima auto-entrevistado é autor dos livros Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992), Cebola (1997) e Comendo bolacha maria no dia de são nunca (1999). Este último lançado por Edições Ciência do Acidente que, no segundo semestre deste ano, põe nas boas casas do ramo Pescoço ladeado por parafusos.