Literariamente viável

Contista gaúcho de 25 anos merece a atenção dos leitores brasileiros
Altair Martins, autor de “A parede no escuro”
01/07/2000

O autor do livro de contos recém lançado Como se Moesse Ferro (WS Editor, 127 págs.) tem 25 anos, é estudante de letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e leciona literatura brasileira em cursos pré-vestibulares em Porto Alegre (RS). Altair Martins venceu em 1994 o Prêmio Guimarães Rosa, organizado pela Radio France International, com o conto Como se Moesse Ferro e, no ano passado, foi novamente premiado no mesmo concurso com o conto Humano — ambos incluídos em seu livro de estréia. Vivendo em Guaíba (RS), ele está escrevendo agora contos sobre bichos e não descarta a possibilidade de reunir seus poemas para uma futura publicação; além disso, anuncia que está elaborando uma narrativa longa. Confira a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva que Altair Martins concedeu por e-mail ao Rascunho:

• Com que idade você se aproximou da literatura? Foi por causa de algum livro em especial?
Creio que a minha aproximação não se deu exatamente com os livros. Há um universo maior para uma criança descobrir, que começa pelo pátio de casa, onde descobrimos os sensos comuns do mundo, como as minhocas debaixo dos tijolos do jardim, e depois do pátio fica a rua, onde há mais pessoas para quem contar as coisas que vamos aprendendo. Foi assim, descobrindo as coisas e criando histórias sobre elas, que comecei a mentir. A mentira também acontecia nos livros mas isto eu descobri depois, muito depois. No entanto, a descoberta maior foi a de que a mentira dos livros, como As Mil e Uma Noites, fica para sempre, mentira para muitos acreditarem. Começar a escrever veio depois de começar a mentir, que veio antes de começar a brincar com objetos do pátio, que veio antes de começar a desenhar cenários e personagens, que veio antes de começar a fazer teatro, que veio antes de começar a tocar violino, que veio antes de começar a fazer charges, que veio antes de desejar ser pintor, que veio antes de pensar em ser cineasta, que veio antes de começar, e espero continuar começando, a escrever.

 • O que te motiva a escrever?
Como afirmei, sou um mentiroso, no sentido bom, que é o de inventar histórias. Adoro ouvi-las e adoro contá-las. Escrever vai um pouco além, porque é preciso inventar com as palavras, fazer com que elas tramem uma mentira cada vez mais sugestiva e surpreendente e, por isso, mais eficaz em direção ao objetivo de permanecer, que é o de toda a boa arte. É assim: vou mentindo e procurando sempre uma nova linguagem que a torne mais densa a ponto de pessoas se interessarem por elas.

• Qual é a matéria-prima de seus contos?
A mímese. Ler me interessa e leio. Mas vivo, observo as coisas, minto e escrevo. Mas perceba que, se eu precisar da imagem de uns olhos de gato, vou antes procurar o gato que aqueles que escreveram sobre ele. Fico recordando quando principiaram alguns contos e como ainda costumam vir num primeiro momento e vejo que as histórias, elas surgem antes, como esqueletos que vou juntando. Geralmente eu conto a história quando está apenas no enredo e verifico a força que poderiam ter futuramente. Depois vão surgindo palavras, uma boa palavra pode dar um conto, e frases inteiras que escrevo como se fossem versos. Tal um balão que vou enchendo, o conto surge. Considero-o acabado quando o editor publicá-lo; até lá, estão sempre passando por cirurgias que visam mudar a forma da bola: é claro, correr riscos pode furar o balão.

• Você se enquadra em alguma “escola” literária?
Não creio que haja espaço para “escolas” num mundo em que as comunicações são tão efetivas e cada vez mais as pessoas se tornam
cosmopolitas em casa. Cada pessoa é sua república. O presente está moldando um futuro em que cada indivíduo deverá ser seu manifesto — e eis talvez o único prejuízo da democracia —, de tal forma que ora podemos nos transfigurar num estilo, mas ora somos livres para sofrer a transfiguração de outro. Sigo uma ordem que não me parece nem mesmo consciente: escrever diferente, cada vez mais diferente do que já escrevi, até o esgotamento, quando direi que não me resta mais nada. Talvez então eu faça cinema e, se a vida permitir, música, pintura e teatro de novo. E de novo volte a escrever.

• No seu entendimento, há renovação na literatura atual brasileira?
Há falta de esforço no sentido de renovar. Pouco se lê dos autores novos e o que resta é uma eterna repetição do Dalton Trevisan, do J.J. Veiga e do Rubem Fonseca.

 • Qual a sua avaliação da literatura gaúcha?
O Rio Grande do Sul parece ter estômago próprio porque sabe consumir a literatura local, até mesmo de autores novos. O difícil, nesse caso, é que o paladar do resto do País demora a aceitar os autores daqui, mesmo os mais estabelecidos. Exceção feita a Érico Veríssimo e a Dyonélio Machado. Mas o Brasil ainda tem de descobrir Simões Lopes Neto, contista cuja genialidade não perde para Guimarães Rosa. O Brasil precisa saber que Cyro Martins existiu e que seus livros ficarão, que Moacyr Scliar é um dos melhores escritores desse País e que Sérgio Faraco é hoje um dos seus maiores contistas.

