Acenando com o falso óbvio

Já está na praça mais um CD “ao vivo”, bem como gostam os executivos das grandes gravadoras, aqueles que têm ouvidos apurados para artistas que possam engordar seus caixas
Público, de Adriana Calcanhoto: exelentes releituras
01/07/2000

Já está na praça mais um CD “ao vivo”, bem como gostam os executivos das grandes gravadoras, aqueles que têm ouvidos apurados para artistas que possam engordar seus caixas e que fazem vistas grossas para quem quer renovar a débil cena musical brasileira. É também um CD feito com “banquinho e violão”, prática recorrente entre os bam-bam-bans da MPB, que depois de consolidar o prestígio da carreira fazem uma lista de sucessos e sobem num palco qualquer para gravar um CD e forrar a conta bancária.

Mas as semelhanças com o estilo caça-níqueis param por aí. O novo CD de Adriana Calcanhoto, Público, não é um amontoado de hits com apelos radiofônicos. Parece mais um álbum de carreira, coerente com a vereda musical desta gaúcha que começou a ganhar o Brasil em 1989, quando apresentou versões que deram nova dimensão a músicas como Toda Forma de Poder (de Ney Lisboa gravada pelos Engenheiros do Hawaii) e, acreditem, Caminhoneiro, de Roberto Carlos.

No meio destas músicas ela já mostrava que a grande compositora estava em formação, introduzindo os versos de Enguiço.

Em Público, o mais recente trabalho, Adriana conseguiu um resultado surpreendente. A faixa que abre o disco é E o Mundo não se Acabou, clássico de Assis Valente. “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar…”. A divertida escolha foi uma grande sacada para este fim de século, período em que os boatos sobre o fim do mundo aumentam.

A competência da compositora foi atestada justamente nas releituras.  Mais Feliz, de Cazuza, virou quase um hino de amor com versos cantados com a delicadeza de uma declamação. Vambora é uma faixa com o mínimo de recursos musicais necessários para realçar a bela letra, que tem como tema a separação. “Ainda tem o seu perfume pela casa/ainda tem você na sala/porque meu coração dispara/quando tem o seu cheiro/dentro de um livro/dentro da noite veloz…na cinza das horas”. E segue numa súplica: “vem vam’bora/ que o que você demora/ é o que o tempo leva…”

Outro grande momento do CD é a música feita por Adriana especialmente para os versos do poeta português Mário de Sá Carneiro. Ela conta no CD que chegou à obra do poeta por meio de um convite da Editora Nova Aguilar para fazer o lançamento das obras completas de Mário de Sá Carneiro.

Segundo ela, “…um poeta atormentado com a poesia dele, com a poesia em si, com o fato de ser gordinho, com a morte. De uma tal maneira que aos 27 anos, vestiu smoking não conseguiu esperar e se matou. Bichinha complicada com uma poesia não menos densa…” O fato é que Adriana reconheceu a grandeza do poeta, se debruçou sobre os textos e musicou alguns com maestria. Entre eles O Outro, um dos mais conhecidos: “eu não sou eu/nem sou o outro/sou qualquer coisa de intermédio/pilar da ponte de tédio/que vai de mim para o outro…”

Assim a musicalidade de Adriana revigora textos originalmente feitos para serem lidos. O mesmo aconteceu com Remix Século XX, que ela prefere chamar de Polyvox. É um poema interativo de Waly Salomão que traça uma elipse do mundo.

O registro “ao vivo” captou a interpretação carismática de uma artista em ebulição. É um grande disco de quem amadureceu o talento sem perder o sentido ético, um dos poucos que ainda consegue espaço em meio ao lixo radiofônico do nosso tempo.

Jeferson de Souza
Rascunho