Difícil escavar a pedra bruta

Entrevista com Wilson Bueno
Wilson Bueno, autor de “Mar paraguayo”
01/05/2000

• Como construiu o escritor que é  hoje?
Posso dizer que foi uma lenta e meticulosa procura de um “sentido” para viver, pra existir cá neste mundo insensato. Não que tenha havido um propósito deliberado, digamos assim, de “construir” o escritor, como você coloca na sua pergunta. O escritor foi surgindo na exata medida em que a vida foi solicitando de mim um “sentido”. E junto com esta busca, a cada vez, o gosto, o prazer do texto,  a epifania da escrita. Difícil escavar a pedra bruta, muita vez só com as unhas das mãos, para dali extrair quem sabe uma esmeralda viva. Há textos que são esmeraldas vivas e não que eu tenha chegado a alguma, mas sei que isto é possível. É da natureza da velha ars literaria esta e outras amplas possibilidades. É preciso amor ao texto como se ama a um homem ou a uma mulher…

• Há muita diferença entre escrever para o público infantil e para o adulto?
Olha, eu só tenho um livro destinado exclusivamente para as crianças, embora muitos de meus textos, sobretudo a parte zoofílica, as fábulas principalmente, possam ser lidos por pessoas de 0 a 100. Mas o meu único livro digamos “infantil”, estrito senso, se chama Os Chuvosos e acaba de ser publicado, em edição artesanal,  fora do comércio, pela Tigre do Espelho, da poeta e designer gráfica Jussara Salazar. Mas, acredite, não escrevi Os Chuvosos pensando especificamente nas crianças; pelo contrário — era até, em princípio, para integrar o meu livro mais recente, Jardim Zoológico ( Iluminuras, 1999) que não é propriamente um livro infantil, não é? Mas aí deliberamos, eu e Jussara, que o livro seria destinado às crianças e como eu o tinha escrito para uma menina, Kaira, então com 5 anos, e tinha a ela dedicado o texto, Os Chuvosos ficou sendo mesmo um título de literatura infantil… Tudo para mim é o prazer do texto. Divirto-me tanto com Finnegans Wake quanto com as estórias dos Irmãos Grimm, e decididamente não penso, quando de minha fatura  literária, pessoal, para quem eles, os textos, se destinam…

• Seu mais recente livro é Jardim Zoológico, que acaba de ser publicado pela Iluminuras. O que há de novo em seu trabalho?
Dentro de uma linha evolutiva, se assim podemos dizer, de minhas zoolatrias, que começa lá atrás, em 1991, com Manual de Zoofilia (Noa Noa) onde discuto a mito-poética do amor erótico humano a partir de bichos como cadelas ou corvos, elefantes ou polvos, moscas ou colibris, Jardim Zoológico é um momento agudizado daquela vertente. Não fiz por menos — decidi inventar e/ou inventariar novos bichos para, a partir de sua forma e conteúdo, refletir sobre a pobre condição humana. Ali onde havia um pardal, digamos, instaure-se, por exemplo, os giromas; ali onde, arisca, cheia de nosso presto amor com raiva, se atocaiava uma raposa, coloque-se em seu lugar, os guapés, micro-cães menores que um dedo humano e seus filhotes inverossímeis. Penso que o Jardim é mais filosófico que o Manual, mais maduro também, embora, alguns exagerados, considerem o livrinho editado pela Noa Noa e que mereceu recente uma segunda edição pela editora da UFPG, a melhor coisa que fiz até hoje, chegando ao cúmulo de classificá-lo como obra-prima, —  esta palavra perigosa — ,  o que é, evidente, um exagero…

• Quem assina o prefácio de Jardim Zoológico é Arnaldo Antunes. A letra de música é poesia?
No meu entender, a poesia está em tudo o que se queira como poesia. Nos filmes publicitários, nas bulas de remédio, nos out-doors, nos muros da cidade aflita, na prosa de Goethe ou nos sonetos de Machado de Assis. Como não estaria nas letras de música, com nossos poetas-compositores, nós que somos um país musical e que acrescentamos ao mundo insuspeitadas essências nesta área — do samba à bossa-nova, do tropicalismo ao frevo? Agora, há letras de música e letras de música; como há sonetos de Machado de Assis e sonetos de J.G. de Araújo Jorge…

• Com quantas metáfora se faz um poema?
Responderia a esta pergunta com uma utopia e novas perguntas —haverá a vez de um poema sem metáfora? Como seria um poema destituído de toda metaforização? Será possível um poema assim esquizofrenicamente colado ao real feito uma segunda pele? E que  poesia é esta que não transfigura? Tal poema seria, para não fugir da metáfora, só a sina de ser, rude como um coice…

• Como você vê 18 páginas de Mar Paraguayo (Iluminuras, 1992)     terem sido incluídas numa das mais importantes antologias latino-americanas dos últimos tempos que é Medusario (México, Fondo de Cultura Económica), organizada por Roberto Echavarren e José Kozer?
É preciso lembrar que lá também estão fragmentos de Galáxias, de Haroldo de Campos, e também fragmentos do Catatau, de Paulo Leminski — igualmente como representantes do Brasil na antologia. Acho que está mais do que na hora de a literatura brasileira, uma das literaturas mais ricas do mundo, ser ao menos conhecida pelos nossos vizinhos de língua hispânica. É incompreensível que não nos conheçam ou nos conheçam muito pouco. E quando travam contato com as nossas coisas, veja-se o exagero e o deslumbre — vão logo nos antologizando de um modo generoso e inteiro, como agora, com Medusario. A se destacar, o grande pequeno ensaio que introduz Mar Paraguayo na antologia, uma visada aguda e inteligente sobre o texto, realizada pelo crítico Roberto Echavarren, da New York University. Estar ali, ao lado das mais importantes expressões da nova literatura latino-americana, além da honra, tem me dado grandes alegrias.

• Você tem alguma epígrafe de sua preferência?
Tenho muitas, mas gosto particularmente da que inscrevi ao pórtico de Manual de Zoofilia e que é atribuída a Shakespeare — “A planta chamada mandrágora é afim com o reino animal porque grita quando é arrancada e esse grito pode enlouquecer quem o escuta.”

• Qual o papel do escritor na sociedade?
Nossa função, penso, é não deixar nunca que a superfície chapada das coisas vigore, ou se revigore. O compromisso do escritor é com o lúdico, com o in-útil essencial da vida. Brincantes e mágicos, feiticeiros e inventores, os escritores temos que estar atentos para que a linguagem não congele em fórmulas exitosas. Necessário o gosto e o gozo do texto sempre novo, o ar, a nova aragem. Numa sociedade que tende à estagnação da linguagem, o escritor é aquele demônio capaz de revirar o tempo todo, revirar esta mesma linguagem para que ela não pereça nem morra de preguiça ou pelo uso congelado de sua repetência. O olhar do escritor tem que estar sempre e invariavelmente na direção do horizonte… Quem se dedicar a buscar, está sempre encontrando.

Breve notícia biográfica: Wilson Bueno é escritor. Autor de Bolero’s Bar (1986), Manual de Zoofilia (1991), Ojos de Agua (1991), Mar Paraguayo (1992), Cristal (1995), e Pequeno Tratado de Brinquedos (1996). Acaba de publicar Jardim Zoológico. No prelo da Editora 34 Letras, o romance Meu Tio Roseno, A Cavalo.

Wilson Bueno

É autor, entre inúmeros livros, do romance A copista de Kafka.

Rascunho