Um apontador de lápis fixado na beirada da mesa, sobre a mesa caixas com lápis. Na primeira leva, o homem faz a ponta de 10 lápis. Ele vai até a janela e olha para a rua antes de retornar ao trabalho.
Na segunda leva, faz a ponta de 15 lápis, confere a quantidade e aponta outros 18 lápis. Dá um suspiro para representar cansaço e usa o apontador em mais 12 lápis. Repete o suspiro como se a primeira vez tivesse sido apenas um ensaio.
Retorna à janela e olha para a rua. Dá um suspiro e volta à mesa para fazer a ponta de mais 14 lápis. Confere o número e imediatamente aponta outros 14 lápis e em seguida mais 14, conferindo as duas levas de 14 de uma vez.
Vai à janela, passos rápidos, retorna à mesa, limita-se a olhar para os lápis por apontar, volta à janela, não suspira mas esboça um suspiro e retorna à mesa.
Apanha 12 lápis de uma caixa, vai apontando e contando, eram 13, aponta mais 17 lápis e outros 19 e outros 11 e outros 10 e outros 9 e outros 16, não confere. Vai à janela, abre o vidro e fala para a rua que não sabe como tudo isso vai terminar, não suspira nem esboça suspiro.
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Pouca importância era dada quando o Brito falava, sempre havia alguém falando ao mesmo tempo. Toda atenção ia para quem havia falado ao mesmo tempo, não davam atenção para aquilo que o Brito falava, davam para o Brito as costas.
Então um dia o Brito comunicou que passaria a andar com um revólver, daria tiros para que todos ouvissem os tiros já que não ouviam o que ele falava. Ninguém deu atenção quando o Brito falou sobre tiros porque alguém falou ao mesmo tempo e deram para o Brito as costas.
Depois que aconteceu, um deles falou gaguejando que lembrava que um dia o Brito disse a palavra tiro, não havia entendido muito bem porque alguém falou ao mesmo tempo, mas tinha a impressão que o Brito disse tiro. Aquele que falou gaguejava porque saía sangue pela boca atrapalhando as palavras.
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Havia conhecido o Machado nos primeiros anos da escola, lembrava muito bem que durante dois anos ficaram sentados lado a lado na sala de aula, que trocavam de lanche quando o recheio do sanduíche de um agradava mais ao outro. E depois mais dois anos em salas diferentes, juntos só no recreio entre as aulas.
A família do Machado mudou de cidade, encontraram-se uma vez na adolescência, lembrava muito bem que havia sido na fila do cinema, a família do Machado tinha voltado, mas já estava de planos para outra mudança. Depois demorou para um novo encontro, demorou tanto que quase houve esquecimento.
No dia em que viajou para o litoral houve a coincidência, o Machado escolheu o mesmo dia para ir à praia e o mesmo bar na beira do mar para beber uma cerveja, beberam muitas. O Machado disse que achava engraçado que o primeiro porre dos dois juntos tenha sido já adultos, que achava estranho que não tivessem feito isso na juventude, pediu mais uma, e não deixaram mais chance para o esquecimento.
Ele olha hoje para o Machado na fotografia do jornal, é a fotografia de um acidente de automóvel, o Machado está no meio da aglomeração olhando para a cena dos enfermeiros carregando gente. Como os dois têm a mesma idade, ele sabe que o Machado está com 63 na fotografia, e com cara de tristeza, tristeza pelo azar dos outros.
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A vizinhança toda viu quando o caminhão descarregou um banquinho com uma roda de bicicleta na casa do Manoel.
Pode não ter sido a vizinhança toda, mas quem viu espalhou e a vizinhança toda ficou sabendo que um caminhão descarregou um banquinho com uma roda de bicicleta na casa do Manoel.
Quem viu, sempre contava. Quem não viu, quem ficou só sabendo porque contaram, também contava que viu o homem do caminhão descarregando um banquinho com uma roda de bicicleta na casa do Manoel.
Os que não eram da nossa vizinhança não queriam acreditar, diziam: estão tentando enfiar uma invenção pela nossa goela. Um caminhão descarregou um banquinho com uma roda de bicicleta na casa do Manoel? Estão fabricando uma lenda, disseram.
Isso chateou muito a nossa vizinhança. Dizer estão fabricando uma lenda é como dizer que ser lenda desmerece uma história.
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Mandou fazer uma cópia da chave de casa, segurança para o caso de perda.
Chegou em casa e enfiou a chave original na porta, percebeu que era a original porque havia arranhões, trocou pela cópia para testar. Abriu a porta com a cópia.
Pelo lado de dentro da porta, quando foi trancá-la, reparou que as duas chaves não eram idênticas. Os dentes da chave original eram diferentes do desenho da cópia.
Testou as duas chaves na porta, funcionaram com perfeição, entrando na fechadura, girando nas duas direções. Testou várias vezes, as duas chaves diferentes eram iguais. Nunca havia sentido tanta segurança dentro de casa.
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Eu disse que ia viajar e inventei o nome da cidade. Perguntaram onde ficava. Eu inventei o nome do estado. Eu disse que era a terceira maior cidade do estado, inventei o nome das outras duas, disse que uma das outras duas era a capital do estado.
Perguntaram se era uma boa cidade. Inventei que ficava num vale, estava cercada de colinas cheias de árvores e inventei que passava um rio muito verde e cheio de peixes.
Inventei a origem da população, usos e costumes, inventei o folclore, a atividade econômica, a importância política dela no estado e inventei duas ou três personalidades que nasceram lá.
Descrevi a área urbana, inventei avenidas e prédios, tráfego, ônibus e trens, inventei uma universidade, uma biblioteca, uma catedral gótica e uma companhia de ópera.
Então perguntaram quando eu voltaria, mas aí já estavam querendo saber demais.