Por Rogério Pereira e Paulo Polzonoff Jr.
Ao abrir Errâncias (Editora Senac, 202 págs.), o último livro de Décio Pignatari — em comemoração aos 50 anos de sua carreira literária —, o choque é inevitável. É como tocar em fio elétrico descascado com a mão molhada. Pode até não matar, mas causa um mal estar temporário. Ali, lê-se cravada sobre o papel a afirmação laudatória do editor: “Um livro novo de Décio Pignatari deve ser considerado na medida justa: é um acontecimento que acrescenta algo à inteligência do país”. Mentira. Cada nova linha desse teórico da comunicação (e é só o que ele é), que aportou em Curitiba há pouco mais de um ano, é um engodo que pretende ser alta literatura, sendo tão-somente mais um libelo de louvação egocêntrica.
Esta nova obra (o termo não é exato) de Décio Pignatari não oferece nada. Ou, por outra, talvez nos ofereça “matéria de pensamento” para uma análise crítica do autor que, em 1956, ao lado dos irmãos Campos — Haroldo e Paulo — foi um dos inauguradores do Movimento Concretista no Brasil, movimento este que pretendeu a introdução da razão como principal matéria-prima do poema, usando, para tanto, jogos lingüísticos e trocadilhos que ficariam melhor num belo rabisco de criança. Exemplo clássico dessa vanguarda anacrônica é o poema de Décio Pignatari intitulado Cloaca, sendo, este título mesmo, designativo do conteúdo do poema:
beba coca cola
babe cola
beba coca
babe cola caco
caco
cola
c l o a c a
Além do poema acima, a maior contribuição de Pignatari e sua poesia concreta foi servir para que bêbados — na loucura ébria, todos consideram-se poetas — pichassem muros com insanidades geométricas cloaquianas. Pobres muros.
O nascimento — Mas como surgiu a poesia concreta? O Brasil daquele longínquo 1956 tinha, ainda vivos e produtivos, autores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Sérgio Buarque, Clarice Lispector, Otto Maria Carpeaux, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Vinícius de Moraes e Antônio Callado. A lista, na verdade, alongar-se-ia (ops! mesóclise) por toda esta página fossem citados aqui todos os nomes importantes da prosa e poesia brasileira daquela época. Para entender melhor o surgimento da fraude concretista, recorreremos à imaginação — será que os concretistas vão entender este recurso?
Numa festa estão reunidos os nomes acima citados. Os poetas recitam suas recentes lavras; os escritores comentam uns com os outros a quantas anda aquele capítulo encalhado; os críticos debatem, rindo, o rico panorama cultural que têm o prazer de analisar; e os cronistas já preparam o delicioso texto da manhã seguinte. Nessa festa perfeita, entram, com um pontapé na porta, de tacape à mão, os Três Cavaleiros do Apocalipse Literário: Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Os convidados se assustam. A música (Tom Jobim toca num piano ao fundo) é suspensa. Aos gritos, proclamam as bestas do futuro árido e estéril: “O verso está morto!”.
Foi mais ou menos assim que nasceu a descabida poesia concreta. A morte do verso estava entre os principais tópicos do chamado “Plano-Piloto”, que propunha, ainda, uma poesia baseada em elementos geométricos e numa sintaxe que se aproximasse das artes gráficas. Mais tarde, diria um dos magnânimos desta nova pseudo-estética, Haroldo de Campos: “Toda grande poesia é concreta”. Bobagem. Para acabar com a festa literária brasileira, Augusto tem na ponta da língua um discurso intelectualóide: “Era tarefa da poesia concreta prosseguir na desmontagem das estruturas verbais do discurso contratual, insuficiente para abranger o universo da imaginação e da sensibilidade”. Que o diga Manuel Bandeira; ou Mário Quintana; ou Drummond, todos poetas insensíveis e de parca imaginação lírica, sobre quais versos os alfarrábios da trupe concretista predominariam, tivesse razão a ilusão do trio.
Da falácia em torno da morte do verso, unidade básica e, dessa forma, primordial à poesia, disse o sóbrio Carlos Drummond de Andrade, do alto das jazidas de ferro de Itabira: “Esse negócio de poesia concreta é bobagem”.
Ao longo dos últimos 44 anos (no caso da poesia concreta) ou 50 anos (na trajetória poética de Pignatari), o Brasil que se propõe a resolver algumas coisas de ordem não muito prática (nada prática!), como a literatura, travou feroz batalha com os irmãos Campos e o neocuritibano Décio Pignatari, precursores do que se convencionou chamar “poesia concreta”. À poesia concreta, o silêncio, proclamaríamos, não fossem os produtos e subprodutos que esta “vanguarda de ocasião” ainda colocam no mercado, com o aval de uma intelligentsia burguesa que — pasmem! — a poesia concreta quis combater. Não é caso aqui, portanto, de combater o passado imutável; é preciso, contudo, analisar o que foi esta grande fraude literária e quais são seus efeitos na produção poética atual.
