Um dos motivos para o injusto esquecimento da vasta literatura do mineiro Paulo Mendes Campos (1922—1991) — não bastasse nossa esquálida memória e insólita omissão — é a errônea idéia que muitas vezes se faz da crônica diária. Como a matéria-prima do cronista é o cotidiano e seu vínculo com o dia-a-dia é inevitável, a crônica acaba herdando a pecha de gênero ligeiro, situada na conta das artes ditas menores dentro da literatura. Mas não é bem assim. De um comentarista do cotidiano é exigida toda habilidade do olhar preciso e perspicaz o bastante para observar os pequenos milagres e coincidência das miudezas da vida.
Depois, é preciso também equilíbrio e destreza no valsear da munheca para coagular o tempo e aglutinar o homem, esse coliseu de áspero e melancólico território, dentro dos limites ditatoriais da página do jornal ou da revista. Sem falar da fluidez, da decantação das palavras, do humor e ironia para entender que no homem o que importa é o que sobra, e o fundamental é o supérfluo.
É preciso agir e ter a habilidade de Sherazade que, durante mil e uma noites, usou (e ousou) a artimanha de desfiar estórias para enganar a morte. Mas esse enredo só nasce com a reflexão constante sobre a natureza humana, o estudo dos seus acidentes históricos e geográficos. E para tanto, é necessário a certeza de possuir antenas estéticas altas e sensíveis para perceber que o cotidiano é a fábrica da nossa humilhação, violência, exílio e sentimentos. Só assim é possível não empobrecer diante de tantas facetas e ter a medida que homem é uma empreitada de demolição; e seus sentimentos, moeda em permanente desvalorização.
Nisso tudo Paulo Mendes Campos é um perdigueiro. Ele fareja a medida e o peso da nossa precária percepção da realidade em crônicas que mergulham na vida interior e porejam lirismo em prosa poética. “São seis os elementos: ar, terra, fogo, água, sexo e morte. Não, são sete: e lirismo.”
Ao lado de Fernando Sabino, Rubem Braga, Hélio Pellegrino, Otto Maria Carpeaux e Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos formou o sexteto dos grandes cronistas brasileiros dos anos 60/90. E por isso é muito bem-vinda a reedição pela Civilização Brasileira da obra do escritor mineiro.
Em dezembro do ano passado chegou às livrarias O Amor Acaba — Crônicas Líricas e Existenciais. E agora já estão disponíveis outros dois volumes da reedição: Brasil Brasileiro — Crônicas do País, das Cidades e do Povo e Murais de Vinícius e Outros Perfis.
Eles antecedem outros seis volumes que, até o final deste ano, deverão reunir toda a obra do escritor. Neste mês virão Cisne de Feltro —Crônicas Autobiográficas e O Gol é Necessário, livro que reúne crônicas esportivas. E até o final do ano serão relançados Alhos e Bugalhos e Artigo Indefinido que reúnem as crônicas humorísticas e literárias. A coleção será fechada com De um Caderno Cinzento — Apanhadas do Chão, volume de poesias e coletânea de frases e citações do próprio Paulo e também de outros escritores.
Falemos das obras já disponíveis: O Amor Acaba… (269 págs.) é a reunião de 74 crônicas, muitas delas inéditas em livro, pesquisadas no acervo da viúva do escritor, Joan Mendes Campos, e nos arquivos da revista Manchete, do Jornal do Brasil e do Diário Carioca. Todas retratam cenas do cotidiano — e temas mais profundos como o amor, a maturidade ou a morte — com o lirismo e ceticismo que fez de Paulo Mendes Campos um dos maiores cronistas brasileiros. São textos devassando perplexidades humanas com poesia e prosa de penetrante originalidade, bom humor e doses benignas de compaixão.
O horror à vulgaridade faz de algumas crônicas ensaios filosóficos e líricos. Entre outras, as famosas Um Homenzinho na Ventania, Receita de Domingo, Por que Bebemos Tanto Assim? e O Amor Acaba.
