Um diálogo comigo mesmo

Entrevista com Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto, autor de “Chá das cinco com o vampiro”
01/05/2000

• De que forma você se sente poeta?
Eu me sinto poeta apenas no momento em que estou escrevendo poesia, o que é uma coisa que acontece com pouca freqüência, não muito mais do que uma dúzia de vezes ao ano. Nos demais momentos de minha vida, sou outra pessoa, escrevo crítica, faço ficção e principalmente vivo, trabalho e leio. Ou seja, não sou o poeta 24 horas por dia, sete dias por semana. Por isso, posso dispensar a pose de poeta que é um troço bastante babaca. Eu sou apenas um leitor que tem síndrome lírica passageira. Na verdade, tenho muita resistência a me ver como poeta ou mesmo como escritor.

• E de que maneira isso se reflete em sua poesia?
Principalmente em um estilo que fica a meio caminho entre o poético e o prosaico. Em meus poemas não uso formas fixas (mesmo nos que aparentam ser sonetos), evito versos extremamente melódicos, fujo da rima soante, me entregando à toante, que é um parentesco fônico incompleto. Outra coisa importante nesta minha maneira de fazer poesia sem incorporar o poeta é uma visão bastante crua e desencantada, expressa em versos que cultivam certo rudimentarismo.

• Por esta recusa das conquistas das vanguardas?
Não tenho nada contra as vanguardas e reconheço o valor historiagráfico delas. Agora, me valer de recursos galvanizados pela vanguarda é uma coisa que nunca farei. O meu temperamento e minha própria voz poética (se é que tenho uma) nasceram justamente da negação destas vanguardas, cujo vírus se alastrou a todos os versejadores de nosso país. A vanguarda é uma espécie de maçonaria e eu não freqüento clube fechado, porque me acredito uma pessoa aberta, que pode se interessar pelas mais variadas coisas. Além disso, as vanguardas são monotemáticas, o que me cansa muito. Os poemas que eles produzem hoje são os mesmos que eu lia há 20 anos. É que, para mim, toda vanguarda defende, implicitamente, o fim da história. Ela recusa o passado e não vê a possibilidade do diferente brotar no horizonte estético. Tudo, depois da vanguarda, tende a ser planificado igual a ela para poder ter algum valor. Eu já acredito na mobilidade cíclica da história, o que foi passadismo décadas atrás agora pode ser válido como novidade. Por isso, a minha discordância da vanguarda é mais do que uma idiossincrasia, é uma postura nascida de longa reflexão. E o poeta que mais me ajudou a entender isso foi Octavio Paz que, eruditamente, desvelou  a canonização da revolução estética.

• Quais são os defeitos de seu livro Venho de um país escuro?
Todo livro é composto por um conjunto de acertos e outro de erros. Melhor dizendo, encontraremos até nas obras-primas um grande número de coisas que poderiam ser melhores. Quanto menos obra-prima é um livro menor é o conjunto de acertos e maior o dos erros. Venho de um país obscuro traz um grande número de erros, que vai variar conforme a exigência do leitor. Eu, que me acredito um leitor exigente, não sou muito tolerante com o livro. Reconheço que ele tem valor, mas não suporto primeiro a fixação na infância — sei que é algo importante para quem escreveu os poemas, mas sempre me pergunto se será importante para quem lê. Também acho que é preciso acreditar mais no presente. O livro, todo ele, é uma ode ao passado. Dizia Drummond: amar o perdido deixa confundido o coração. Outro defeito do livro é a recaída da tensão que se dá em alguns momentos, tornando o estilo poético-prosaico em apenas uma prosa morta. Tematicamente, os poemas melhores são os que falam de minha infância pobre — acho este um tema rico de poesia, independente da forma pedestre que os poemas tomaram. Como conjunto, os melhores poemas estão em Autobiografia de Aleijadinho, que é uma mistura do Miguel poeta com o Miguel crítico e com o Miguel leitor de cidades.

• Dói muito reconhecer nossas fragilidades?
Sim, dói muito, por maior que seja a consciência que se tem delas. Devo dizer que isso não atinge minha vaidade apenas, mas principalmente o meu desejo de expressão. Todo escritor autêntico, por pior que ele seja, é movido por uma tormenta perfeccionista. E quando nos apontam nossos erros ou quando nossos erros batem à porta de nossa casa espontaneamente, dizendo: olha só como somos horríveis e foi você, seu idiota, que nos criou — quando acontece isso é sempre um grande sofrimento.

• Você, como crítico, não se sente culpado por fazer com que os autores descubram os defeitos do trabalho deles?
Por alguns momentos me sinto uma pessoa ruim, muito ruim. Mas logo me convenço de que cada um tem o seu papel e o do crítico é botar o dedo nas feridas. Mas quem fez as feridas não foi o crítico, ele apenas faz com que as pessoas se lembrem delas. No fundo, por melhor que sejamos, somos sempre um corpo em chagas. E quando não estou fazendo nada, para melhorar o meu desempenho crítico, fico cutucando minhas próprias feridas.

• Você pretende voltar a escrever poesia?
Há anos estou decidido a não escrever poesia. Mas, mesmo contra minha expressa proibição, vez ou outra um poema fura a barreira de proteção e entra em minha vida. Daí tudo que resta é aceitá-lo, submetendo-me ao seu domínio. Todos os poemas de Venho de um país obscuro nasceram contra minha vontade, eu jamais me sentei ao computador e pensei vou escrever um poema assim e assado. Eles vieram de um jato, interrompendo um ou outro serviço, me tirando mais cedo da cama, da mesa de jantar, do banho. Todos os meus poemas são frutos de um estupro no qual eu fui a parte passiva. Depois fiz o papel que cabe a todo progenitor — cuidei deles, dei o melhor de mim.

• A poesia tem futuro?
Acho que cada vez mais ela vai se tornar um idioleto, ou seja, um idioma para um pequeno número de pessoas, com afinidades bastantes limitadas.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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