“Sou Ernesto Sabato, o escritor que matou o século XX” — Antes do fim (Seix Barral/Argentina, 189 págs. 15 pesos) bem que poderia começar assim, plagiando o início de outro livro do próprio Sabato: O túnel (1945) — curta tragédia existencialista sobre “Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne”, que projetou o autor à fama na década de 40. Mas não é o caso. Em Antes do Fim, o escritor, pintor e ensaísta argentino, adepto da novela surrealista e fantástica, publica não um livro de ficção, mas suas memórias. E o faz contradizendo uma ordem médica, datada de 1979, para nunca mais ler e escrever se não quisesse se filiar ao clube de Borges, João Cabral e Homero. Enxergando muito bem, retorna com um sarau nostálgico e idealista, raro feito para artistas do cunho de Sabato, atento e ácido em seus 88 anos.
Sabato, último grande escritor argentino, eminência sobrevivente de uma era — Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Cortázar, entre outras santidades — escreve suas memórias não só com a consciência crítica que sempre demonstrou, mas com muita simpatia. Simpatia essa que faz ídolos, que atrai milhares de fãs às noites de autógrafos e jovens apaixonados que peregrinam à porta de sua humilde casa, no subúrbio de Santos Lugares, Buenos Aires. O agradecimento dos leitores pelas dádivas pessoais alcançadas com o livro, faz com que Antes do fim escorregue da estante de autobiografias para a de auto-ajuda. Culpa dos leitores famintos por conforto, não do escritor. Em 1999, mais de 200 mil leitores, votando com seus cartões de crédito, elegeram seu livro o mais vendido da Argentina. Hoje está na 11° edição e traduzido em sete idiomas. Fenômeno de vendas lá fora, o livro está a caminho do Brasil, pela Companhia das Letras. Para a alegria dos que querem emparelhar a balança comercial, deve aterrissar por aqui antes do fim. Do ano.
Aliás, o título do livro explica as primeiras e segundas intenções do autor. Antes do fim se refere tanto à vontade de deixar um testamento em vida, como à antecipação ao Apocalipse. “Quando soube que os alemães tinham ganho a corrida pela divisão do átomo, achei que o Apocalipse começara”, contou certa vez ao jornal argentino La Nación. Para quem leu algum dos seus livros de ficção, este de memórias não é algo tremendamente novo. Ele mesmo, Sabato, já foi personagem em cada um de seus três romances. Em Abaddón el Exterminador (1974), há um personagem chamado Ernesto Sabato, anjo do mal convertido em morcego. Apesar de o personagem Juan Pablo Castel, de O túnel (1948), denunciar o contrário, Sabato alega que nunca matou ninguém, mas que já pensou no assunto. E em Sobre Héroes y Tumbas (1961), os personagens desvairam com a mesma insanidade de quem esteve sempre à beira do abismo. Toda essa ficção autobiográfica, que Sabato gosta de explicar citando Flaubert — “Madame Bovary, c’est moi” — suas preocupações existenciais e manifesto agora se encontram em forma acessível ao grande e mal-acostumado público.
Antes do fim é um livro fragmentado, em tempo e em estilo, de capítulos curtos, meio como um diário, mas dividido em quatro partes. A primeira delas, intitulada “Primeiros tempos e grandes decisões”, visita os prazeres da infância, revive as aventuras de colégio, a formação científica na Universidad de la Plata, os primeiros interesses pela arte e pela matemática, e o envolvimento com a esquerda revolucionária. Sabato, anarquista cristão, aproveita para elogiar a música de Brahms, os quadros e a audácia de Goya, o dom de Van Gogh; citar Camus, Wilde, Goethe; confessar a paixão pelo humanismo de Crime e Castigo, de Dostoievsky. Bom momento para o leitor lembrar que um dia também foi criança (se ainda não for, apesar das cãs) e que também ilusões tivera. Mas Sabato, cheio de um lirismo digno de Rubem Braga — estilo que apelidou de “literatura criada com sangue” — aniquila o saudosismo com a amargura de perder o irmão, Humberto. Com a indignação contra os déspotas disfarçados pela bandeira marxista, e a prepotência do peronismo e outras ditaduras. Com os primeiros e obsessivos contatos com a arte, e a intimidade com o suicídio. Ernesto Sabato é um humilde sofredor que passa por um período de nostalgia e seu desapontamento se parece muito a letra de um tango. E teria mesmo virado tango, fosse o projeto de Piazzola de transformar Sobre Héroes y Tumbas em ópera ter ido além da introdução.
Para compreender melhor o escritor, é necessário adentrar seu desatino, resultante da luta interior entre o racional e o sobrenatural. É quando Sabato conta sobre a decisão de deixar a ciência pela arte. Naquele ponto, já tinha trabalhado no Instituto Curie de Paris e publicado teses e postulados de razoável importância no meio científico. Foi a sedução pelo obscuro e indecifrável da alma que o fez abandonar uma carreira brilhante por outra. Diz que busca na arte as respostas para perguntas existenciais e tranqüilizantes para seus sonhos atormentados. “O ser humano é essencialmente contraditório, e até o próprio Descartes, pedra angular do racionalismo, criou os princípios de sua teoria a partir de três sonhos que teve. Lindo começo para um defensor da razão!” (pág. 68). Ainda hoje alguns livros didáticos de física escritos por Sabato circulam nas mochilas de alunos do científico.
