O nome é poético: Vou Lá Visitar Pastores. Bonito. O autor, Ruy Duarte de Carvalho, é reconhecidíssimo na África e em Portugal. A leitura, portanto, parece ser agradável, fluida. Dizem os críticos lisboetas que, apesar de ser um estudo antropológico — sobre colônias de pastores angolanos, no território kuvale, sudeste de Angola —, o livro tem muita poesia. Seria, portanto, um livro incatalogável. Seria, não fosse ele única e exclusivamente um relato antropológico. De poesia, mesmo, muito pouco. Quase nada. Quase, porque em alguns trechos perdidos, bem antes do meio do livro, temos a sensação de poesia. De beleza na escolha das palavras. […] E há um rumor de estrelas a que, por vezes, súbito, se acrescenta o grito, sideral, de algum astro cadente. E o permanente caudal, que sempre entendi de esperma, da via láctea, suspensão morosa na uterina fluidez da noite. Até que a lua nasce a confirmar contornos guardados intactos pela minha vigília. […] (págs. 114 e 115). Puro delírio de um escritor preso no meio de um deserto, graças a um enguiço no carro que o levava a conhecer a vida de pastores de bois. Mas depois de duas páginas de literatura mais fluida volta-se ao seco relato das tais colônias.
Nada contra. Afinal, Carvalho é, a rigor, um antropólogo. Mas teve algumas experiências com cinema. É poeta, também. Um antropólogo-poeta-cineasta-sociólogo-professor, administrador de fazendas e criador de gado. Nos filmes também dedicou-se à captura de imagens que reflitam a vida dos angolanos mais puros, mais sábios talvez. Nas poesias, relata o amor à África, continente natal, cheio de mistérios e beleza. Mas é no relato, puro e simples, de suas pesquisas que, acredita, encontra sua verdadeira vocação. Ou, pelo menos, satisfaz sua necessidade de tentar conhecer a fundo os povos que formam o país onde mora.
Vou Lá Visitar Pastores (Griphus, 387 págs.) foi lançado no ano passado, em Portugal. Este ano, chegou ao Brasil. É um relato da viagem de Carvalho pelo Sudoeste de Angola — mais precisamente na província do Namibe —, onde procurou conhecer (ou reconhecer) as colônias de pastores de gado nômades. O livro é resultado da transcrição quase que integral de uma espécie de diário de viagem, gravado em fitas cassete, para um jornalista da BBC de Londres que deveria acompanhá-lo na viagem, em 1997. O jornalista não apareceu e, para não perder a viagem, Carvalho transcreveu as fitas. Daí o estudo.
Para qualquer leigo na história africana — o que, acredito, represente cerca de 95% da população mundial, a exceção, talvez, daqueles que morem na África — nomes, lugares e citações do antropólogo funcionam apenas como pistas. O próprio Carvalho, que foi lá visitar pastores por duas vezes, dá indícios de que, para realmente conhecer a história desses nômades seria necessário ter um contato mais direto com eles. Oferece a descrição das vestes, dos hábitos, das crenças e do modo de vida dos kuvale. Aguça a curiosidade dos leigos. Mas não esclarece. Pelo contrário.
São diversas colônias similares, mas com várias características diferentes umas das outras. Têm nomes esdrúxulos para nosso parco vocabulário e complexos demais para nossos ouvidos. Termos como bwandyie (o equivalente a parentes), dyai (homens corajosos, guerreiros), makumukas (espíritos que incidem sobretudo sobre mulheres e lhes obrigam a consumir carne), mwingona (filhos que receberão os bois quando os pais morrerem), recheiam o livro e, até que o leitor se familiarize com eles — o que pode até não acontecer — dificultam ainda mais a leitura, que já não é muito fácil.
Não é fácil por vários motivos. O desconhecimento histórico sobre Angola é um dos empecilhos. O maior, talvez. Outro é a própria escrita de Carvalho. O texto é bastante coloquial, já que é uma transcrição do diário da viagem. Ocorrem, portanto, alguns deslizes de concordância (o que é imperdoável, já que o livro passou por uma editoração e supostamente, uma revisão), além de infindáveis apostos — aquelas explicações dentro de uma frase. Isso que acabei de fazer. Mas não são simples apostos. São apostos dentro de apostos de apostos. Algumas frases ficam ininteligíveis. […] Depois, onde é que os bois estão a pastar, ninguém vai lhes encontrar o rasto, a própria pessoa muda-se em qualquer animal, em punia, por exemplo, ou mais tarde você está a olhar, parece que é um arbusto, afinal é pessoa, esse homem é o tal de ondyai, é um desses chefes que praticam esses serviços, organizam os seus grupos, todos estão a entender as ordens dele, vamos no sítio tal, essas pessoas também são preparadas por ele, começa a moer esses paus, a ciência dele é a botânica, arranja uma corda desse pau de mahuaína, o fio enrolado, cada pessoa está a ir com ele ele faz um nó, aquilo é amarrado, amarra, amarra, amarra, cada nó é um, assim ninguém vai morrer lá, se morrer é culpa dele. […] (pág. 85). O quê?
Estudante de antropologia e leitor ávido por conhecer história também são gente. Também merecem consideração por parte do escritor e da editora. Uma revisão e uma pontuação diferente não seriam de todo más. E as ilustrações… Sim, o livro tem algumas figuras para tentar melhorar o entendimento. Melhor seria se não existissem, no entanto. Com certeza o leitor já ouviu falar daquela técnica que os psicólogos usam, em que mostram uma figura, uma mancha, e a pessoa deve dizer o que está vendo. Pois bem. As ilustrações do livro são mais ou menos isso. Umas manchas indecifráveis. Em algumas é possível ver uma silhueta, em outras, adivinhar umas casas ou coisas assim. Mas há um glossário. No fim do livro. Ao ler alguns termos mais complexos é preciso parar a leitura, ir ao final do livro, consultar o significado e retomar a leitura — que, muitas vezes já se perdeu. Aquelas notas de rodapé cairiam bem, neste caso.
Mas, fora isso, uma coisa se salva na obra. A história dos kuvale é interessante, depois de passada a sensação de que se está dentro de uma sala de universidade tendo uma aula de antropologia ou sociologia. A organização social e a sabedoria desses povos nômades são fascinantes. A grosso modo, o que as quase 400 páginas do livro querem dizer é que todas as colônias kuvale nascem, crescem e morrem em função dos bois. Mesmo o “dinheiro” deles é o boi. A herança desses macubais (esses povos kuvale, que sofreram muitíssimo com as constantes guerras pela independência de Angola, especialmente a de 40-41, em que milhares deles foram mortos ou extraditados para S.Tomé e Príncipe) são os bois conquistados ou roubados. Sim, a maior fama dos macubais é a de ladrões de gado.
Mas são espertíssimos. O gado que cada homem — porque a mulher, como na maioria das sociedades nômades, cuida da agricultura e dos filhos — conquista não fica em um único local. É dividido entre vários parentes. Especialmente aqueles que são herdados. Assim, quando um homem precisa de um boi pode procurá-lo em qualquer parente (é mais ou menos assim como um acionista da bolsa de valores, que aplica em várias ações, não concentrando em apenas um investimento). Dessa forma, caso haja um período de seca em determinada região, ou os saques sejam constantes, é mais difícil a família perder todos os bois.
Mas, ao terminar de ler o livro — a não ser que o leitor seja um antropólogo ou estudante, é impossível não pensar que desperdiçamos umas seis horas, no mínimo, para descobrir o que já se sabe. Complicamos tudo demais. Carvalho complicou demais. Foi lá complicar pastores.