“O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira com raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado…” (pág. 21)
Já em Por que Bebemos Tanto Assim?, Paulo Mendes Campos mostra o homem acuado naquela zona restrita na qual um dos elementos do composto humano — o medo — liberta-se como em uma reação química. A luxúria, a devassidão, a multiplicação desordenada duma força que equilibra o mundo, e que faz do homem passarinho chamuscando as asas no fogo da beatitude ou do horror. O homem livre que, como o bêbado, repete o mesmo caminho de sua fulgurante agonia:
“Bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de um a zero, dois a zero…Bebe-se na esperança de empatar o marcador […] o homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre, para ser consolado; para driblar a si mesmo; o homem bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz uma sonata, o místico sai arrebatado pela janela do claustro, a adolescente adora cinema, o fiel de confessa, o neurótico busca o analista. Quem foge de si mesmo se encontra; quem procura encontrar-se afasta-se de si mesmo. Não é paradoxo, é o imbricamento humano […] o homem entra no bar para transcender-se – eis a miserável verdade”, (pág. 39).
Murais de Vinicius e Outros Perfis (126 págs.) é uma obra quase toda inédita e escrita em 1988 para presentear clientes de uma empresa de engenharia. Boa parte do livro é dedicado a Vinicius de Morais, onde Paulo Mendes perscruta a alma do “poetinha” e algumas situações vividas por ele. Como quando, ao lado de Carmem Miranda, conhece Ava Gardner que lhe diz no seco: “I’m very beautiful. But morally I stink” (Sou bonita. Mas moralmente cheiro mal)” pág. 10.
O livro segue descrevendo as peripécias de um grupo de amigos formado por Aníbal Machado, Murilo Mendes, Fernando Sabino, Moacir Werneck de Castro, Antônio Houaiss, Caribé, Sérgio Porto, Di Cavalcanti, Pablo Neruda, Oswald e Mário de Andrade, Antônio Maria, os nordestinos itinerantes Olívio Montenegro, Gilberto Freyre e João Cabral, e os músicos Lúcio Rangel, Lamartine Babo Pixinguinha e Ari Barroso.
Sobre Barroso, que dominava as duas áreas polêmicas da aquarela brasileira: futebol e música, há uma passagem hilariante. Flamenguista roxo, Ari implicava impiedosamente com os inimigos de Leônidas e zombava do botafoguense Garrincha. “[…] ao transmitir um jogo pela televisão, ele ia narrando de má vontade: ‘Garrincha dribla um. Está querendo driblar outro. Solta essa bola, rapaz! Driblou. Vai querer driblar mais um. Assim não é possível, Santo Deus! Vai perder a bola, é claro. Gol de Garrincha.’ Chocha, chocha, a conclusão do locutor” (pág. 76).
Já Brasil Brasileiro — Crônicas do País, das Cidades e do Povo (190 págs.) é um passeio biográfico pela cidades brasileiras onde “só a vocação da disciplina impede a catástrofe metal coletiva” (pág. 12). Mas não é a visão amarga de um país em eterna derrocada. Ao contrário, é um canto de desassossego e de nostalgia pela imensa humanidade brasileira e a doçura da gente numa perfeita desorganização. Nele, Paulo Mendes consegue mostrar o humor e o afeto nacional nas condições de uma vida precária ou hostil.
“Nada se resolve no Brasil. Para que resolver? Muito melhor que a solução é a profunda compreensão que todos demostram pelos nossos problemas, notadamente nos locais que teriam que resolvê-los. […] O processo entre nós não existe para ser resolvido, mas para ser compreendido em toda a dimensão de seu conteúdo humano” (pág. 33).
E é através desse lirismo humanista que Paulo Mendes Campos enxerga o brasileiro: “Parecido com o Brasil sempre fui. Meus espaços vazios. Minhas contradições contundentes. Subdesenvolvidas. Subdesenvolvido (com música). Também virado para o mar e a montanha, fico indeciso entre a gaivota e o gavião. Mato a fome com um pastel descarnado à porta da venda e às vezes me oferecem caviar no céu.” (pág. 21).
Por fim, o cronista também dedica-se com esmero em um estudo da a alma de Minas Gerais, terra onde todos são estrangeiros, e o municipalismo que torna o mineiro uma ilha:
“Fiquemos certos de uma coisa: o mineiro quieto está matutando para onde deve ir. Mesmo quando não sai do lugar, ele dá voltas, insatisfeito, andarilho imaginário. É o viajar imóvel de Emílio Moura: “Viajas até mesmo ao redor de tua inacreditável imobilidade”. O carioca está sempre no Rio; o mineiro está sempre em outro lugar” (pág. 53).
Esses três livros desvendam um pouco Paulo Mendes Campos: um poeta que tem alguma coisa a dizer — por isso escreve prosa; um prosador que sabe como falar o que pensa — e por isso escreve poesia.