Pellegrini tira a máscara

Como no peito do poeta, cabem no mais novo romance de Domingos Pellegrini, O Caso da Chácara Chão (Record, 2000) todos os sentimentos do mundo
Em “Caso da chácara chão” Domingos Pellegrini propõe um debate sobre cidadania, política, honestidade e vida
01/07/2000

Como no peito do poeta, cabem no mais novo romance de Domingos Pellegrini, O  Caso da Chácara Chão (Record, 2000) todos os sentimentos do mundo. E é de  forma hábil, às vezes surpreendente, com a realidade e ficção, almas-gêmeas abraçadas do início ao fim, que ele conduz esses sentimentos, ora mesquinhos e ora virtuosos, para contar uma estória, que poderia ser, ou é, história no cotidiano de brasileiros. E o faz também como espelho, autor e personagem, em romance quase autobiográfico, a partir de uma chácara, uma ilha de paz, a escolha de um escritor e sua família para isolar-se da cidade, que perde seus bálsamos e transforma-se no epicentro infernal de uma trama policial. A chácara fica ao lado do Conjunto Primavera, na Rua das Rosas, em lembranças florais, e o início da estória se dá durante o Carnaval. Algo que lembra muito bem os meridianos dessas cidades e/ou suas emoções.

É mais uma certeza de que Pellegrini evolui para um dos nomes mais fortes do romance feito no Paraná, depois de haver escrito o apaixonado e apaixonante Terra Vermelha (Editora Moderna, 1998) e Questão de Honra (Moderna, 1999). O primeiro sobre a formidável aventura de desmembramento do Norte do Paraná e o segundo sobre o episódio da Retirada da Laguna.

É na delegacia de polícia, ralo para onde escorrem as misérias humanas e para onde jornalistas são escalados e escolados na sua prática diária da desconfiança dos fatos, que tem início o romance, centralizado no casal Manfredini e Olga. Páginas que se sucedem sobre o fértil terreno dos sentimentos humanos, nem  sempre nobres e nem sempre miseráveis. Fatos atropelados, inesperados, como cortes cinematográficos, incoerentemente de forma anárquica, mas ordenada, vão sendo apresentados ao leitor, com a sedução de quem aprendeu a maquiar o jornalismo com literatura. Ou seja, Manfredini é o próprio Pellegrini. Ou  vice-versa.

Mas, isto não tem valor decisivo porque é superado pela qualidade do romance,  que busca virtudes e defeitos de homens, mulheres e crianças, sem  sentimentalismos ou piedades demagógicas. E que vai além: questiona o próprio passado e presente político do escritor (Manfredini ou Pellegrini?), duvidando das crenças, ideologias, dogmas, e das práticas politiqueiras da “democracia” que permite e/ou incentiva a troca de votos por dentaduras ou não proíbe que seja exercida a cidadania em exemplos diversos. Por exemplo: permitir que carros  de som, com decibéis alucinados, perturbem a paz de qualquer cidadão em sua  própria casa.

É da terra, literalmente, que o autor faz brotar seu mais novo trabalho.  Ilhado em sua chácara, na periferia das “mesquinharias” urbanas, ele, retornando das decepções revolucionárias marxistas e de experimentos capitalistas, e sua  família, constituída por sua segunda mulher (Olga Filipov) e um filho do primeiro casamento, Paulinho, e Verali, que nasceu da união do escritor com Olga  podem conviver com as dificuldades, o suor e a poesia de se construir um mundo próprio, pleno de plantas, sombras, animais. Corte. Mas, o mundo continua  pulsando. E ele é envolvido pelo novelo da violência e da corrupção, que tem  início no mais simples policial e extrapola para os níveis superiores da Justiça, passando por um circo paralelo, que inclui familiares de sua esposa, vizinhos, jornalistas, advogados, bandidos. O enredo soma os aprendizados agrários em um pequeno paraíso de quem nasceu e se criou na terra roxa do Norte do Paraná, a mancha mais produtiva do planeta, movido a pequenas paixões, como plantar e ver nascer frutos e flores, ao inferno absurdo de quem foi assaltado por uma dupla de viciados e se vê na contingência de pagar ou ser condenado por  este “crime”. O circo esparrama-se para inúmeros setores da cidade (sociedade),  causando angústia, aflição, devassa, medo até na filha do casal, a pequena Verali, que é obrigada a abandonar a escola, até aos seus animais e plantas.

É com este adubo que Pellegrini seduz o leitor. É um livro para quem quiser ler e aprender. Inclusive aprender a plantar. A conviver com o clima, podar as plantas em dia de lua cheia, ter paciência para os procedimentos mais simples do homem rural etc. É uma espécie de manual agrário, que pode ser lido como agenda  de conduta moral. Os exemplos são fartos, como é farta a colheita de frutos, agrícolas ou morais, semeados pela família Manfredini. São informações torrenciais, como a chuva que despenca vermelha, das primeiras à última página  do livro. Os detalhes são mínimos para quem pretende colher mais do que uma  simples leitura de mais um livro. Enquanto desfia a trama policial, com as idas  e vindas da Justiça e do encardido mundo policialesco, Pellegrini propõe ao leitor um debate reflexivo sobre visões de cidadania, de política, de honestidade, de humanidade, de vida. E não deixa de semear curiosidade, avidez pelo próximo capítulo ou página.

No desfecho, o bem sobrevive, embora esta não seja a temperatura durante toda  a trama ou em cada cena de questionamento humano presente nas páginas do livro e  exposta pelo autor. Sobrevive o bem talvez porque o personagem, e/o autor,  continue acreditando na solidariedade humana, sem griffes ou chancelas  políticas. Ou porque entenda que o homem é a terra mais fértil para se plantar o  bem.

Nilson Monteiro

Nasceu em Presidente Bernardes (SP). É jornalista em Curitiba. Autor de Curitiba vista por um pé vermelho, Simples e Pequena casa de jornal, entre outros.

Rascunho