Produzir uma resenha de Os Sete Pilares da Sabedoria, de T.E. Lawrence (Record, 782 págs.), talvez requisesse uma dose extra de erudição ou de “abertura espiritual” para o significado oculto que a obra — considerada um clássico da literatura do século XX — certamente possui. Por uma questão de tranqüilidade de consciência, só posso escrever sobre o que li — e a primeira coisa que me vem à mente ao pensar no livro é que ele traz uma grande história de aventura, uma obra que pode ser especialmente cativante para quem, como eu ou muitos outros seres urbanos criados no conforto, acalentou sonhos românticos de guerra e de aventura.
Evidentemente, sua grandeza não se resume a isso — dificilmente Lawrence teria alcançado celebridade apenas por iluminar esta faceta em cada leitor. É genial, antes de tudo, por ter sido vivida e não apenas imaginada. Mais do que isso, é grande por registrar a experiência de um homem que, em determinado momento da existência, viveu não apenas a realização de sua ânsia por guerra e aventura, mas também um sonho de liberdade e a percepção do poder de transformação que reside em cada indivíduo.
Na contramão — O primeiro mérito de Lawrence — e, certamente, a chave de sua aceitação entre as tribos árabes, personagens principais da revolta contra a dominação turca durante a primeira guerra mundial, tema do livro — foi sua capacidade de se desvestir do papel de “colonizador britânico” e encarar, com as menores reservas que lhe foram possíveis, os hábitos de seus elementos (à sua maneira, na ficção, Kipling e Orwell — este, no trágico Dias na Birmânia — também conseguiram).
De fato, ao ser encarregado de potencializar a rebelião árabe contra o domínio otomano — afastando com isso uma ameaça e ainda passando uma rasteira em um aliado da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, principais inimigos da Grã-Bretanha — Lawrence tomou contato com uma realidade absolutamente diferente de tudo o que já havia visto, conseguindo a façanha de vivê-la com olhos de nativo.
Não perdeu, é lógico, a essência de seu espírito britânico — fator responsável pela produção do livro e, certamente, pelo conflito mental vivido a partir do choque entre seu amor à causa que abraçara e os interesses colonialistas de seu país — mas teve a capacidade de reduzir ao máximo a “imissibilidade” das duas culturas. Nem fez apenas por lealdade para com seus superiores, por bondade ou pelo objetivo de conduzir homens, mas pela percepção de que apenas através de uma “conversão total” poderia suportar o deserto.
Na condição de comandante militar e agente de ligação entre os britânicos e a rebelião árabe, Lawrence liderou homens em combate e interferiu diretamente na confecção da delicada teia política que envolvia a formação do espírito nacional árabe e a atração de xeques e xerifes para a causa da independência. Como conseqüência, viveu na essência o mundo do deserto e de seus homens, traduzido magistralmente nos trechos do livro em que troca a narração de campanha pela descrição das pessoas e dos costumes de cada tribo.
É o que acontece, por exemplo, na descrição dos xeques e do modo como procuravam tecer a sua participação (e seus lucros) na guerra contra os turcos; do arcaico modo de guerrear árabe, feito de arremetidas ferozes, tão diferente da “tecnológica” guerra européia de trincheiras; do amor fraternal-homossexual entre jovens combatentes, costume aparentemente aceito com naturalidade pela sociedade do deserto; das refeições coletivas oferecidas pelas tribos aos combatentes, festins que reuniam dezenas de pessoas ao redor de crateras fumegantes de arroz e carne de carneiro; da destruição de trens, operações militares organizadas à maneira de comandos que, graças à tradição nômade, acabavam se transformando em delirantes pilhagens; dos camelos, animais de importância-chave para a sobrevivência no deserto, e suas idiossincrasias; dos inimigos turcos, descritos como alienígenas que, por não pertencerem ao deserto, jamais conseguiriam dominá-lo e, muito menos, vencer seus estranhos habitantes; do deserto, maestro dos homens e, no final das contas, da própria rebelião.
Para ler — Se você, como eu, conhecia E.T. Lawrence apenas do cinema, saiba que o livro é muito melhor. Há que se saudar, sem dúvida, a excelente tradução de C. Machado — a primeira para o português, feita em 1938 para a Cia. Brasil Editora, apenas três anos depois da publicação do original inglês — que responde na medida exata à magnitude da obra, e ao prefácio de Fernando Monteiro (autor de T.E. Lawrence — Record, xxx págs.), que serve de bússola para aqueles que, como eu, “entraram voando” por entre os Sete Pilares da Sabedoria.