Um solitário na pocilga

A higiene não era seu forte. Embora sendo zelador de escola e se chamar Zelas, o cara não passava de um porco
01/07/2000

A higiene não era seu forte. Embora sendo zelador de escola e se chamar Zelas, o cara não passava de um porco. Barba sempre por fazer, roupa empastada de imundices, uma careca sebosa cercada por um cabelinho xaroposo e melado… E o cheiro meu Deus… E o cheiro! Coisa de assustar cadáver em necrotério.

Apesar destes pequenos defeitos, Zelas, um solteirão para lá de conformado, resolveu que estava na hora de se casar. A solidão definitivamente seria vencida. Depois de cinqüenta anos sem os cuidados de ninguém — consta que Zelas havia perdido os pais muito cedo — o medo de ter no adeus final apenas a companhia do coveiro tirava-lhe o sono.

Mas quem casa quer casa. Eram tantas as economias. Zelas comprou um terreno. Encomendou o projeto. Comprou material para construção. Contratou pedreiros. Porém, por motivos já expostos em essência e odores, nenhuma noiva do bairro, povoado por solteironas, viúvas e não definidas, prontificou-se a enfrentar tamanha fedentina.

Do desejo de ter uma companheira para o restinho da vida até o final da construção de sua modesta casinha de zelador, três longos anos se consumiram. Zelas tinha poucos amigos. Mas os que assim se pronunciavam, por ausência de olfato, ou por puro espírito cristão, caregavam-no em grande estima. Altevir era uma dessas boas almas que se precipitaram na tarefa de arranjar uma noiva condescendente para com o inimigo de todos os banhos. Anúncio no jornal, apelo do padre no meio do sermão, acertos e conchavos com as carolas e beatas, nada funcionou.

Altevir desdobrava-se. E apelou. Procurou um centro de umbanda. Fez macumba. Despacho na encruzilhada. Consultou videntes. No desespero, deu até para visitar casas suspeitas. Nada. Nada além do que a triste convicção: um enorme urubu-rei havia pousado sobre a sorte de Zelas.

Urubu também se enjoa de carniça e um dia levanta vôo. Dito e feito. Médula, compadre de Altevir, deu notícias de uma prima distante. Isolada do mundo, vivia desde que nascera num sítio, perto da cidade. Educada nas coisas do lar, cuidava de galinhas, cozinhava muito bem e tinha por única diversão as novelas da TV. Altevir vaticinou: “É esta, só pode ser esta!”

No sábado seguinte, os amigos reuniram-se na casa de Zelas e deram-lhe um banho rigoroso. Chamaram o barbeiro. Compraram perfumes e uma escova de dentes. A faxina foi geral. Tudo prontinho para o grande encontro do dia seguinte.

Domingo. Logo pela manhã, um comboio de carros partia da frente da casa do homem para casar rumo ao sítio de sua futura amada. Zelas foi no carro de Altevir. De imediato, o amigo notou que pouco havia resolvido patrocinar a faxina do dia anterior. Uma noite foi o suficiente para devolver a Zelas a sua habitual porquice. O homem era um sebo. Paciência, pensou Altevir, lembrando que antes de lavar o porco é bom desinfetar a pocilga.

Chegaram ao sítio. Zelas foi apresentado à moça que atendia pelo sugestivo nome de Maria Imaculada. E de fato era, apesar de já ter passado de há muito a bela idade descrita por Balzac. Ela muito tímida. Ele ansioso. Almoçaram. Passearam e conversaram a tarde toda. Antes de ir, em função da urgência da situação e da ansiedade quase cômica de Zelas a roer suas craquentas unhas, Altevir conversou longamente com o pai da moça. O pai, para desespero de Zelas, gastou mais uma boa hora de conversa com Maria Imaculada. Pai conversa com Zelas. Nenhuma dúvida. Alívio geral. Um nasceu para o outro. O casório foi marcado para o início do mês seguinte.

Tudo estaria bem, se não fosse um pequeno fato — é lei, as desgraças começam assim, sempre por um pequeno fato. Uma semana antes do casamento, a família da moça resolveu passar um final de semana no modesto bangalô do noivo da cândida Imaculada. Pouco se sabia dele, foi a desculpa. Os amigos se adiantaram e providenciaram uma faxina, desta vez em Zelas e na sua casa.

No sábado à noite, depois da prendada Maria estourar pipoca, todos se reuniram para assistir à novela das oito. Zelas e a noiva ocupavam o centro das atenções e do sofá. Na primeira aparição de Tarcísio Meira, o noivo sentiu um profundo suspiro da amada. Na segunda, mais um e mais forte. Zelas se incomodava, um suco de soda cáustica cozinhava-lhe o estômago. Na terceira aparição de Tarcísio, Imaculada não se conteve e comentou: “Como ele é lindo!”.

Foi a gota d’água. Zelas levantou-se e expulsou todo mundo de sua casa. Sentia-se traído, aviltado e violentado. Maldita hora para descobrir-se ciumento.

O zelador continuou na mesma porca vidinha por vinte anos. Nunca mais quis noiva. Vendeu a TV. Vendeu a casa. Deu para beber e espalhar que Tarcísio Meira era bicha.

No cemitério, quando seu corpo baixou à cova, um solitário urubupeba voava em círculos e o coveiro teve que ser improvisado. O titular adoecera e faltou pela primeira vez ao serviço em 50 anos de profissão.

José Fernando da Silva
Rascunho