Já está na praça mais um CD “ao vivo”, bem como gostam os executivos das grandes gravadoras, aqueles que têm ouvidos apurados para artistas que possam engordar seus caixas e que fazem vistas grossas para quem quer renovar a débil cena musical brasileira. É também um CD feito com “banquinho e violão”, prática recorrente entre os bam-bam-bans da MPB, que depois de consolidar o prestígio da carreira fazem uma lista de sucessos e sobem num palco qualquer para gravar um CD e forrar a conta bancária.
Mas as semelhanças com o estilo caça-níqueis param por aí. O novo CD de Adriana Calcanhoto, Público, não é um amontoado de hits com apelos radiofônicos. Parece mais um álbum de carreira, coerente com a vereda musical desta gaúcha que começou a ganhar o Brasil em 1989, quando apresentou versões que deram nova dimensão a músicas como Toda Forma de Poder (de Ney Lisboa gravada pelos Engenheiros do Hawaii) e, acreditem, Caminhoneiro, de Roberto Carlos.
No meio destas músicas ela já mostrava que a grande compositora estava em formação, introduzindo os versos de Enguiço.
Em Público, o mais recente trabalho, Adriana conseguiu um resultado surpreendente. A faixa que abre o disco é E o Mundo não se Acabou, clássico de Assis Valente. “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar…”. A divertida escolha foi uma grande sacada para este fim de século, período em que os boatos sobre o fim do mundo aumentam.
A competência da compositora foi atestada justamente nas releituras. Mais Feliz, de Cazuza, virou quase um hino de amor com versos cantados com a delicadeza de uma declamação. Vambora é uma faixa com o mínimo de recursos musicais necessários para realçar a bela letra, que tem como tema a separação. “Ainda tem o seu perfume pela casa/ainda tem você na sala/porque meu coração dispara/quando tem o seu cheiro/dentro de um livro/dentro da noite veloz…na cinza das horas”. E segue numa súplica: “vem vam’bora/ que o que você demora/ é o que o tempo leva…”
Outro grande momento do CD é a música feita por Adriana especialmente para os versos do poeta português Mário de Sá Carneiro. Ela conta no CD que chegou à obra do poeta por meio de um convite da Editora Nova Aguilar para fazer o lançamento das obras completas de Mário de Sá Carneiro.
Segundo ela, “…um poeta atormentado com a poesia dele, com a poesia em si, com o fato de ser gordinho, com a morte. De uma tal maneira que aos 27 anos, vestiu smoking não conseguiu esperar e se matou. Bichinha complicada com uma poesia não menos densa…” O fato é que Adriana reconheceu a grandeza do poeta, se debruçou sobre os textos e musicou alguns com maestria. Entre eles O Outro, um dos mais conhecidos: “eu não sou eu/nem sou o outro/sou qualquer coisa de intermédio/pilar da ponte de tédio/que vai de mim para o outro…”
Assim a musicalidade de Adriana revigora textos originalmente feitos para serem lidos. O mesmo aconteceu com Remix Século XX, que ela prefere chamar de Polyvox. É um poema interativo de Waly Salomão que traça uma elipse do mundo.
O registro “ao vivo” captou a interpretação carismática de uma artista em ebulição. É um grande disco de quem amadureceu o talento sem perder o sentido ético, um dos poucos que ainda consegue espaço em meio ao lixo radiofônico do nosso tempo.