 • Você acredita que a nossa geração — na faixa de 20 a 30 anos — lê?
Somos arcaicos, se ainda lemos ou escrevemos; pré-históricos, se fazemos os dois. Trata-se de uma crise de valores contraditória num País que deseja crescer, mas crê que ler livros é perder tempo para quem poderia estar fazendo outras coisas mais favoráveis ao crescimento. O retorno que as pessoas esperam, quando investem em qualquer coisa, é o imediato, e o
imediato não está nos livros, a não ser naqueles de auto-ajuda. Estes vendem
bem, embora efêmeros. Nossa geração lê muito pouco e ainda se mascara por trás, agora, da Internet. A Internet é um engodo, porque afirmam que
nela está o futuro da leitura. Ora, quem não lê com um livro à mão, podendo levá-lo aonde quiser, jamais virá a ler algo importante numa tela que irrita os olhos. Afirmar que aqueles que não estiverem acessados à rede estarão fora do mundo faz parte, parece, dessa campanha globalizante e opressora que só pode ter origem junto àqueles que desejam vender muitos computadores. O livro será um dos alvos desse processo.

Uma promessa chamada Altair Martins
Apesar de alguns deslizes, Como se Moesse Ferro é digno de leitura

Atualmente, para obter espaço na grande mídia — jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo — o autor tem de fazer parte de alguma “panela”. Por exemplo, se o escritor é militante de alguma causa ou se a obra tiver como característica principal um humor engraçadinho — praticado por Jô Soares, José Roberto Torero e Mario Prata —, é certo que haverá entrevista, comentário e foto nos segundos cadernos. Caso contrário, silêncio total e desprezo por parte dos jornalistas culturais.

Apenas um dos grandes jornalões de São Paulo noticiou que no dia 24 de março deste ano Altair Martins lançou Como se Moesse Ferro (WS Editor, 127 págs.), livro que traz 11 contos abordando, de vários pontos de vista, a deterioração das relações entre seres humanos. Por exemplo, no conto Chefe de Família, o autor mostra o efeito que o desgaste do dia-a-dia provoca em um casamento — com um desfecho surpreendente. Em Advertência, a inevitável decadência física causada pela passagem dos anos assusta uma personagem feminina, que fica ainda mais deprimida ao saber que seu marido está saindo com outra mulher. Depois de 25 anos de casamento os parceiros podem adquirir sentimentos de “metal”, a exemplo do que acontece em Humano. Na visão de mundo deste autor, depois que uma pessoa se liga à outra, vários fatores irão lentamente corroer a relação, seja o atrito do convívio ou a monotonia da rotina.

As listas dos livros mais vendidos no Brasil revelam que o conto não é um gênero que desperta o interesse dos leitores, que preferem narrativas longas como o romance. Por que será que os brasileiros não estão comprando nem lendo narrativas curtas? Muitas vezes, o primeiro conto pode não agradar o leitor, que abandona o livro sem ler os demais textos, os quais poderiam despertar sua atenção. Altair Martins corre sério risco de perder público justamente por causa do enredo do primeiro conto, no qual personagens de metal adquirem sentimentos humanos. Caso o leitor ultrapasse este primeiro “obstáculo”, terá algumas surpresas nas páginas seguintes.

O fato do autor ser estudante de letras e professor de literatura brasileira em cursos pré-vestibulares não garante que ele realmente domine o ofício de fazer literatura. A intenção dele foi mostrar problemas que o ser humano enfrenta  independente do local onde esteja vivendo, ou seja: Altair Martins quis abordar o homem de uma maneira universal. E, em grande parte de seu livro, ele consegue. No entanto, ao utilizar expressões locais do Rio Grande do Sul — como tri legal, guri e grenal —, Como se Moesse Ferro fica inevitavelmente preso ao universo lingüístico gaúcho. Se a obra fosse traduzida na Alemanha, por exemplo, será que os leitores iriam saber que grenal é o nome dado à partida de futebol entre o Grêmio e o Internacional? Inserir palavras do vocabulário de sua região na narrativa foi uma “pisada na bola”, uma vez que o autor se propôs a ultrapassar a fronteira dos pampas.

O livro Como se Moesse Ferro está sendo lançado no ano 2000, momento histórico em que as evoluções tecnológicas avançam em alta velocidade. No entanto, apesar de terem sido criados inúmeros recursos que tendem a facilitar a comunicação — como pager, e-mail e telefone celular —, as pessoas estão cada vez mais isoladas e fechadas em si mesmas. Então, o aspecto positivo do livro é justamente discutir a deterioração das relações humanas por meio de enredos, como acontece em Muito o que Falar, conto dividido em duas partes que mostra uma mesma situação, primeiro do ponto de vista do homem e depois na versão da mulher: mesmo morando sob o mesmo teto e tendo muito o que dizer um para o outro, o casal permanece incomunicável.

A atitude de um  jovem de 25 anos lançar um livro de contos — gênero não-comercial — por meio de uma pequena editora — WS Editor — no Rio Grande do Sul — distante da “inteligência” paulista-carioca — é louvável. Se o autor amadurecer e evitar os jogos de palavras, deixar de lado o humorzinho infanto-juvenil e abolir o uso de expressões da cultura oral local, ele poderá — num próximo livro — firmar seu nome na literatura nacional. Afinal, Como se Moesse Ferro denuncia que Altair Martins tem talento, apesar de alguns deslizes, compreensíveis, no caso de um estreante.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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