Em “Talvez seja o fim”, segunda parte do livro, faz crítica implacável aos horrores deste século que termina. Nesse ensaio sobre a catástrofe global, Ernesto Sabato, com sua engenhoca ética, aponta erros do passado e alerta para os perigos da febre neoliberal: “Pelo que parece, a dignidade da vida humana não estava prevista no plano de globalização. (…) Faz-se um pobre diabo crer que pertence ao Primeiro Mundo por ter acesso aos inúmeros produtos de um supermercado” (pág. 109). Chama também a atenção para a desumanização do sistema, dando o exemplo das crianças de rua em São Paulo, da exploração de mão-de-obra infantil pelo mundo, e se enoja com a mirabolante chacina da natureza, do lixo tóxico ao desmatamento. “Que horror, o mundo!”. O ponto de exclamação é dele.
A terceira parte, “A dor rompe o tempo”, trata principalmente de dois temas, dois golpes duros na vida do escritor: a perda recente do filho, Jorge Federico, e de sua esposa, Matilde, morta em 1995. Em uma comovente homenagem ao filho, pede desculpas por arrancá-lo da carreira de músico em prol de um emprego estável, contradizendo as próprias escolhas do passado. E expressa o mais grande respeito e admiração por Matilde, que o acompanhara desde os 17 anos. É graças a Matilde que Sabato possuí uma obra literária. Não fosse ela salvar da fogueira vários de seus trabalhos (e alguns, como a novela La fuente muda, de fato viraram cinzas) Sabato teria uma obra ficcional pouco mais que nula. A seu lado passou “momentos de perigo, de amor, de amargura, de pobreza, de desenganos políticos e tristíssimas separações, em que esperava sempre que o barco sacudido por escuras tempestades regressasse à calmaria, ao céu estrelado, ao Cruzeiro do Sul que marcava novamente o rumo” (pág. 165). Pura poesia.
O epílogo “Pacto entre derrotados” é um belo manifesto, no sentido antigo da palavra, quando ainda exprimia um voto de coragem em tom épico — como os grandes discursos que inspiraram operários a fazer revoluções. Talvez entrasse para a História, se Ela fosse justa e Sabato um predestinado, embora seja difícil imaginá-lo um messias do pampa. “Quando nos façamos responsáveis pela dor do outro, nosso compromisso nos dará um sentido que nos colocará por cima da fatalidade da história” (pág. 180). O pacto resume preocupações expressas ao longo do livro. É um pedido de socorro, um aviso aos alienados, à humanidade, aos que ficam, como se ele não mais fizesse parte do grupo.
Antes do fim é o auto-retrato de um homem inquieto, e por isso representativa do ato humano. É também uma crítica social férrea, e isso tem o seu valor, apesar de ser mais útil quando oferece alguma luz ao invés de ser apenas rabugenta. Mas é que os rabugentos não envelhecem jamais, por isso o niilismo leitmotiv de As partículas elementares, de Michel Houellebecq, e de filmes como Beleza Americana estarão sempre em voga.
Agora, sua leitura não deve ser feita com o fim de encontrar no pessimismo de Sabato explicações para o desassossego do fim de século. Ou, em seu afeto pela frágil alma humana, uma camisa-de-força para a loucura. Tampouco é o ultimato sobre o que representou este século XX, porque isto talvez só se saiba depois que os deuses gritarem “fogo, fogo!”. Ou seja, tarde demais.
A leitura deste livro único, sim, deve ser feita com aquela mesma curiosidade e embriaguez com que se lê, sob a cama, o diário secreto da irmã mais velha. É que Antes do fim dá ao leitor, como toda boa autobiografia deveria, uma dose de reflexão e um indício: que também nossa vida, se for bem examinada, vale pelo menos boas duzentas páginas num livro de memórias.
Antes do Princípio
Ernesto Sabato nasce em 1911 na província de Rojas, Argentina. Doutor em física e matemática pela Universidad de La Plata, chega a trabalhar como pesquisador no Instituto Curie, publicando trabalhos importantes sobre raios cósmicos. Durante a década de 30, em Paris, faz amizade com artistas surrealistas através do partido comunista, do qual é membro. Casado com Matilde, sua primeira e única esposa, em 1940 retorna a Buenos Aires como cientista conceituado para assumir o cargo de professor na universidade em que se formou. Na mesma época, conhece várias figuras proeminentes da literatura argentina, entre elas Jorge Luis Borges e Victoria Ocampo, que publica seus primeiros trabalhos na célebre revista Sur. É afastado do corpo docente em 1945 por suas idéias contrárias à ditadura peronista e entra em “crise existencial”, em suas próprias palavras. Decepcionado com o comunismo e em sofrendo do conflito interior entre a ciência e a literatura, contempla o suicídio seguidamente. Perseguido pela ditadura, mas relutante em exilar-se, abandona a ciência em definitivo para dedicar-se à literatura e à pintura, contraindo duras críticas de seus colegas no meio científico. Em 1945, publica seu primeiro livro, o ensaio existencialista Uno y el Universo, e em 1948, a novela O túnel. Seguem-se vários outros ensaios, livros de aforismos e os romances Sobre héroes y tumbas e Abbadón, el exterminador, vencedor do prêmio de melhor romance estrangeiro publicado na França, em 76. Diversos escritores, como Camus, Mann e Greene elogiam sua obra, que recebe o Prêmio Cervantes em 1984, e recomendam suas traduções. Desde o final da década de 70 não escreve nem lê, diz, e dedica-se inteiramente à pintura. Quadros seus foram recentemente expostos no centro George Pompidou, em Paris.