Um homem na fronteira da realidade e da ficção

A ficção, quando procura ser instrumento para explicar a realidade, corre dois riscos básicos, dentre muitos
Pepetela tem um ritmo diferente, parece misturar a secura do português com ritmos angolanos
01/07/2000

A ficção, quando procura ser instrumento para explicar a realidade, corre dois riscos básicos, dentre muitos. O primeiro é o autor esquecer a história verdadeira, o que de fato aconteceu, para dar vida a personagens imaginários, com problemas imaginários, e consequentemente desligados e afastados dos acontecimentos reais. O segundo é dar ênfase demais à história, e daí esquecer o papel da ficção, que é iniciar na realidade e abstrair para conceitos maiores a respeito da vida e da condição humana.

Artur Pestana, ou melhor, Pepetela, escritor angolano, 60 anos, laureado com o Prêmio Camões de Literatura em Língua Portuguesa de 1997, em Portugal, trafega no limiar dessas duas fronteiras. Dois livros lançados agora no Brasil pela Nova Fronteira, A Gloriosa Família — O tempo dos Flamengos (410 págs.) e A Geração da Utopia (384 págs.), são um claro exemplo de como o escritor se equilibra entre a necessidade de contar a história, principalmente por ter feito parte de um pedaço dela, e de contar estórias, como ainda se usa no português angolano.

Antes de entender a prosa de Pepetela, é importante conhecer um pouco da história de Angola, e de como ela afeta a vida do artista e sua obra. Angola começou a ser ocupada pelos portugueses no século XV. O princípio básico para a ocupação do país é o tráfico de escravos. Estima-se que entre os séculos XVI e XIX três milhões de angolanos tenham sido enviados como escravos para o Brasil. As rivalidades tribais permitiam que os portugueses se associassem a um, ou a outro grupo, que em constantes guerras entregavam os inimigos aos comerciantes. A questão do tribalismo é importante, pois perdura até os dias de hoje.

Em 1961, nasce a União dos Povos Angolanos (UPA), primeiro movimento de luta armada contra o domínio colonial português. A independência não viria antes de 1975, mas não da forma como os primeiros combatentes pela libertação imaginavam. A essa altura, o Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA), multirracial mas com predomínio da etnia quimbundo, a Frente Nacional para a Libertação da Angola (FNLA), com base na etnia bacongo, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), de forte presença na etnia ovimbundus, já se digladiavam em uma guerra civil que atormentou o país até o ano passado. É sobre esse cenário de guerras étnicas, de luta pelo poder, e muitas vezes para governar sobre a terra devastada e pobre, que escreve Pepetela.

A Gloriosa Família, livro que deu a Pepetela o Prêmio Camões de1997,  relata a história da família Van Dum, ou melhor, conta a história da ocupação holandesa em Angola. Como no Brasil, onde os holandeses se instalaram em Recife, na África a Companhia das Índias Ocidentais, braço financeiro do Príncipe de Orange, buscou marcar posições no tráfico negreiro da época. A ocupação holandesa em Luanda durou de 1641 a 1648. O período descrito no livro vai de fevereiro de 1642 a agosto de 1648.

O narrador da história é o escravo pessoal de Baltazar Van Dum — um flamenco que se instala em Luanda para se dedicar ao comércio de escravos. Apesar de nascido na Holanda, Baltazar já havia passado por diversas guerras na Europa, e aprende que a principal forma de sobrevivência é o comércio. Por isso, tem boas relações tanto com os dominadores holandeses como com os portugueses, momentaneamente exilados no interior de Angola. Baltazar sintetiza o estrangeiro que busca sobreviver assimilando todas as características das culturas que conhece. É católico, mas não fervoroso, casado com uma negra, e com diversos filhos mulatos. Tem filhos que se relacionam com negros, com portugueses, com holandeses, com outros mulatos.

O escravo-narrador é mudo. Isso explica sua quase onisciência dos fatos, e a absoluta não intervenção em quase nenhum ponto da narrativa. Quase porque em um momento, como uma alegoria da conquista da liberdade que a ele está impedida, ele ajuda uma escrava coxa a recuperar seu filho, gerado por um dos descendentes de Baltazar. A luta entre a escrava e a esposa legítima é simbólica. Dona Inocência é negra, mas toma o partido do colonizador, e acredita que seus netos, ainda que gerados por escravas, são seus filhos. É o embate entre quem aceita e quem resiste ao jugo do conquistador. É o racismo visto não apenas como cor de pele, mas de cultura.

Esses conflitos raciais marcam também o segundo romance de Pepetela lançado no Brasil, A Geração da Utopia. O cenário continua sendo o império colonial português, mas seus estertores, no século XX. Por meio de quatro personagens principais, Sara, média e branca, e os negros Malongo, jogador de futebol, malandro e comerciante, Aníbal, o Sábio, guerrilheiro e auto-exilado, e Vítor, o Mundial, também guerrilheiro, oportunista e político profissional, Pepetela conta a história de uma geração que pensou ser capaz de buscar a independência de um país por meio da luta, e quando conseguiu atingir seu objetivo, não soube dizer se valeu a pena ou não.