Ter a poesia concreta como vanguarda é uma afirmação digna da mais absoluta ignorância. Porque toda a quebra de sintaxe que ela propunha já estava presente, de forma muito mais eficaz, em Joyce e, no Brasil, em Guimarães Rosa. Nas artes plásticas, há muito o tal do “discurso contratual” havia falido, seja pela genialidade de Picasso ou Dali, seja pela audácia (ainda que também esta fraudulenta) de Duchamp. Vanguarda muitíssimo atrasada esta da poesia concreta, que é, num plano canônico, posterior a e.e. cumming, Ezra Pound, Mallarmé e até ao insosso Maiakovski.
Uma macaquice provinciana, isto sim, o que foi o movimento concretista, tido como revolucionário. E também autoritário, dono de uma retórica fascista, que propunha a exclusão de todo e qualquer poeta que não se encaixasse em sua proposta débil de ruptura com a chamada “Geração de 45”, que se deu sem a sensibilidade do também antilírico João Cabral, e de continuação do modernismo de 22, que passou ao largo da originalidade de Oswald e Mario de Andrade. A “doutrina da exclusão”, proposta pela Tríplice Aliança do concretismo, é a responsável, entre outras aberrações, pela ausência de Baudellaire, Apollinaire e Lorca, para ficar só entre os mais conhecidos, no que se convencionou chamar “paideuma”, uma espécie de cânone proposto pelo movimento, que até hoje, de uma maneira mais indireta, dita o que deve ou não ser lido no Brasil.
Não se pode esquecer, ainda, de mencionar o caráter político da poesia concreta, que sempre teve no socialismo algo de inspirador. Não é à-toa, por exemplo, que entre as raízes da poesia concreta está o poeta russo Vladimir Maiakovski, versejador de pena tão rica quanto ricas eram as fachadas dos prédios stalinistas. A poesia concreta sempre andou de mãos dadas com certa retórica marxista que propunha o fim do eu-poético como afirmação de uma arte coletiva, baseada em algo como o “nós-proletário-poético”.
Poetas de grosso calibre flertaram com a poesia concreta, entre eles Manuel Bandeira e Ferreira Gullar, os quais, logo em seguida, foram os mais duros críticos do movimento. O episódio que atentou Gullar para a fraude foi a proposição, por Haroldo de Campos, de um poema feito a partir de equações matemáticas, o que, obviamente, nunca se realizou, mostrando, assim, o charlatanismo por detrás da teoria do concretismo.
Quando indagados sobre as críticas que a poesia concreta recebeu e receberá sempre por quem quer que tenha uma visão menos tecnocrata da literatura, os irmãos Campos & Décio não se contêm em citar a crítica ferrenha de Silvio Romero a Machado de Assis ou à recepção nada unânime que Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, recebeu quando de seu lançamento. Quanta pretensão! Mas a proposta dos concretistas, hoje em dia, é outra. É de Augusto de Campos, a afirmação segundo a qual “a persistência das críticas reflete a vitalidade das propostas da poesia concreta que, ao que tudo indica, continua a incomodar”.
Como se defunto exposto não cheirasse mal.
Ainda chega às nossas narinas o cheiro podre do concretismo, consubstanciado na verborragia ininteligível, nos grunhidos primitivos, na performance pseudo-artística de Arnaldo Antunes; ou na literatura iconográfica de aspirações pop de Valêncio Xavier, tido por Décio Pignatari como o maior escritor latino-americano (mais que Rosa? mais que Borges? mais que Cortázar? mais que Dalton Trevisan?). Aliás, em Errâncias, Pignatari abre o capítulo sobre o amigo Xavier com o engodo palavrório: “Estranha, muitas vezes intrigante, raramente interessante essa categoria de artistas que, tendo algo de primitiva, não é naïve. Na área da visualidade, o fenômeno da arte primitivista está passavelmente mapeado, embora em abordagens heteronômicas, de fácil concoctagem psicossociologizante […]” (pág. 129). O jornalista Élio Gaspari bem que poderia conceder a Décio, por tão empolada frase, um de suas bolsas Madame Natasha de português. Afinal, se algumas palavras levam ao inferno, como “passavelmente mapeado”, “abordagens heteronômicas”, “concoctagem psicossociologizante” Pignatari acaba de reservar seu espaço nas labaredas ao lado do demônio.
É também subproduto do ideário concretista a moda ideogramática dos haicais pseudo-orientais de Alice Ruiz & sua intrépida turma.
Daquela fictícia festa da “Geração de 45” morreram todos. O verso, contudo, resistiu à investida do Eixo do concretismo. Depois de pelo menos três décadas moribunda, a poesia brasileira começa a dar sinais de reestruturação, seja pela poesia satírica de Glauco Mattoso, que resgata a tradição do soneto, seja pela metafísica de Bruno Tolentino — provavelmente o melhor poeta brasileiro vivo — ou ainda pela clareza e segurança dos versos de Affonso Romano de Sant’Anna. Afinal, não será pelo “analfabetismo teorizado” dos concretistas que acabará a festa, que descansará a pena, que morrerá o poema.
É por isso que o editor de Errâncias (possivelmente o título do livro tenha um sentido concreto, algo como a junção das palavras erro e ignorância, que tão bem definem a obra de Pignatari) deveria ter alertado os leitores: “Um novo livro de Décio Pignatari deve ser considerado na medida justa: é uma fraude que nada acrescenta à inteligência do país”.