Suave Tormenta

Aos mais desavisados vai Clarice Lispector é legítima no que diz respeito aos grandes escritores
Clarice Lispector, autora de “A paixão segundo G. H.”
01/05/2000

Aos mais desavisados vai Clarice Lispector é legítima no que diz respeito aos grandes escritores. Sua obra trata a palavra com uma sensualidade rara que cativa o leitor com sua limpidez impessoal, nos fala jogando com as palavras em uma precisão e nitidez emocionante.

Ao ler sua obra há um contato direto com aquelas perguntas inquietantes sempre proteladas, que  sempre hão de estar lá dentro da alma. Por isso há quem diga sê-la hermética, de difícil leitura. Ou o que é pior lê-la sem sentir o que sua alma feminina está sentindo.

Para começar sua obra, escreveu Perto do Coração Selvagem, em 1944, época em que lecionava português, daí a influência professor/aluno na sua produção literária. Seu fado foi feito de muitos reveses; nascida na Ucrânia, em 1920, chega ao Brasil com a família aos dois meses de idade, permanecendo em Recife até os 9 anos, quando sua mãe morre e sua família com sérios problemas financeiros se transfere para o Rio de Janeiro. Nesta mesma época, começou a lecionar, estudou Direito e casou-se com um colega futuro diplomata, trabalhou na Agência Nacional como redatora, época em que teve com os jornalistas Antônio Callado, Paulo Mendes de Campo, Fernando Sabino, Rubem Braga, Érico Veríssimo. Seu casamento durou 15 anos, um filho era esquizofrênico, a pobreza lhe rondava novamente, solitária e modesta, como ela mesma se referia, procurou sempre superar seus obstáculos buscando forças no manuseio das palavras, como se buscasse uma espécie de iniciação.

Há uma especulação sublime filosófica em O Ovo e a Galinha, publicado em 1971  no livro de contos Felicidade Clandestina, há frases que causam grande efeito pela sua complexidade e integridade, […] “Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. Viver está me matando. A galinha é o disfarce do ovo.”

A crítica desnorteada com o turbilhão de estilos,  poesia e prosa dentro de um pensamento, já achou influências de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido.

Clarice decifrou a palavra, percebeu nela a essência de todo pensamento. “Eu jogo com elas como se lançam dados; acaso ou fatalidade. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por uma extrema simplicidade de linhas. O que não sei dizer é mais importante  do que o que eu digo. Eu tenho uma falta de assunto essencial.” Clarice em seus momentos de criação era febril, nada quebrava o encantamento, dizia estar numa espécie de transe plenamente concentrada. Nunca vacilava numa frase, a inspiração vinha num ímpeto avassalador. Otto Lara Resende assim definiu: “Ela se deixava conduzir por uma espécie de compulsiva intuição. Era o seu tanto adivinha. Ninguém passa por ela impune. Ela liga e religa o mistério da vida e o religioso silêncio da morte. Clarice é uma aventura espiritual.”

Desde muito cedo foi devoradora de livros, sem guia escolhia seus livros pelo título, aos 13 anos numa de suas peregrinações literárias interessou-se pelo Lobo da Estepe, de Herman Hesse, pensando tratar-se de aventuras tipo Jack London, a partir de então germinou o fascínio pela busca do self. Ela havia entrado em contato com a grande literatura mundial.

Clarice a respeito de si dizia: “Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos.” Escreveu sempre, nos períodos de dificuldade financeira, escreveu para a revista Senhor, fez entrevistas para revista Manchete, crônicas semanais para o Jornal do Brasil, por ocasião quando entrevistou Vinícius de Moraes, pediu-lhe à queima roupa um poema, nosso poetinha então escreveu: Clarice-Lispector.

O pensamento contido na palavra simplesmente suave e profundo  que leva o leitor ao infinito, é assim Clarice Lispector: “Ah, não retires de mim a tua mão, eu prometo que talvez até o fim deste relato impossível talvez eu entenda, ou talvez pelo caminho do inferno eu chegue a encontrar o que nós precisamos — mas não retires tua mão, mesmo que eu já saiba que encontrar tem que ser pelo caminho daquilo que somos, se eu conseguir não me afundar definitivamente naquilo que somos.”

Juarez R.
Rascunho