Como em A Gloriosa Família, Pepetela divide a narrativa em espaços temporais bem definidos. Além do tempo, as locações também indicam as mudanças pelas quais passam os personagens. Da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, vamos para a Chana (savana), já em plena época de guerrilha, passamos pelo Polvo, em Caotinha, no litoral angolano, e finalmente chegamos ao Templo, em Luanda. O passeio busca mostrar a evolução da luta pela independência angolana, através de personagens simbólicos. Cada capítulo é dedicado a um personagem, pela ordem Sara, Vítor, Aníbal e Malongo.

O grande pecado de Pepetela neste livro, ao contrário de A Gloriosa Família, é tentar abraçar toda a complexidade desse período de trinta anos, sem ter o foco em um personagem específico. No início, ficamos presos aos dramas de Sara, grávida de Malongo, e de sua busca para a independência. Cada capítulo traz um epílogo, talvez uma tentativa do autor de encerrar a discussão, para poder reabri-la nas próximas páginas sem problemas de consciência. A cada reinício, porém, o leitor ainda procura pelos dramas anteriores, que são resolvidos de forma oblíqua, através das reminiscências da personagem que é o centro das atenções. Nessa busca, perde-se o enredo principal, que teoricamente seria a independência de Angola.

Os longos intervalos entre um capítulo e outro também deixam a história repleta de pontas soltas. O autor parece perceber isso, e busca amarrar os fatos com diálogos sobre o que aconteceu. O passado guerrilheiro do autor também influencia o texto, sendo que às vezes descamba para discussões sobre o tribalismo, sobre a influência nefasta do poder no caráter das pessoas, sobre sistemas políticos e uma discussão longa e entediante, no final do livro, sobre o papel das igrejas pentecostais no novo capitalismo neo-liberal.

Nos dois livros, porém, a tentativa do autor de abraçar o mundo com as pernas força-lhe a buscar finais abruptos. Enquanto o início e o meio se desenvolvem bem, principalmente em A Gloriosa Família, os dois finais parecem meio colocados à força, para dar uma satisfação ao leitor antes que ele se canse.

A impressão maior que ambos os livros provocam é a de um estrangeiro escrevendo sobre lugares que não lhe pertencem. No primeiro caso, é o escravo mudo descrevendo o mundo dos portugueses e holandeses na Luanda colonial. O drama dos escravos é contado, mas sempre de maneira oblíqua, nunca diretamente. A consciência de ser escravo poucas vezes aparece no relato, e sempre na forma “como se um escravo pensasse”, e frases do gênero. No segundo, ainda que narrado em terceira pessoa, são sempre pessoas deslocadas de seu lugar original, em busca de um retorno que, no fundo, todos sabem ser impossível.

Um guerrilheiro das letras
Pepetela, pseudônimo de Artur Pestana, nasceu em Angola, na província litoral de Benguela, aos 29 de Outubro de1941. Descendente de uma família colonial, os seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola. Em 1958, ele segue para Lisboa, para estudar no Instituto Superior Técnico. Em 1960, ingressa no curso de engenharia, que imediatamente abandona para entrar no curso de Letras. Mas em 1961 larga tudo, abraçando a opção política, que iria marcar o resto de sua vida.

Em Lisboa, Pepetela esteve ligado à Casa dos Estudantes do Império. A decisão de ingressar na política o fez tomar o mesmo caminho de tantos outros que optaram por ingressar no Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA): fugir de Portugal, com destino a Paris, e dali para Argel, receber treinamento militar e teórico sobre a guerrilha. Pepetela participou ativamente das lutas pela independência, tendo inclusive comandado o MPLA na tomada da cidade portuária de Lobito, o que impediu a divisão do país pouco antes da independência de Portugal. Problemas de saúde o afastaram da guerra, mas o contato com o governo sempre se manteve. Ele vai para Luanda em outubro de 1976, e é nomeado vice-ministro da Educação, cargo que exerceu até 1982.

Quando abandona a vida política, opta pela carreira de professor de sociologia no curso de Arquitetura da Universidade Nacional de Angola, em Luanda, onde dá aulas, sem nunca abandonar a carreira de escritor.

Pepetela é autor de doze livros, entre romances, teatro e ensaios. Para o leitor, a maior estranheza é reconhecer quase todas as palavras (alguns termos usados apenas em Angola contam com tradução no livro), mas sentir uma musicalidade diferente no texto. Ele tem um ritmo diferente, parece mesmo misturar a secura do português de Portugal com os ritmos angolanos. A nota triste fica por conta da distribuição. Apesar de escritos em português, há apenas três livros de Pepetela disponíveis no Brasil (o terceiro é Mayombe, editado pela Ática). No site Amazon.com, podemos encontrar sete livros do autor, traduzidos para o inglês. Mais uma pequena prova de que a integração entre os povos de língua portuguesa demorará para acontecer.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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