Ruas

Conto de Nelson Padrella
01/05/2000

Em ruas de papel escrevi a história. Com códigos incomensuráveis e estética pouca. Cavei com as próprias mãos tocas que vão dar a lugar nenhum. Perseguido e humilhado, dancei na festa de Pan, enquanto sementes secavam em potes lacrados. Uma flor na porta, era de arame e pano. O beijo de barro, que esboroou como barrancas esterroadas pelos dilúvios. Em caminhos fora do meu país encontrei a estrada. Também aí, nenhuma ambição. Uma história que se escrevia por si. Com signos ainda não inventados. Acho que cada história é assim. Do amor, um hieróglifo jamais desvendado lembrava o olho de Cleopatra posto em mim. Numa rua do Louvre pensei ter encontrado antepassados ou a mim mesmo. Mas foi na Catalunya que mais me desencontrei. (Ou teria sido em Allambra?). Sob o sol andaluz, o mesmo que deve ter fascinado meus avós. Nas ruas de areia de tantas praias busquei tesouros inéditos. Uma voz o vento levava e trazia, torpe ruína. O sangue transmigrado inventava passageiros. Marchei sobre pedras redondas de uma praia que o mar batia, e foi um momento tão curto que nem devia ter me marcado. Logo, eu erguia o pescoço e providenciava tarefas. Municiava-me. Não se retorna ao ponto de partida. Chovia sobre delicados raios de sol, e Roma estava a um passo. Deixei as legiões e avancei sozinho. Cara a cara com o império desmoronado, aonde chegavam todas as estradas. Ao Colosso cristãos acorriam, aos magotes; não temiam as feras de Carrara, escalavradas. Sentado no Fórum sagrado até a noite chegar. Havia uma voz nos espaços do ontem. Sobre o mármore branco nenhuma evidência de sangue. Uma história se escreve com tarefas. Também em Treblinka dizem haver vozes. A História não se cala. A lua iluminava o sono daquelas crianças, numa vila alemã, fronteira com a Suíça. Junto a um cemitério — onde histórias deixaram de ser contadas. A luz muito branca lambia rostos e lençóis. Eu me enleava no fascínio de escrever com prata. Deixei-me flutuar sobre o Bodensee e foi assim que adormeci. Outra lua, igual, no Algarve, sobre casas sempre pálidas. Andar e andar, tonto, à procura de alguma coisa importante, cujo significado não interessava. A perda do amigo ardia na memória. Um cão farejava. Um bêbado abraçava sua solidão. Como se pode viver numa cidade escrita com ruas de água? Talvez seja possível assim escrever histórias — com água! Venezia flutua no impossível, cidade náufraga, mágica. Ilha de San Marco. Aves escrevendo rotas no espaço. Um sentir marítimo. Cascas de casarões, ruelas — súbito, um átrio. Tadzio na noite, entre lençóis, e o homem Mann acariciando perigos. Pombos na madrugada. Marujos hostis. Trapo e sal. Abandonar navio. Agora, ruas sob o mar, em que marcho, alumbrado, o fundo como Norte. Acompanho o balé das bicicletas. Um negro fuma haxi. Uma certa elegância no fundo do mar. Uma certa devassidão, permissividade. A orelha de Van Gogh escuta meus passos. O amigo encontrado numa praça estrangeira. Vamos em direção ao Afsluitdjik. Linhas vermelhas e amarelas cortam Den Haag, Dordrecht, no mapa desdobrado. O mundo. O gosto de ir.

Nelson Padrella

É jornalista e escritor. Autor de Pão e vinho, entre outros.

Rascunho